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2. CONCUBINATO E IGREJA: A PERSEGUIÇÃO NAS VISITAS PASTORAIS

2.2 AS DENÚNCIAS

2.2.1 O PERFIL DOS DENUNCIADOS

Fizemos uma análise do perfil dos denunciados. A primeira variável pesquisada foi a categoria social. Dividimos os denunciados de acordo com o sexo nas categorias livre, escravo, forro e índio (cf. tabela 2.3).

TABELA 2.3

Categorias sociais dos denunciados, divididas por sexo, entre os anos de 1811-1813

(Livro das visitas pastorais nº 13, 1811-1813. ACMRJ.)

Sexo masculino Sexo feminino

Categorias Sociais % % No No Livre 123 86.2 93 65.2 Forro 5 3.4 21 14.7 Escravo 2 1.3 13 9.1 Índio 2 1.3 4 2.7 Não identificado 11 7.8 12 8.3 Total 143 100 143 100 120 Idem.

Torres-Londoño assinalou, na pesquisa sobre as regiões mineradores de Cuiabá e Mato Grosso, que as mulheres denunciadas de concubinato eram, geralmente, as “desqualificadas” pela cor. Segundo ele, as mulheres presentes

... nas minas ou nas regiões de trânsito e fronteira, as mulheres desqualificadas pela cor ou por sua condição social eram as que mais viviam em relações de concubinato. Eram livres e pobres, como as mulatas, as forras, as índias ou as escravas, submetidas a regimes de dependência de seus senhores.121

O argumento de Torres-Londoño indica que a misoginia, a qual teria marcado as conquistas portuguesas não só no Brasil como em outras colônias, teria levado as mulheres índias, forras ou escravas para o concubinato. Assim, a pobreza extrema, a luta pela sobrevivên- cia e a ausência da família que lhe assegurassem a honra, empurravam essas mulheres para as relações consensuais.122

Torres-Londoño acredita, ainda, que o concubinato era prática usual dos homens de todas as categorias sociais, porém o mesmo não ocorria com as mulheres. Dessa forma, a ima- gem das escravas, índias e forras está associada, para esse autor, à de concubina.123

Os dados da tabela 2.3 contrariam a conclusão de Torres-Londoño sobre a maior participação de mulheres forras, índias e escravas em denúncias de concubinato. Verificamos que a categoria livre predominou, majoritariamente, tanto para o sexo masculino (86.2%), quan- to para o feminino (65.2%) (cf. tabela 2.3), logo podemos relativizar o argumento de Torres- Londoño. Não podemos, entretanto, afirmar com certeza que as mulheres livres denunciadas eram mestiças, por exemplo, já que não encontramos registro sobre a cor das pessoas. Esse silêncio nos leva a pensar que a categoria livre, cuja cor não é qualificada, englobava, inclusive, os não brancos.

121 TORRES-LONDOÑO, op. cit., p. 93. 122 Ibidem, p. 31-46.

Hebe de Castro, em uma análise sobre o significado da liberdade no sudeste escravista no século XIX, considerou que o uso

... das expressões “negro”e “preto” fazia-se então diretamente referindo à condição escrava atual ou passada (forro) (...) Os homens nascidos livres eram “brancos” (sem qualquer qualificação) ou “pardos” (normalmente, duplamente qualificados como “pardo livre” em oposição ao “pardo forro”).124

A mulher escrava ou descendente de cativos, portanto, não constituía em si a grande parte das denunciadas por concubinato nas visitas pastorais do Rio de Janeiro entre os anos de 1811 e 1813, mas, sim, as mulheres livres que poderiam ser brancas ou não. Possivelmente, algumas delas eram pobres que não tinham atrativos, como um dote, para despertarem o inte- resse no companheiro pelo matrimônio legítimo.

O concubinato funcionava para alguns desses casais como uma garantia de sobrevi- vência. Sheila Faria demonstrou, em um estudo sobre a família em áreas rurais do Rio de Janeiro colonial, que “em zonas agrárias, a presença da família, pelo menos a constituída pelo casal, era condição básica para o estabelecimento de unidades domésticas de produção, em particular para os mais pobres”.125

Hebe de Castro chegou a uma conclusão semelhante. Segundo ela, o acesso à família não deve ser tomado como um dado natural em uma sociedade na qual a migração e as relações

123 Ibidem, p. 37.

124 CASTRO, Hebe Maria de Mattos de. Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista – Brasil, século XIX. Rio

de Janeiro: Arquivo Nacional, 1993. p. 104.

125 FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

pessoais exerciam papéis estruturantes.126 Como o migrante recém-chegado precisava fixar-se na região e estabelecer laços,

... o casamento ou mesmo a relação consensual com uma caseira significava estabele- cer relações com uma família da região. Significava deixar de ser estrangeiro ou estra- nho à comunidade. Empregar-se como camarada ou jornaleiro era colocar-se provi- soriamente sob a proteção de um sitiante ou fazendeiro, mas constituir família retira- va o sentido de provisoriedade daquela situação e abria as portas para o acesso à roça de subsistência.127

Os registros de concubinato não revelavam, em geral, a origem geográfica do denunci- ado, nos impossibilitando concluir se eles eram ou não migrantes.128 As visitas percorreram uma extensa área rural do Bispado do Rio de Janeiro, onde, naturalmente, a presença de lavradores foi encontrada.129 Embora tenhamos limitações quanto aos nossos dados, alguns registros anotaram a ocupação econômica dos homens que foram acusados – 52 do total de 143.130

TABELA 2.4

(Livro das visitas pastorais nº 13, 1811-1813. ACMRJ.)

Ocupação de alguns homens acusados de concubinato, entre os anos de 1811-1813 Ano Lavrador % Artesão % Religioso % Administrador % Negociante %

1811 6 30 5 31.2 2 50 4 57.1 - -

1812 10 50 6 37.6 2 50 3 42.9 5 100

1813 4 20 5 31.2 - - - -

Total 20 100 16 100 4 100 7 100 5 100

126 CASTRO, op. cit., p. 63. 127 Ibidem, p.64.

128 Somente nove homens e três mulheres apresentaram a origem geográfica determinada, na visita. Interessante observar

que a mesma visita que recebia acusações sobre concubinato também dispensava as pessoas para se casar. Nessas dispensas, a origem dos nubentes era registrada, nos permitindo dizer que eram muitos os migrantes. Infelizmente, por falta de tempo, não efetivamos conclusões detalhadas sobre a relação entre migração e concubinato.

129 Verificar, em anexo, todas as freguesias percorridas.

130 Esse tipo de análise só pôde ser feito para o sexo masculino, pois, raramente, foram feitas anotações a esse respeito sobre

as mulheres. Encontramos 52 casos de homens com a ocupação registrada, sendo 17 em 1811; 26 em 1812 e 9 em 1813. (cf. tabela 2.4.)

A ocupação de lavrador foi a mais comum para todos os anos (cf. tabela 2.4). Essa categoria podia incluir homens livres e pobres que viviam como agregados de uma grande propriedade rural, até grandes fazendeiros. A imprecisão da fonte nos impede saber se eram ricos ou pobres. A definição de pobreza no período colonial é bastante difícil e só pode ser compreendida dentro dos parâmetros locais. O discurso da época, porém, definia a pobreza como “nada ter de seu”.131

O uso do argumento da pobreza como justificativa do concubinato foi feito pelos denunciados, inclusive por lavradores como Francisco da Silva Machado, morador na freguesia de São Salvador de Guaratiba. O visitador disse sobre ele que:

... comparecendo perante nós e no nosso secretário (...) por nome Francisco da Silva Machado e Joana Maria de Jesus, pública escandalosamente concubinados com mui- tos filhos, de cujo concubinato com muitos filhos, de cujo concubinato por miserável fragilidade senão podiam separar, mas desejavam (...) unir-se em legítimo matrimônio o que todavia não podiam fazer não por causa da sua grande pobreza, mas principal- mente por causa do impedimento dirimente de ter ele orador sido casado em primei- ras núpcias com a irmã da oradora Joaquina Maria da Lapa já defunta..132

O peso da questão econômica como justificativa de concubinato deve ser visto com cautela, pois a falta de recursos para se casar não parece ter sido a principal motivação pela qual as pessoas viviam em concubinato. O relato do lavrador Francisco da Silva Machado, morador da freguesia de São Salvador de Guaratiba, é claro: a pobreza não foi a causa do seu concubinato com Joana Maria de Jesus. Não temos informações precisas sobre a vida econômica dele, mas, sendo lavrador, possuía, no mínimo, acesso à terra para cultivar, nem que fosse como agregado

131 FARIA, op. cit., p.101.

de algum grande proprietário. Isso, por si só, já o eliminava do rol daqueles que “nada tinham de seu”, elemento definidor da pobreza no período colonial, como já verificamos.

É verdade que o valor das taxas matrimoniais era alto para a maioria da população durante o período colonial. Mas, esse fato não indica necessariamente que esses valores fossem proibitivos a determinados grupos sociais. A limitação de nossas fontes possibilitou-nos relativizar o peso da pobreza e das taxas matrimoniais para a maior incidência de concubinato e a menor de casamentos legítimos.

Ao se apresentarem ao visitador como lavradores, Francisco da Silva Machado e Joana Maria de Jesus, sua concubina, mostraram que a falta de recursos para poderem pagar o casamento na Igreja teve um peso relativo na sua união consensual. Havia tam- bém entre eles um impedimento canônico, o qual pesou ainda mais na decisão de conti- nuarem sendo concubinos.

O relato de Francisco da Silva Machado, portanto, relativiza o argumento do historiador Caio Prado Júnior – o de que a economia colonial destruía as bases de uma economia interna e jogava o homem livre pobre e o escravo na devassidão – e o de Ronaldo Vainfas – o de que a pobreza nesse período levava o cativo e o homem livre à promiscuida- de e às relações fortuitas.

O lavrador e a sua concubina viviam consensualmente há anos, visto terem muitos filhos. Além disto, tinham acesso ao cultivo da terra, nem que fossem como agregados de um senhor, potencializavam-na através da prole numerosa; por conseguinte tinham condições econômicas de se sustentarem e de criarem uma família. Explicitamente, o relato do denunci- ado afirma ser o impedimento canônico existente entre ele e Joana Maria a razão principal do seu concubinato.