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2. Sobre alguns conceitos e metodologias utilizados ao longo deste trabalho 94

2.2. As unidades gráficas 97

2.2.2. As unidades gráficas não figurativas 101

Na bibliografia encontramos recorrentemente uma distinção dentro deste grupo entre “traços indeterminados” e “signos” (v. g. duas obras generalistas relativamente recentes — Vialou, 1999, 258-259, 263-264; Sanchidrián, 2001, 254). Comecemos por tentar perceber o que são estes “traços indeterminados”.

De acordo com Lorblanchet são “traits ou des taches polymorphes,

généralement multiples, souvent enchevêtrés et superposés, apparemment dépourvus de toute organisation interne” (1993c, 235).

Para alguns autores, esta definição não será suficiente. Por exemplo, Vialou, considera que entre os traços indeterminados devemos distinguir dois grupos: um composto pelos elementos não estruturados e outro pelos estruturados (Vialou, 1986, 345). O que separa estes últimos das restantes figuras é o facto “de leur nature

exceptionnelle, unique, n’évoquant ni les types de signes rencontrés ni bien sûr les figures animales ou humaines” (1986, 335). Se é (aparentemente) óbvio o que separa

um conjunto de traços indeterminados de uma forma animal, poderá já não ser assim para o caso dos signos. Por exemplo, Vialou considera como signos os temas abstratos (1986, 347), distinguindo-os dos temas que poderão corresponder a uma “representação simbólica por transformação única [...] dum objeto ou de um ser” (1986, 347)45. Ou seja, o autor valoriza a reiteração das formas como critério para as definir como signos. Mas não poderão os conjuntos de traços indeterminados corresponder a formas que se repetem constantemente nos painéis, associadas entre si por sobreposição?

De facto, o que parece ressaltar das definições que temos vindo a referir é que a distinção entre “traços indeterminados” e signos tem mais que ver com a existência de formas definidas a priori que com a existência, de facto, dessa mesma distinção. Na verdade, se olharmos para um painel onde se encontram uma série de sobreposições de animais, conseguimos reconhecê-los uma vez que as suas formas entram nos nossos esquemas apriorísticos. Mas suponhamos que nos encontramos perante um painel onde o que se verifica é uma sobreposição de signos... ora, umas das características destes conjuntos de traços indeterminados é precisamente, como referimos acima, serem compostos por “traits ou des taches polymorphes,

                                                                                                                         

45 Lorblanchet considera que a abstração “supõe uma intenção, um processo mental particular” (1993b,

211). Neste sentido a distinção de Vialou deixa de fazer sentido no contexto do pensamento deste último autor, porque os traços indeterminados poderão também eles corresponder a abstrações.

généralement multiples, souvent enchevêtrés et superposés” (Lorblanchet, 1993c, 235,

nosso sublinhado). É, isso aliás, que explica a manutenção dessas mesmas distinções até aos dias de hoje. Neste sentido, será de destacar a opção de Collado, que no seu estudo de Molino Manzánez, na abordagem que faz às figuras “esquemáticas”, não procede a qualquer tipo de distinção entre signos e traços indeterminados, criando, no entanto, duas categorias (“marañas” e “indefinido”) que acabam por corresponder aos “traços indeterminados” usuais (Collado, 2006, 244-245). Se bem que não concordemos com a categorização destes motivos como esquemáticos46, não deixamos de salientar a opção do autor de não proceder a uma separação entre signos e traços indeterminados.

Esta distinção entre signos e traços indeterminados coloca-nos perante outro problema, a saber — qual o papel destes grafismos na arte rupestre do paleolítico? Desta resposta dependeu, em larga medida, a valorização deste fenómeno gráfico ao longo da história da investigação. Assim, entre os primeiros investigadores, estes traços eram, de uma forma geral, simplesmente ignorados, na medida em que eram considerados como parasitas. Breuil, por exemplo, refere-os como “un fouillis de

gravures”, (1985 [1952], 159, fig. 122), “entrelacs” (1985 [1952], 253), “macaronis”

(1985 [1952], 254), não deixando, na maior parte das vezes, de os ignorar totalmente (Lorblanchet, 1993c, 238).

Laming-Emperaire, como nos diz Lorblanchet (1993c, 238), considera que em Lascaux podem definir-se traços intencionais e outros acidentais. Relativamente aos primeiros é de notar que verifica que são muito mais finos e discretos que aqueles que configuram figuras, sobrepondo-se muitas das vezes a estes últimos (1962, 266). Este aspeto é interessante porquanto tal parece contradizer Breuil que considerava que a maior parte destes traços eram aurignacenses (v. g. 1985 [1952], 159, fig. 122). Ora, esta ilusão pode dever-se precisamente às características dos traço — sendo estes mais finos e menos profundos que os que definem figuras, parecem sempre sobrepostos por aquelas. A mesma situação tem levado a que no Côa se tenha vindo a considerar que todos estes grafismos ocupam sempre a base figurativa dos painéis (Baptista, 1999b, 25). Contudo, tal pode não ser assim; de facto, como em Lascaux,

                                                                                                                         

46 Porque, como defende Lorblanchet, “une représentation est schématique lorsqu’elle réduit le modèle à ses traits essentiels. La schématisation est ainsi une interprétation du visible qui omet le fortuit pour mettre l’accent sur le permanent et l’essentiel” (1993b, 211); ora, nada nas figuras categorizadas por

no Côa os “traços indeterminados” são sempre mais finos e menos profundos que aqueles que formam figuras (sejam elas picotadas ou mesmo incisas) o que poderá provocar a ilusão de uma sobreposição. Neste momento pensamos não poder dizer, apenas pela observação macroscópica, quais as relações estratigráficas que envolvem este tipo de motivos.

De qualquer modo, será de reter que Laming-Emperaire intui uma significação destes traços, admitindo que poderão corresponder a simulacros de golpes ou feridas, ou mesmo à destruição de figuras (1962, 266).

L. Pales, como refere Lorblanchet (1993c, 238-239), tem o condão de chamar a atenção dos investigadores para este tipo de grafismos, apelando a que não sejam ignorados nos levantamentos que se fazem (Pales, 1969, 44), apelo esse que, felizmente, se fez ouvir. Admite que estes traços “ont pu avoir entre eux quelque

relation dans l’esprit du graveur” (1969, 29).

Leroi-Gourhan, também referido por Lorblanchet (1993c, 239) nunca utilizou a expressão. Contudo, identifica em ambientes subterrâneos o que chama de painéis de “contornos inacabados” (Leroi-Gourhan, 1995 [1965], 204-207); estes painéis situar- se-iam nas imediações das primeiras grandes composições e após os primeiros animais ou signos da entrada (idem, 204). Seriam compostos por “de méandres, de

faisceaux, de traits en “comètes", de lignes de bâtonnets gravés, de figures d’animaux souvent très incomplètes, mais parfois très finement exécutées” (idem, 204). Mais à

frente diz-nos algo de alta importância para a estratégia de inventariação de unidades não figurativas pela qual optámos: “On trouve dans ces surfaces les mêmes sujets que

dans les compositions centrales, mais exécutés avec moins de soin, le plus souvent réduits à des courbes dorsales d’animaux et à des signes griffonnés” (idem, 205,

nosso sublinhado). Para este autor, estes painéis seriam o testemunho mais cabal dos ritos que se passariam nas grutas, uma vez que refletiam as ações de gravar e acumular o mesmo tipo de figuras encontradas nas composições principais, ações essas levadas a cabo durante esses mesmos ritos (idem, 207). Refira-se ainda que Leroi-Gourhan chegou a considerar os “contornos inacabados” e feixes de traços como uma categoria de signos (1958, 314).

Lorblanchet, pela sua parte, considera um erro isolar este tipo de traços dos restantes motivos que compõem o “tecido gráfico” dos sítios (1993c, 240), encarando estas composições como manifestações gráficas de mitologias da criação, que refletiriam o nascimento das formas a partir do informe (idem, 240). É desta forma

que ainda hoje interpreta, por exemplo, alguns conjuntos (designadamente digitados) de Pech-Merle (Lorblanchet, 2010, 166).

Lorblanchet (1993c, 240), no seu trabalho sobre os traços indeterminados refere ainda o trabalho de P. Foucher (1991). Um pouco na linha de Leroi-Gourhan, este autor considera os traços indeterminados como a expressão de ritos ligados às manifestações parietais. O próprio Lorblanchet tem vindo a valorizar esta interpretação, definindo como uma categoria de motivos as “marcas rituais”. Destaque-se a este nível o seu estudo sobre a gruta de Roucadour (Lorblanchet, 2010, 335-365).

De tudo o que atrás foi dito, devem salientar-se alguns aspetos: a necessidade de não ignorar estes grafismos; a dificuldade da sua delimitação enquanto unidades gráficas; a possibilidade de corresponderem a fenómenos que se prendem com comportamentos rituais sobre os painéis; a possibilidade (que não se opõe à anterior) destes conjuntos corresponderem a concentrações de motivos, figurativos ou não, que se encontram de forma mais definida noutros painéis.

No caso do Côa tem-se vindo a apontar a escassez de signos, a par de uma dificuldade “em isolar motivos quando não sejam bem objetivados” (Baptista, 2009a, 108), devendo-se tal à “profusão de linhas bastante comum em muitos dos painéis” (idem, 108), ou, dito de outra forma, à grande quantidade de traços indeterminados existentes no vale do Côa.

Os dois parágrafos anteriores justificam as opções que tomámos na inventariação a que procederemos: não distinguiremos “traços indeterminados” de “signos”, sendo cada unidade identificada categorizada simplesmente como “unidade gráfica não figurativa”. Assim, assumindo a hipótese de Leroi-Gourhan referida acima (a de que estes painéis correspondem a uma amálgama de motivos figurativos e signos), procuraremos identificar as unidades básicas que conformam estes conjuntos. Essas unidades corresponderão às formas apriorísticas que aparecem referidas na bibliografia como “signos”. Ou seja, utilizaremos no estudo destes conjuntos a mesma estratégia que no estudo dos conjuntos que envolvem grandes concentrações de animais; simplesmente neste último caso as formas apriorísticas são as formas animais. Temos perfeita consciência da subjetividade imanente à identificação destas formas apriorísticas nos conjuntos de traços que estudaremos (Fig. 2.3), razão pela qual procuraremos explicar os critérios que se encontram na sua base. Estes são: critérios de simetria (v. g. um par de traços paralelos, uma forma cruciforme),

critérios de convergência (v. g. um ângulo); critérios técnicos (está o motivo por nós isolado constituído por traços de iguais características?) e critérios de reiteração. A relevância dos resultados acabará por ser testada mediante os testes estatísticos que daremos a conhecer perto do final deste trabalho.

Como referimos, as unidades básicas que procuraremos isolar são as formas comummente designadas como signos. O termo signo é utilizado em arte rupestre47 desde pelo menos 1901, tendo sido introduzido por Capitan e Breuil durante uma das sessões de apresentação da gruta de Combarelles na Academia das Ciências francesa (Capitan & Breuil, 1901c, 1042-1043); como refere Sauvet (1993b, 219), o termo foi paulatinamente adoptado pelos pré-historiadores, sendo o seu uso praticamente universal. De acordo com Sauvet, considera-se como um signo “tout tracé dans lequel

nous ne reconnaissons pas d’intention figurative, sans que cela préjuge de l’existence ou non d’une telle intention” (Sauvet, 1993b, 219). É interessante notar que dentro

desta definição (também adoptada, por exemplo, por Alcolea & Balbín, 2006a, 32) cabem perfeitamente os chamados “traços indeterminados”. Talvez, por isso, por si só esta definição não encontre uma aceitação tão generalizada. Por exemplo, Vialou, como vimos acima, chama a atenção para a reiteração, algo com que também concordamos.

Não nos querendo alongar sobre a evolução dos significados atidos aos signos ao longo da historiografia, algo sobre o qual já Sauvet se pronunciou (1993b), debruçar-nos-emos agora sobre o quadro tipológico de signos (no nosso caso, unidades gráficas não figurativas) que adoptámos ao longo deste trabalho. Comungando com Sauvet a necessidade de uma tipologia suficientemente ampla, para que os resultados sejam relevantes, e suficientemente reduzida, para permitir extrair conclusões de ordem estatística (1993b, 224), optámos pela tabela proposta por este autor e seus colaboradores (Sauvet, Sauvet & Wlodarczyk, 1977). Esta proposta foi também a adoptada por Alcolea e Balbín (2006a, 32) no estudo de Siega Verde, algo que é um fator de suma importância se pretendemos estudar a arte paleolítica de ar livre num contexto regional mais vasto.

Refira-se apenas que o sistema não será utilizado tel quel (Fig. 2.4). Desde logo acrescentaremos quatro subtipos à sua chave IX (IXaa: chevron apontado para cima com um lado maior que outro; IXab: chevron apontado para cima com projeção a

                                                                                                                         

partir do vértice; IXba: chevron apontado para baixo com um lado maior que outro; IXbb: chevron apontado para baixo com projeção a partir do vértice); por outro lado, pensamos que a sua chave XI deve ser dividida em subchaves mais discriminatórias. Assim, propomos a subdivisão desta chave em traços simples (XIa), pares de traços (XIb), feixes (XIc) e alinhamentos de traços (XId); finalmente refira-se a necessidade de acrescentar uma chave: a das linhas onduladas (chave XIII), que se deverá dividir entre ondulados (XIIIa) e meandros (XIIIb).