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4. O PROCESSO DE LEGITIMAÇÃO NO TRIBUNAL DO DESEMBARGO DO PAÇO, RIO DE JANEIRO,

4.3 AS DISCORDÂNCIAS FAMILIARES

A legitimação através do Tribunal do Desembargo do Paço previa a concordância familiar até o 4º grau de parentesco. Assim, os parentes de todos os perfilhantes eram chamados pela Mesa do Desembargo do Paço para responder sobre a conveniência da legitimação.

Para o perfilhado e sua família, esse era um momento delicado. Foi queixa comum entre os perfilhantes a dificuldade de encontrar todos os parentes até o quarto grau para serem ouvidos pelo Desembargo do Paço. Os argumentos eram variados: a distância que os separavam ou até o desconhecimento de quem eram os parentes no grau exigido pelo tribunal. Esse foi o caso de José Maria Salter de Mendonça, filho do Desembargador José Mascarenhas Salter de Mello e Mendonça, que, em 1810, entrou no Desembargo do Paço para requerer a sua legitimação e a de seu irmão.284 Em sua petição, ele afirmou que

... requerendo a graça de sua perfilhação, se lhe deferiu ultimamente fossem primeiro ouvidos todos os seus parentes até o quarto grau (...) por cuja razão se vê obrigado a expor a V.Rª, que , além de não saber quais eles sejam todos, existem os de que tem notícia em Portugal por diversas partes, de sorte que atendidas as atuais circunstânci- as e as moradias de cada um é quase impossível ou pelo menos dificultosíssimo serem eles ouvidos ...285

Aflito, José Maria Salter de Mendonça implorou ao Príncipe Regente que dispensas- se a audiência familiar, alegando que “ao parente mais próximo fica sempre o direito reservado para a todo o tempo impugnar querendo.”286

284 Processo de perfilhação, caixa 127, pacote 1, documento 10. Tribunal do Desembargo do Paço, 1810. ANRJ. 285 Idem.

O pedido foi negado. A situação só se resolveu quando o interessado encontrou uma prima de terceiro grau, dona Ana Ludovina Mascarenhas de Mello, segundo o tribunal, “única parenta do impetrante nesse continente”.287

Ela concordou com a legitimação, pondo fim ao processo. A recusa da família à perfilhação, às vezes, ocorria. O não comparecimento ao tribunal foi uma forma indireta de dis- cordar do processo. Essa atitude poupava os familiares de um embate direto com o parente, embo- ra não resolvesse a questão. Esse foi o caso do já mencionado sargento-mor João Pereira de Lemos e Farias que perfilhou a filha natural Ana Maria da Apresentação. Seus irmãos, o padre Francisco Pereira de Lemos, José Joaquim Pereira de Lemos, o cunhado capitão José Antunes Suzano, casa- do com a sua falecida irmã Maria Teresa de Jesus e os 12 sobrinhos foram chamados ao Desembargo do Paço para responder sobre o pedido de legitimação.288 Os parentes precisavam comparecer ao tribunal no prazo de três dias para se pronunciar sobre a legitimação. Eles acabaram não o fazen- do.289 Infelizmente, foi impossível saber a decisão do tribunal sobre o problema.

4.3.1 AS BRIGAS EM FAMÍLIA

A legitimação solene previa a transmissão da herança, do sobrenome, de privilégios e de outros direitos ao filho pelo pai, o qual deveria expressar o seu desejo formalmente. Em geral, a postura da família era a de concordar integralmente com as determinações do legitimador. Alguns casos, contudo, mostraram o contrário, e as razões eram as mais variadas. Filhos legíti-

287 Idem.

288 Processo de perfilhação, caixa 126, documento 01. Tribunal do Desembargo do Paço, 1807. ANRJ. Os sobrinhos do

perfilhante são: João, José, Manoel, Francisco, dona Maria, dona Ana, filhos de José Joaquim Pereira de Lemos; e José Antunes, João Antunes, Manoel Antunes, Francisco Antunes, dona Victória e dona Maria, filhos do capitão José Antunes Suzano.

290 Idem. 291 Idem.

292 Processo de perfilhação, caixa 126, documento 01. Tribunal do Desembargo do Paço, 1807. ANRJ. A mãe se chamava

Emerenciana Rosa da Conceição, e os irmãos eram Jacinto José dos Reis, Rita Rosa dos Reis, Albino José dos Reis e Luís José dos Reis.

293 Processo de perfilhação, caixa 124, documento 17. Tribunal do Desembargo do Paço, 1823. ANRJ.

mos de nobres, normalmente, concordavam com uma legitimação parcial, isto é, desde que os seus direitos e prerrogativas não fossem afetados.

Discussões familiares antigas, sobretudo aquelas ligadas às questões envolvendo herança, exerceram influência na decisão familiar quanto à legitimação. Esse foi o caso do se- gundo-tenente da Armada Imperial Camilo Caetano dos Reis, pai de Ernesto Augusto dos Reis, seu filho natural com uma mulher livre e desimpedida. No processo que moveu em 1823, ele afirmou que

... por perfeito conhecimento de que o dito menor Ernesto Augusto dos Reis é seu filho, por tal o declara, para que o mesmo possa haver dele, outorgante, todas as honras, privilégios, direitos e ações e todos os seus bens, que atualmente tem ou possa haver para o futuro por qualquer instrumento que seja como se de legítimo matrimônio houvesse nascido, cuja declaração lhe faz muito de sua livre vontade sem constrangimento ...290

Ernesto nasceu e foi batizado em Lisboa, onde os pais moravam na ocasião do seu nascimento. O nome da sua mãe foi ocultado pelo seu pai, mas sabe-se que ela era solteira e desimpedida.291

Ao retornar ao Brasil, o segundo-tenente Camilo Caetano Reis trouxe o filho para viver em sua companhia no Rio de Janeiro, onde a mãe e quatro irmãos do segundo-tenente moravam.292 O desejo do pai, no ato da legitimação, era tornar o filho seu herdeiro pleno, mas isto não dependia só dele. Sua mãe discordou da ação e, como justificativa, afirmou haver nesse ato “sentimentos de ódio contra a família”293.

A razão para isso seria a discordância dele com a partilha de bens do pai, o capitão Camilo Caetano dos Reis, que levou a família a discutir judicialmente. A mãe do segundo- tenente, dona Emerenciana Rosa da Conceição, afirmou ao Desembargo do Paço que

... tenho a dizer que a pretensão (...) de meu filho, se é por dever de consciência, e da obrigação das Leis Divinas e humanas (...) é mais do que justa; porém se é com ódio e rancor que tem contra mim e contra quatro irmãos pelas (...) partilhas por morte de seu pai, meu marido (...) então (...) a pretensão é criminosa e ofensiva às leis ...294

O processo continuou, e dona Emerenciana se negou a concordar com a legitimação do neto. A leitura do processo nos pareceu que, se havia alguém interessado em se vingar, era ela e, não, o filho. Camilo cobrou da mãe contas descontadas da parte dos herdeiros na partilha de bens do pai. Infelizmente, não há informações detalhadas no processo de legitimação sobre a discussão judicial entre mãe e filho, mas é possível conjecturar que o desconto foi indevido.295 Além disto, ele mandou penhorar os bens da mãe, provavelmente para assegurar a sua legítima paterna.296 Com tantos problemas com o filho, dona Emerenciana sentiu-se no direito de negar- lhe a legitimação do filho ilegítimo. Os irmãos de Camilo não se opuseram ao processo, tendo todos assinado favoravelmente à legitimação.

294 Processo de perfilhação, caixa 124, documento 17. Tribunal do Desembargo do Paço, 1823. ANRJ. Depoimento de dona

Emerenciana Rosa da Conceição.

295 Processo de perfilhação, caixa 124, documento 17. Tribunal do Desembargo do Paço, 1823. ANRJ. dona Emerenciana

afirmou que o litígio pela herança do marido encontrava-se nos Autos de Execução e Penhora no Juízo de Órfãos, Cartório do Escrivão José de Sousa Coelho. Segundo ela, o filho queria cobrar dela “contas com injustiça notável”. Dois de seus filhos foram condenados, segundo ela.

297 Processo de perfilhação, caixa 128, documento 34. Tribunal do Desembargo do Paço, 1822. ANRJ.

298 Todas as crianças tiveram como padrinhos José Manoel Machado de Souza e como Protetora Nossa Senhora. Esse

confirmou junto à mesa a filiação mencionada. Provavelmente, Salustiano morreu antes dos irmãos entrarem na justiça pleiteando a sucessão de bens do pai. Em ordem cronológica, os batismos dos suplicantes ocorreram nas seguintes datas: Benigna, 9 de maio de 1814; Bernardino, nascido e batizado em 20 de maio de 1816; Higino e Firmina, em 2 de agosto de 1817; Luís, em 25 de agosto de 1819, e Salustiano em 4 de outubro de 1821.