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CAPÍTULO 1: O CONTEXTO DA VILA DE DEIR EL-MEDINA

1.4 A Necrópole da XIX Dinastia

Uma reutilização interessante do espaço funerário ocorreu na medida em que a vila se expandiu para o sul. As tumbas da XVIII dinastia acabaram por ser incorporadas à área urbana de Deir el-Medina, tendo se transformado em porões de algumas casas. O número de casos, porém, não é significativo já que, de acordo com as plantas de Bruyère, podem ser contados menos de vinte. A figura 5 mostra como se deu esta ocupação.

Ao mesmo tempo em que determinadas tumbas foram incorporadas ao espaço destinado aos vivos, o interior de algumas residências também serviu como local de enterramento. Bruyère identificou nas escavações da vila pequenas caixas contendo corpos de

crianças natimortas, cujos pais provavelmente quiseram mantê-las próximas. Pinch propôs que este ato acontecia na “esperança de que o espírito da criança voltaria ao corpo de sua mãe”60. Na realidade a ideia da autora quanto a um “espírito” é equivocada, pois quem provavelmente poderia voltar ao corpo era o ba, parte individual que era representada na forma de um pássaro com a cabeça do indivíduo e que simboliza a sua personalidade. Ao nascer, o indivíduo receberia o seu ba, que entraria em seu corpo. Assim, no imaginário egípcio, o ba voltaria para uma nova criança a ser concebida pela mesma mãe.

As tumbas dos membros da elite da vila encontram-se na necrópole ocidental e foram edificadas em áreas que ainda não tinham sido ocupadas durante a XVIII Dinastia. Podemos separar estas construções em duas etapas. Na primeira fase, correspondente à XIX Dinastia, as tumbas são mais numerosas e algumas devem ter reutilizado o espaço de sepulcros da dinastia precedente. A segunda fase, correspondente à XX Dinastia, apresenta poucas tumbas novas, pois se preferia ampliar as tumbas já existentes com a adição de mais câmaras. Durante a XX Dinastia houve uma certa estagnação, e consequente redução, do número de pessoas vivendo na vila. Este período da história egípcia foi caracterizado pela pobreza dos programas de construção, por uma política exterior pouco agressiva61.

As tumbas construídas, reutilizadas ou ampliadas podem ser classificadas de acordo com os diferentes estilos arquitetônicos: poço e abóbada; com múltiplas abóbadas; com múltiplas abóbadas com capela; e com múltiplas abóbadas, capela, pátio e complexo piramidal62. No que se refere às tumbas mais complexas, elas podem ser de dois tipos: speos ou rupestres; e sepulcros parcialmente escavados na rocha63. Os speoi possuíam pátio com forma quadrangular e eram circundados por um muro. A entrada do pátio localizava-se a leste e era formada por um pilono, pelo qual o sol nascia. Ao fundo do pátio a rocha poderia ser cortada para a construção da capela, que era encimada por uma pirâmide. Na parte frontal havia uma colunata sob a qual eram dispostos os monumentos funerários, as estelas e as estátuas, que ficavam distribuídos em ambos os lados da porta. Nas capelas do tipo speos havia um corredor, uma câmara e outro corredor que finalizava em um naos. Este constituía a parte mais importante do culto funerário. Ali estavam três elementos: a estela, a mesa de oferendas e a estátua do morto.

60 PINCH, G. Magic in ancient Egypt. London: British Museum Press, 2006. p. 132.

61 TRIGGER, B. G. et al. Ancient Egypt: a social history. Cambridge: Cambridge University Press, 2006, p. 282. 62 Segundo a proposta de MESKELL, L. op. cit. p. 145.

63 TOSI, M. & ROCATTI, A. Stele e altre epigrafi di Deir el Medina: 50001-50262. Torino: Edizioni D’Arte

As câmaras poderiam conter pilares. Originalmente esta estrutura era fechada por portas de madeira que estavam inseridas em umbrais e arquitraves feitas de pedra. Esta área externa, situada muito próximo à luz do dia, possuía conotação solar, tal como a pequena pirâmide que a encimava. Sua estrutura era composta por uma técnica mista que incluía tijolos de adobe e rocha calcária. No interior, a estrutura piramidal não era maciça, pois havia um teto em abobada que deveria reduzir o peso da estrutura. Na face externa, um pequeno nicho situado acima da porta servia para a instalação de uma estela na qual o morto era representado em adoração a Ra. No topo da estrutura era colocado um piramydion de pedra, uma peça confeccionada de forma piramidal, que era produzida a partir de diferentes tipos de rochas, como o granito, o gesso e o calcário. As cenas que recobriam a face destas peças também apresentavam características solares. O morto aparece em adoração ao deus-sol, que é representado como um falcão, como um disco solar ou sob a forma de Ra antropozoomorfo.

A infraestrutura das tumbas era formada por poços e câmaras. A entrada poderia ser alcançada por meio do poço que estava dentro da capela, na câmara retangular, ou no segundo corredor. Os poços tinham aproximadamente 5 ou 6 metros, sendo meramente escavados na rocha, ou revestidos com tijolos de adobe. A parte superior era fechada por uma laje de pedra e ao fundo havia uma parte de madeira que conduzia a uma ou mais câmaras. No interior cortava-se a rocha e projetava-se o teto em abóbada. A decoração destas câmaras manifestava-se de forma variada e foi inspirada nos encantamentos do Livro dos Mortos. Os deuses Ra e Osíris são representados com frequência, refletindo a importância que tais divindades tiveram no contexto funerário. Na figura 9 apresentamos um corte esquemático dos dois tipos de tumbas aqui descritos.

Figura 9 – Corte esquemático dos dois tipos de tumbas complexas. Acima speos ou tumba rupestre, e abaixo parcialmente escavada. O desenho pertence à obra de BRUYÈRE, B. Rapport sur les Fouilles

de Deir el Médineh (1922-1923). Première Partie. Le Caire: Imprimerie de l'Intitut Français

d’Archéologie Orientale, 1924, planche XX.

As tumbas construídas parcialmente na montanha não diferem muito das descritas anteriormente. Estas também compreendiam um pátio quadrangular, uma pirâmide de tijolos e uma capela em tijolos. Neste caso, a pirâmide poderia ser construída tanto diretamente sobre o solo quanto sobre uma pequena plataforma de pedra. A capela tinha apenas uma sala, decorada com cenas funerárias e relacionadas ao culto de vários deuses. Na área da abóbada havia um nicho onde se colocava uma estátua esteleófora ou uma estela. A parte subterrânea era acessada por meio de uma abertura que estava localizada no pátio, frente à capela. Ela era revestida com tijolos de barro e poderia conter uma escada, ou pequenas aberturas na parede que facilitassem a colocação dos pés durante a descida. Na parte interior, além do poço, estariam duas ou três câmaras, sendo apenas a última decorada. Suas paredes de pedra eram revestidas com tijolos de adobe, tal como ocorria com a construção capela, e depois com muna. Por último, colocava-se uma fina camada de gesso que facilitaria a pintura.

Este é justamente o caso da única tumba da época Raméssida encontrada intacta: a de Sennedjem. Achada em 1886, numa escavação conduzida pelo Serviço de Antiguidades que estava nessa época sob direção de Gaston Maspero, a tumba continha os corpos

embalsamados de vinte indivíduos, dos quais nove não dispunham de ataúde. Sennedjem com sua esposa, Iy-Neferti, além de seus filhos com suas respectivas esposas, foram identificados pelas inscrições sobre os ataúdes. As peças que se caracterizam como de uso funerário, como as caixas para vísceras na forma de pequenos ataúdes, as caixas de ushabtis e uma grande quantidade de ushabtis, são evidentemente mais numerosas. Numa escala menor, os artefatos de uso cotidiano foram representados por alguns itens de mobiliário, como uma cadeira, caixas de madeira e vasilhames de cerâmica.