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CAPÍTULO 1: O CONTEXTO DA VILA DE DEIR EL-MEDINA

1.5 Os Problemas com Relação à Ocupação do Espaço na Necrópole Ocidental

Pela documentação existente, sabemos que os trabalhadores residentes na vila recebiam do Estado, a partir da reorganização ocorrida no sétimo ano de Horemheb, um local onde poderiam preparar a tumba. O trabalho, desde a construção até a finalização das pinturas, era executado por membros da família, notadamente os filhos, quando não estavam realizando nenhuma atividade na tumba régia, ou mediante a contratação de serviços de outros trabalhadores da vila. Com a morte dos pais, os filhos tinham o direito de posse do local mas, caso não houvesse descendência, a tumba passaria à posse de outro proprietário, ou retornaria ao Estado64. Em Deir el-Medina pode-se verificar a existência de vários casos em que a tumba de um pai é ladeada pelas de seus filhos. Mas se o cargo ocupado não proporcionasse recursos suficientes, um filho e seus descentes poderiam ocupar a tumba familiar por ocasião da morte.

Durante a XVIII dinastia o uso intensivo do espaço na necrópole Ocidental foi um dos fatores que levaram alguns habitantes da época Raméssida a procurarem locais alternativos para a construção de suas tumbas. No princípio, houve uma espécie de distribuição de algumas extensões de terra, que incluíam tumbas já existentes, para as famílias que realizaram a segunda ocupação da vila no final da XVIII dinastia, a partir das ordens do Estado, levadas a cabo pelo Prefeito de Tebas − precisamente no ano 7 do faraó Horemheb (c. 1313 a.C.), conforme o documento do período de Ramsés III anteriormente mencionado. Esta apropriação de tumbas foi aparentemente pacífica, pois algumas já tinham sido saqueadas ou encontravam-se abandonadas. Entretanto as que estavam disponíveis não seriam suficientes para todos, e assim foi necessário expandir a área de construção de novas tumbas tanto em

direção ao oeste, quanto para o sul. As escavações, realizadas por Bruyère tanto na necrópole quanto na vila, permitiram a identificação dos proprietários das tumbas e das casas, tal como pode ser visto na figura 10. Ao elaborarmos uma correlação entre ambas as estruturas65, foi possível verificar que, na época Raméssida, as tumbas foram construídas para além da área já ocupada.

Figura 10 – Esquema com a correlação das casas e tumbas de alguns dos artesãos de Deir el Medina. Note a proximidade da tumba de Sennedjem com a sua respectiva casa. O desenho de linha pertence à obra de SÉE, G.; BAUX, J-P. Grandes Villes de l’Egypte antique. Paris: Serg, 1974, p. 41. Tabela modificada a partir da que foi elaborada pela autora por Moacir E. Santos.

A expansão ocorreu no sentido oeste, junto a uma área mais íngreme, e no sentido sul, onde havia espaço disponível. Embora existisse certa ordem no espaço ocupado pelos vivos e pelos mortos, o conflito por uma morada eterna também estava presente, conforme nos mostra um documento que aponta dois problemas sobre a posse de uma tumba.

Ao que parece, o trabalhador Amenemope não tinha ainda uma tumba, mas julgava que uma de suas ancestrais, chamada Hel, era descendente de Khay, cuja linhagem masculina havia se extinguido. Khay era um morador da vila que, aproximadamente cento e quarenta anos antes, havia recebido um terreno que continha a tumba de Amen-(mes), durante o

65 Baseada nas plantas disponíveis na obra de SÉE, G.; BAUX, J-P. Grandes Villes de l’Egypte antique. Paris:

processo de redistribuição de terras sob o reinado de Horemheb, que já comentamos anteriormente. O documento diz:

(...) Ele [o prefeito Djuty-mes] deu a tumba de Amen-(mes) a Khay, meu antepassado, por meio de uma ordem. Hel, minha ancestral, era sua descendente linear; ele não tinha herdeiros masculinos e sua propriedade foi então abandonada.66

Amenemope compareceu perante o oráculo de Amenhotep I e ganhou a propriedade da tumba:

Ano 21 [de Ramsés III], segundo mês de Shemu [verão], dia 1, eu fiquei em pé perante Amenhotep e lhe disse: “Dá-me uma tumba entre os antepassados”. Ele me deu a tumba de Khay por escrito.67

O problema maior, referente a uma disputa sobre o direito de propriedade da câmara funerária, que é a origem de todo o documento, ocorreu quando outro trabalhador, chamado Kha-em-nun estava trabalhando na sua tumba, que era vizinha da de Amenemope. Por meio da escavação do poço ele chegou acidentalmente até a câmara, cuja origem remonta a Amen- (mes). Posteriormente, o escriba Amen-nakht localizou a abertura original e ao descer, juntamente com Amenemope, se depararam com uma abertura que ligava ao poço escavado pelo vizinho, conforme o documento:

Agora, mais tarde, eu estava construindo e o trabalhador Kha-em-nun estava trabalhando em sua tumba. No primeiro mês do verão, sexto dia, ele teve um dia de folga e encontrou uma abertura, e desceu por ela com o policial Nefer-Hotep, quando eu não estava lá. Agora, mais tarde, no primeiro mês do verão, sétimo dia, o chefe dos trabalhadores Khonsu foi encontrado sentado e bebendo. Depois, eu estava com Hori, filho de Huy- Nefer e do trabalhador Bak-em-ur. Eu não sabia onde era a abertura de minha tumba. O escriba Amon-nakht encontrou a abertura (?) da tumba dizendo: "Desce! Vê o lugar que se abre para a tumba de Kha-em-nun"!68 A disputa por este espaço deve ter sido acirrada, visto a quantidade de informações presentes e pela primeira parte do texto alegar o direito de propriedade, com origem familiar e confirmada através de um oráculo. Ao final Amenemope talvez tenha garantido o seu espaço mortuário e, por conseguinte, o seu lugar na eternidade.

66 MC DOWELL, A. G. op cit. p. 68. 67 Ibidem. p. 68.