• Nenhum resultado encontrado

3. A classificação do corpus gráfico 114

3.1. As abordagens estilísticas nos estudos de arte paleolítica 115

3.1.1. Antes das primeiras datações diretas de pinturas 115

3.1.1.3. Leroi-Gourhan 120

Como Laming-Emperaire, Leroi-Gourhan desvaloriza as sobreposições como elementos de grande valor cronológico, considerando que os exemplos de sobreposições significativas a este respeito são raros (Leroi-Gourhan, 1995 [1965], 147, 257-258). Como aquela autora, releva a necessidade de não se hipervalorizar, como marcadores cronológicos, determinadas características das figuras tomadas isoladamente, como seria o caso da “perspectiva torcida” (idem, 147-148). O autor, também partindo da série de equivalências que Laming-Emperaire tinha observado entre as diversas fases dos dois ciclos de Breuil, critica profundamente o valor cronológico atribuído por este último às diferentes técnicas, demonstrando com vários exemplos, a não validade daquele critério (idem, 250-251).

Os alicerces fundamentais da sistematização estilística de Leroi-Gourhan são as peças de arte móvel e as obras parietais (fragmentos ou painéis) aparecidas em, ou sob, camadas arqueológicas bem datadas (Leroi-Gourhan, 1995 [1965], 255-257). De

crucial importância foi a observação de que as únicas obras parietais ao ar livre descobertas em estratigrafia correspondiam a exemplos que iam do Aurignacense ao Solutrense, com alguns exemplos (Cap Blanc e Roc aux Sorciers) do Magdalenense III e Teyjat do Magdalenense V-VI. Por outro lado, ao longo do período onde no exterior não se encontravam fragmentos de parede ou painéis historiados, abundavam as peças de arte móvel com motivos muito semelhantes aos que se encontravam no interior das grutas (idem, 256-257). Estas duas observações levaram o autor a propor a hipótese de que aos santuários exteriores se seguiram os profundos, passando a experienciação da mitografia presente nestes últimos a dar-se no quotidiano sob a forma de arte móvel. Por outro lado, esta ideia, vai influir no argumento do “aprofundamento dos santuários sucessivos”, de que falaremos em seguida.

O “aprofundamento dos santuários sucessivos”, as “sobreposições” e as “anotações” constituem-se como um tipo de argumentos que Leroi-Gourhan vai utilizar para defender a sua proposta cronológica, tipo esse que o autor designa como de “posicionamento”. Relativamente às sobreposições, como já referimos, o autor considerava existirem poucos casos em que esta forma de relação entre figuras fosse “significativa” do ponto de vista da cronologia, algo que denunciaria o respeito dos artistas paleolíticos pelas obras anteriores (idem, 257). Ora este aspeto, aliado ao processo de “aprofundamento do santuários” leva o autor a considerar que se poderão encontrar diversos santuários na mesma gruta, que se vão deslocando para o interior da gruta à medida que os painéis mais perto do exterior se vão historiando (idem, 258). As “anotações” correspondem a pequenos arranjos de detalhe com vista a adequar os santuários mais antigos às exigências do momento, podendo dar-se sob a forma de acrescentos de motivos (Ebbou), transformação de animais (Combarelles) ou atualização formal de um dado conteúdo semântico como seria a substituição, em Lascaux, de antigos signos femininos por claviformes (idem, 259).

O último grupo de argumentos brandidos pelo autor prendia-se com a evolução dos signos. As mãos, que eram consideradas signos por Leroi-Gourhan, datariam das fases mais antigas do Paleolítico superior, uma vez que apareciam apenas em contextos que o autor considerava do estilo II e III (Leroi-Gourhan, 1995 [1965], 259- 260). Relativamente aos restantes signos, Leroi-Gourhan tinha consciência que as figuras bem datadas eram provenientes apenas dos contextos mais antigos (estilos I e II) e mais recentes (estilo IV recente), sendo a datação dos signos dos estilos intermédios dada pela relação deste tipo de figuras com os animais respetivos. Assim,

a evolução dos signos poderia caracterizar-se pela progressiva geometrização das formas genitais, desde o realismo dos estilos I e II até às formas mais abstratas dos períodos III e IV antigo, acabando com um parcial retorno a formas mais realistas durante o IV recente (idem, 260-261).

Contrariamente a Laming-Emperaire e a Breuil antes dela, o autor considerava que a evolução estilística da arte paleolítica era linear, podendo caracterizar-se brevemente da maneira que em seguida se apresenta.

Período I (Leroi-Gourhan, 1995 [1965], 279): Integra todos as manifestações artísticas anteriores à aparição do estilo II, tendo sido atribuída ao Chatelperronense, ao Aurignacense e ao Gravettense antigo. As manifestações gráficas do Chatelperronense e do Aurignacense corresponderiam apenas a traços desconexos (“griffonnages”), aparecendo as primeiras “silhuetas coordenadas” durante o Aurignacense evoluído e o Gravettense antigo. As figuras animais reduziam-se essencialmente às cabeças, quartos dianteiros e bordos dorsais, associando-se a figuras vulvares, pontos e barras. Segundo o autor, não se conheciam exemplos parietais deste período, mas apenas fragmentos de osso e de placas de pedra. Os temas seriam já os clássicos, destacando-se a associação do bovino com o cavalo, do mamute com o cavalo e das vulvas com os pontos.

Período II (Leroi-Gourhan, 1995 [1965], 280): Surgiria no Gravettense, prolongando-se pelo Solutrense, sendo difícil perceber o exato momento em que seria já possível falar-se de estilo III. Alguns santuários profundos (Gargas) seriam deste período, embora esta arte fosse, essencialmente, de exterior. As figuras animais caracterizavam-se pelas cérvico-dorsais altamente pronunciadas, com a zona dianteira a corresponder a mais de um terço deste elemento anatómico, o que conduziria à hipertrofia dos quartos dianteiros. Este procedimento aplicava-se a todos os animais, que seriam particularizados por pequenos arranjos do contorno e pela adição de detalhes próprios de cada espécie. A importância da curva cérvico-dorsal atestava-se não só pela sua uniformidade ao longo de uma vasta área geográfica, como também pela predominância da mesma entre os painéis de “contornos inacabados” contemporâneos dos estilos II e III. A acentuação das curvas verificava-se também nas figuras humanas, essencialmente esculturas e baixos-relevos, onde a tónica era colocada nos torsos, seios, ancas e abdómenes. Entre os signos, observava-se formas ainda próximas das vulvas, pontos e barras do estilo I (Leroi-Gourhan, 1995 [1965], 282). Algumas mãos datariam também deste período (idem, 282).

Período III (Leroi-Gourhan, 1995 [1965], 281-283): Era atribuído ao Solutrense e aos inícios do Magdalenense. Durante este período, a curva cérvico-dorsal suavizar- se-ia subtilmente, desaparecendo a uniformidade anterior, comum a todas as espécies. A representação de movimento surgia mediante a utilização de “convenções específicas” que não afetavam o animal na sua totalidade, incidindo antes na “deslocação isolada” de elementos da figura, como seriam as patas. Os detalhes corporais começariam a precisar-se, embora a curva cérvico-dorsal continuasse a ser a forma chave. Durante este período, a escultura atingiria o seu ápice, e entre as figuras pintadas observava-se já o preenchimento interno a vermelho, de motivos delimitados a negro ou por meio de gravura. Os signos associados a estes animais seriam os mais complexos e abstratos de todo o Paleolítico superior, adquirindo um carácter decorativo como seriam os brasões de Lascaux, os aviformes de Pech-Merle ou os tetiformes de La Mouthe ou Castillo. As figuras humanas associavam-se intimamente aos motivos referidos anteriormente, enquanto as mãos se continuariam a representar. O período III caracterizar-se-ia também pela identificação de divisões regionais nítidas, referindo o autor as regiões do Périgord, do Lot, a região cantábrica e o Ardèche.

Período IV (Leroi-Gourhan, 1995 [1965], 283-288): Segundo Leroi-Gourhan, impunha-se a divisão entre um estilo IV antigo e um estilo IV recente. O primeiro teria sido vigente ao longo do Magdalenense III e IV. Ao nível da forma geral ainda subsistiria alguma desproporção entre quartos dianteiros e traseiros, entre ventres e patas. Dar-se-ia o aparecimento do traço modelado e do dégradé, passando o volume a ser representado mediante um jogo entre zonas preenchidas e não preenchidas dos animais. O estilo IV antigo caracterizava-se ainda pelo convencionalismo extremo dos detalhes, verificado essencialmente ao nível dos modelados de bochechas, olhos, cornos ou flancos (o “M” ventral nos cavalos, por exemplo). A aproximação ao real dar-se-ia mais por via do detalhe que pela forma, ainda muito ancorada na tradição anterior. O estilo IV recente teria sido vigente ao longo Magdalenense V e VI e a aproximação ao real dar-se-ia-se pela conformação da forma em detrimento do detalhe, perdendo-se assim a predominância da curva cérvico-dorsal relativamente ao restante corpo do animal. Se os animais “sont d’excellentes photographies, vrais en

proportions et en mouvement […] les figures sont souvent vides de tout détail, hormis les yeux et quelques traits essentiels” (Leroi-Gourhan, 1995 [1965], 286).

precedente. As grutas começariam gradualmente a ser abandonadas, passando as mitografias a ser representadas essencialmente na arte móvel.

Este quadro crono-estilístico foi o que dominou os estudos de arte paleolítica até aos anos noventa62. Entretanto, com a acumulação de novos dados e, particularmente, com a possibilidade de se proceder a datações absolutas de pinturas, nem este nem nenhum dos esquemas anteriormente referidos sobrevive tel quel à crítica. Poderá este facto deitar por terra a validade da comparação estilística como ferramenta de datação, obrigando-nos de facto a entrar numa “era pós-estilística” (v.g. Lorblanchet & Bahn, 1993)? A resposta a esta pergunta não é unânime. Pelo menos três correntes são reconhecíveis atualmente: uma que recusa qualquer tipo de datação estilística; uma que defende a análise crítica de algumas das recentes datações absolutas e a validade em termos gerais do quadro crono-estilístico de Leroi-Gourhan, não deixando de admitir uma atualização e modificação pontual do mesmo; uma terceira que, criticando em grande parte o quadro de Leroi-Gourhan, defende a validade da comparação estilística, devendo-se, no entanto, ter em conta as novas datações.