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2. CONCUBINATO E IGREJA: A PERSEGUIÇÃO NAS VISITAS PASTORAIS

2.2 AS DENÚNCIAS

2.2.2 AS VISITAS PASTORAIS E AS DISPENSAS MATRIMONIAIS

Sheila Faria ao estudar os processos de banhos no período colonial encontrou inú- meros impedimentos matrimoniais. Mas, tal fato, entretanto, de acordo com a autora, não desestimulava os casamentos, visto que a apelação para testemunhas – “tidas como fidedignas e residentes, e para fianças monetárias, no caso dos mais ricos.”133 – foi um ato comum para resolver essas questões.

As testemunhas eram chamadas para todos os eventos: comprovar casamentos, fale- cimentos de cônjuges e batismos, atestar o estado de solteiro e comprovar que a pessoa era a mesma que se afirmava ser, sobretudo, os migrantes recém-chegados. A garantia em obrigação de pagamento estipulado pela Igreja também ajudava a solucionar os problemas, mas nem to- dos podiam pagar por isso. Estas pessoas argumentavam a pobreza em que viviam a fim de conseguirem a dispensa necessária. E conseguiam, pois, em nenhum processo, os pedidos feitos foram negados.134

Contornar os impedimentos, segundo Sheila Faria, era tarefa fácil. As dispensas eram dadas se o casal pagasse penitências, fizesse orações, acompanhasse missas, saldasse os custos das dispensas em moeda, no caso dos mais ricos, ou em prestação de serviços, no caso dos mais pobres. Enfim, para a maioria da população colonial, o casamento, mesmo na apre- sentação de impedimentos, poderia ocorrer, desde que se soubesse contornar os entraves impostos pela Igreja.135

133 FARIA, op. cit., p. 59. 134 Idem.

135 A própria Sheila Faria cita o trabalho de Ronaldo Vainfas sobre a grande quantidade de bígamos, no período colonial,

Nas visitas pastorais de 1811-1813, ocorreram inúmeras dispensas matrimoni- ais. Em várias freguesias, o visitador dispensou os casais impedidos, inclusive concubinos que acabaram se casando, como na freguesia de Santo Antônio da Jacutinga, em 1812. Segundo o visitador:

... vi chegar na minha presença quatorze parelhas de noivos (...). Ficam habilitados quase outros tantos, passando-se nove provisões de dispensa para essa freguesia e para as do Iguaçu e a do Meriti. Os concubinários denunciados desta freguesia com- pareceram todos e assinaram termo (...) ou casaram, como fez com efeito o célebre João Pereira Ramos (...) rico filho de Inácio de Andrade.136

A visita dispensou 375 casais, sendo que a maioria vivia em concubinato (cf. tabela 2.5).

TABELA 2.5

(Livro das visitas pastorais nº 13, 1811- 1813. ACMRJ.) Ano 1811 1812 1813 Total Nº de dispensados 110 224 41 375

Dispensas de impedimentos das visitas pastorais, entre os anos de 1811-1813

Lembramos que a dispensa de impedimento presente nas visitas pastorais tinha uma estrutura simples. O visitador se preocupava em anotar o nome da pesquisa, a data em que a dispensa foi dada, o tipo e o grau de impedimento existente entre os nubentes (dirimente de afinidade, consangüinidade ou cópula ilícita; 1o, 2o e 3o graus), o nome dos favorecidos, o local em que foram batizados e aquele em que viviam.

As dispensas de impedimento canônico, presentes nas devassas eclesiásticas de 1811-1813, diferem dos processos de banhos estudados por Sheila Faria.137 Tais processos são muito ricos em informações sobre os nubentes, situação inversa à encontrada nas dispensas estudadas por nós. Em razão da própria estrutura de nossas fontes, não podemos tirar con- clusões abrangentes sobre os concubinos dispensados durantes as devassas de 1811-1813, no Bispado do Rio de Janeiro.

O bispo tinha o poder de dispensar gratuitamente os mais pobres. Esse fato atraia pessoas oriundas de outras regiões que desejavam obter dispensa matrimonial. Em 1811, na freguesia de Resende ou Campo Alegre, o visitador recebeu forasteiros de São Paulo e de Minas Gerais. Aproveitando-se da sua presença na região, eles queriam ser dispensados dos impedi- mentos para poderem se casar. Sem sucesso algum, esses homens foram desconsiderados pelo visitador, que julgou a atitude deles uma tentativa para enganá-lo. de acordo com o visitador:

Desprezei centenas de requerimentos que queriam casar por pobres, mas que eram forasteiros de São Paulo, e de Minas, e que não juntavam banhos de suas pátrias, nem justificavam verbalmente por duas testemunhas seus estados livres, nem alguns eram conhecidos em Resende. Supunha-se mesmo, terem vindo de propósito enganar-me, dizendo-se uns de Lorena, outros de Guaratinguetá, outros de Mogi Iguaçu e Mogi Mirim, outros de Pindamonhangaba, outros de São João de Queluz, outras da cam- panha de Airuoca de Minas. Por isso casaram (...) apenas 14 parelhas de noivos, ficando poucos mais habilitados para isso.138

O relato do visitador não deixa dúvida: havia a existência de uma grande deman- da pelas dispensas matrimoniais. A dificuldade de conseguir a documentação necessária para o matrimônio ajuda a explicar esse fato. Assim, muitos forasteiros, que não podiam provar a moradia fixa no local por seis meses no mínimo – tempo exigido pela Igreja na

137 FARIA, op. cit., p. 58-61.

época para poder casar um indivíduo –, nem apresentar os documentos necessários ou as testemunhas que comprovassem serem livres para se casar, recorriam à visita para formali- zar a sua união consensual.

É compreensível o fato de o visitador atento suspeitar de um grande número de pessoas que desejavam se casar, justamente quando a visita encontrava-se nessa freguesia loca- lizada na região fronteiriça com São Paulo e Minas Gerais. Em 1812, na freguesia de Maricá, mais uma vez ele agiu com cautela. Confiramos:

...por fim, dispensei muitos noivos, não só porque já não havia tempo de averiguar quais circunstâncias, e por evitar nulidades, mas por entender que todo o mundo se queria casar ou bem, ou mal por evitar despesas com horrível detrimento da Câmera Eclesiástica. 139

A comparação entre o número de dispensas dadas no ano de 1811 – 110 ao todo – e o caso ocorrido em Campo Alegre permite-nos relativizar o argumento de Sheila Faria sobre a facilidade de se obter dispensa matrimonial. Já que é possível que a dispensa pastoral não fosse tão fácil de se conseguir nas regiões fronteiriças, ou seja, nas áreas de franca expansão econômi- ca, de povoamento relativamente novo, vivendo o boom econômico, receptoras de migrantes em grande número com predominância masculina.

Nos processos de banhos estudados por Sheila Faria, quando o indivíduo não tinha a documentação exigida para se casar, ele recorria a um testemunho sobre o seu batismo ou estado matrimonial. Mas, isso, certamente, só ocorria, porque a área era rural, e as pessoas tinham laços mais estreitos do que os indivíduos que viviam perambulando por entre as zonas fronteiriças, como Campo Alegre, no período colonial. Nessas regiões, onde a predominância de migrantes do

sexo masculino era grande, nem sempre o indivíduo contava com pessoas que testemunhassem sobre o seu estado matrimonial. De tal modo, era no momento da visita pastoral, que muitos concubinos, os quais viviam em áreas fronteiriças sem laços mais estreitos com os habitantes locais, podiam tentar derrubar os impedimentos canônicos, que os impossibilitavam de se casar.

Assim, a diferença crucial entre o trabalho de Faria e o nosso, no que diz respeito à abrangência da dispensa matrimonial, reside no tipo de localidade em que cada pesquisa foi feita. Nas áreas rurais estudadas por Faria elas eram conseguidas mais facilmente, ao contrário das áreas fronteiriças estudadas por nós.

Além disso, nas fontes estudadas por nós, houve menção à presença de pessoas oriundas de outras províncias – Minas Gerais e São Paulo – que se dirigiram à visita episcopal, quando ela se encontrava em Campo Alegre, freguesia fronteiriça às regiões citadas. Esse dado é um indício para considerarmos que nem sempre a visita pastoral era fácil de ser obtida, pelo menos nas áreas fronteiriças e atrativas a um grande número de forasteiros.

2.3 VISITAS PASTORAIS E JUSTIFICATIVAS