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1. HISTÓRIAS SOBRE O CONCUBINATO NO BRASIL

1.2 FAMÍLIA E CASAMENTO NA EUROPA OCIDENTAL

Por muito tempo, os estudos históricos sobre a família européia serviram como modelos explicativos da História da Família das áreas coloniais. As altas taxas de nupcialidade e baixas de ilegitimidade eram em geral as características encontradas por alguns desses importan- tes estudos. Ao confrontarem os resultados dessas pesquisas com os da História da Família da Península Ibérica, os pesquisadores perceberam o quanto eles eram inválidos para explicarem a realidade dessa região. Em Portugal e na Espanha, ao contrário de outras regiões da Europa, o índice de casamentos era baixo e os nascimentos fora dele eram altos.

55 FURTADO, Júnia Ferreira. Chica da Silva e o contratador de diamantes: o outro lado do mito. São Paulo: Companhia das Letras,

Desde já vale esclarecer que a construção de modelos explicativos para a interpreta- ção da família ibérica mostrou que os baixos índices de casamento na região nada tinham a ver com os valores das pessoas. Questões ligadas à estrutura fundiária, à economia, à imigração masculina e ao sistema de herança é que de fato tiveram peso na conformação do padrão fami- liar ibérico. Robert Slenes, em sua tese de doutoramento de 1976, já havia levantado essas ques- tões apontando-as como fundamentais na compreensão da família na Península Ibérica e no Brasil. Mais recentemente, Ana Silvia Volpi Scott retomou essa problemática, enfatizando a questão da imigração, sobretudo masculina, para a áreas coloniais, como elemento essencial na compreensão da família portuguesa e colonial.

Nesse sentido, vale ressaltar a importância da retomada de modelos explicativos sobre a família européia, tanto da Península Ibérica, quanto da Europa norte-ocidental, para a compreensão da família colonial.

Desde os anos 70, a História da Família tem avançado graças à História Demográfica. Nascida na França e na Inglaterra, ela foi conquistando espaços em outras regiões do mundo e expondo as variadas formas que a família assumia na Europa.56

Nesse contexto, surgiram importantes trabalhos sobre a família européia. Um deles, o de John Hajnal, sugeriu a existência de uma linha imaginária que dividiria a Europa em duas partes. Segundo essa perspectiva, existiriam dois modelos familiares com características diferen- ciadas: um na Europa Oriental, outro na Ocidental.57 Outro trabalho importante, o de Peter Laslett, indicou a presença de quatro sistemas familiares dentro da Europa.58 Diversos estudos

56 SCOTT, Ana Silvia Volpi. Revista População e Família, nº 5, 2003, p. 7-17. São Paulo: Humanitas/FFLCH-USP, 2003. 57 SCOTT, Ana Silvia Volpi. Aproximando a Metrópole da Colônia: família, concubinato e ilegitimidade no noroeste portu-

guês (séculos XVIII e XIX). Trabalho apresentado no “XIII Encontro da ABEP”. Ouro Preto, novembro de 2002.

mostraram as variadas formas que a família poderia assumir. Apontaram a diversidade de siste- mas familiares, as estratégias de reprodução biológica e social e as implicações políticas, econô- micas e culturais sobre a família.59

A criação de um modelo europeu para a compreensão da família, cujo padrão se caracte- rizava pelo casamento tardio, alto celibato e baixa ilegitimidade, nasceu da contribuição desses traba- lhos. Esse modelo passou, então, a ser o referencial para a compreensão não só da família na Europa, como nas áreas coloniais. O desenvolvimento das pesquisas, contudo, mostrou a sua ineficiência para a compreensão das sociedades ibéricas e americanas. As regiões do Minho, em Portugal, e a Galiza, na Espanha, apresentavam altas taxas de ilegitimidade e lares chefiados por mulheres, distanciando-se do padrão da família da Europa norte-ocidental. Ao constatar essas diferenças, Peter Laslett criou os conceitos de “puzzle português” e o de “subsociedades” propensas à ilegitimidade que facilitariam a compreensão das altas taxas de ilegitimidade presentes nessas regiões.

Nos anos 70, Robert Slenes mostrou que as taxas de ilegitimidade entre a população escrava no Brasil no século XIX não diferiam do padrão familiar ibérico e latino-americano.60 Em outro trabalho, esse de 1988, Slenes concluiu que “a união consensual era um padrão cultu- ral com raízes profundas, não um desvio; certamente foi transplantada para a América [Latina], onde encontrou um ambiente receptivo, especialmente entre o campesinato e os trabalhadores rurais.61 Portanto, data dos anos 70 o argumento de que os padrões familiares ibéricos e coloni- ais eram semelhantes.

59 SCOTT, Ana Silvia Volpi. Revista População e Família. nº 5, 2003, p. 7-17. São Paulo: Humanitas/FFLCH-USP, 2003. 60 SLENES, Robert W. The demography and economics of brazilian slavery: 1850-1888. Stanford, 1976. Tese (Doutorado em

História). Stanford University.

61 SLENES, Robert W. Lares negros, olhares brancos: Histórias da família escrava no século XIX. In: LARA, Silvia Hunold

(org.). Escravidão: Revista Brasileira de História. 8: 16, março, 1988, p. 189-203. Slenes refere-se ao trabalho de WILLENS, Emílio. Latin American Culture. Anthropological Synthesis. New York: Harper and Row, 1975, p. 52-53. Na mesma nota explicativa, Slenes aponta um trabalho realizado nos anos 50: CANDIDO, Antônio. The brazilian family. In: SMITH, T. Lynn , MARCHANT, Alexander (coords). Brazil: portrait of half a continent. New York, 1951, no qual se mostra que há muito tempo a questão da matriz portuguesa possui um modelo familiar diferenciado do restante da Europa, mas que não deve ser considerado um desvio.

Recentemente, os historiadores no Brasil retomaram essa problemática. Ana Silvia Volpi Scott indicou que havia padrões diferenciados de famílias em Portugal. Segundo a autora, no norte, sobretudo na região minhota, “teríamos um padrão que se adequaria ao modelo ‘euro- peu’ (casamento tardio, alto celibato e baixa ilegitimidade); no sul, ao contrário teríamos um casamento precoce e quase universal.62 Após a disseminação do cultivo do milho, a região minhota apresentou o maior fluxo migratório da história de Portugal, passando a não se enquadrar nos comportamentos demográficos de baixa ilegitimidade e a favorecer o concubinato na região.63

Ligada a dois fatores, a emigração masculina foi o resultado da própria estrutura agrária portuguesa. O tamanho das propriedades, a distribuição, teoricamente, igualitária das terras entre os herdeiros, e, sobretudo, a migração forçada dos homens em busca de outras oportunidades de vida, teriam afetado as taxas de nupcialidade em Portugal.64

Embora o direito português previsse a partilha igualitária entre os herdeiros, na prá- tica, isso nem sempre ocorreu. Ao estudar o processo sucessório de famílias de elite do Oeste Paulista, no período colonial e no século XIX, o historiador Carlos Bacellar mostrou que “a igualdade de direitos dos herdeiros, prevista pela legislação, não era fielmente seguida”. Assim, o sistema, acabava privilegiando um herdeiro.65 O resultado disso foi a migração masculina inter- na na colônia, que acabou afetando os índices matrimoniais no Brasil.

62 SCOTT, Ana Silvia Volpi. Revista População e Família. nº 5, 2003. São Paulo: Humanitas/FFLCH-USP, 2003, p. 8. 63 SCOTT, Ana Silvia Volpi. O pecado na margem de lá: a fecundidade ilegítima na metrópole portuguesa (séculos XVII-

XIX). Revista População e Família. nº 3, 2000, p. 41-70. São Paulo: Humanitas/FFLCH-USP, 2000.

64 A legislação portuguesa previa a igualdade entre os herdeiros, mas havia formas de beneficiar apenas um através do

mecanismo da “terça”. No Minho, com predominância de pequenas propriedades, a unidade era preservada, mas os outros herdeiros migravam em busca de outras oportunidades. No sul, ao contrário, as propriedades eram maiores e o índice de migração masculina menor. Por isso, as taxas de nupcialidade no local eram maiores do que as do Minho. Apud SCOTT, Ana Sílvia. Nos limites da tolerância:casamento e concubinato no Portugal setecentista. In: CEDHAL – Série Cursos e Eventos/USP. São Paulo, 2001, p. 12.

65 BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Os senhores da terra: família e sistema sucessório entre os senhores de engenho do Oeste Paulista, 1765-1855. Campinas: Centro de Memória da Unicamp, 1997. p. 15.

Maria Beatriz Nizza da Silva chamou a atenção para os entraves burocráticos, eco- nômicos e canônicos existentes na Igreja Colonial, que teriam dificultado o acesso ao matrimô- nio, no Brasil, especialmente aos mais pobres e desenraizados.

Sheila Faria, contudo, rejeitou essa idéia ao analisar processos de banhos66 e pedidos de dispensas de impedimentos matrimoniais no Brasil. Nem sempre esses indivíduos tinham os do- cumentos necessários para o casamento, mas o problema poderia ser resolvido com o apelo “às testemunhas, tidas como fidedignas e residentes.”67 A região estudada por Faria não era localidade de fronteira , mas, sim, rural, onde as pessoas cultivavam laços familiares e de vizinhança.

A História da Família tem mostrado, na verdade, uma grande diversidade em relação aos índices de nupcialidade e de concubinato no Brasil. A partir de 1791, as autoridades eclesi- ásticas de São Paulo resolveram liberar os nascidos escravos e livres, no bispado, das provisões de licença para casar, caras demais para a maioria dos pobres.68 A relaxação das exigências buro- cráticas, a ameaça de recrutamento forçado aos concubinados, a maior presença da Igreja no bispado e a política de incentivo senhorial permitiram a São Paulo ter índices de casamentos maiores do que os do Rio de Janeiro.

Ao longo de todo o século XIX, os índices de nupcialidade em São Paulo se apre- sentaram maiores do que os do Rio de Janeiro, no que dizia respeito aos escravos, embora tenha ocorrido a diminuição dos matrimônios nas duas regiões, a partir de 1850. A diferença entre as duas localidades se justificou pela existência de um “clima ideológico” no interior da elite, mais receptiva ao casamento religioso, encarado como uma instituição moralizadora para todos os grupos sociais.69

66 Processos de banhos era a expressão usada para os proclamas de casamento. 67 FARIA, op. cit., p. 59.

68 SLENES, Robert. W. Na senzala uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil sudeste, século XIX. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 90.

Foi a partir de 1850 que as taxas de nupcialidade escrava diminuíram nas duas regi- ões; contudo, a queda foi menor na província de São Paulo. Os senhores desta região continua- vam a levar os seus cativos para se casarem na Igreja, enquanto os do Rio de Janeiro diminuíam bastante o ritmo. Segundo Slenes, a existência de uma política de incentivos entre os senhores paulistas fomentava as uniões legítimas dos seus cativos, o que não ocorria com os senhores fluminenses. Mas, a partir de 1872, o declínio dos índices de casamentos nas duas regiões tor- nou-se visível. Fatores como a diminuição do interesse no valor reprodutivo das escravas a partir de 1860 e o peso da guerra civil nos Estados Unidos (1861-1863) desinteressaram os senhores de continuar levando os seus cativos para se casarem. De acordo com Robert Slenes, a diminuição dos matrimônios, na segunda metade do século XIX, estaria relacionada às necessi- dades senhoriais e não ao “lar negro” propriamente dito. O historiador demonstrou que, apesar da diminuição do número de casamentos entre os escravos, a formação de uma família permitia a sobrevivência deles dentro do cativeiro.

A queda do índice de casamentos no século XIX não foi uma característica exclu- siva da população escrava. Também a população livre sofreu um decréscimo do ritmo de casamentos e por, conseqüência, da legitimidade. Segundo Sheila Faria, “foi só no século XIX que a proporção de filhos legítimos na população diminuiu sensivelmente, até mesmo nas áreas rurais.”70 Vale ressaltar que a diminuição da legitimidade e do número de casamentos, no período, ocorreu tanto para a população escrava quanto para a livre, em distintas áreas: mineradora, urbana e rural. No entanto, eram, segundo Faria, as “as mulheres não brancas as que mais tinham filhos naturais, em particular nos centros urbanos.”71 Conforme a historia- dora, essa característica da população colonial e do século XIX está calcada nos resultados da

70 FARIA, op. cit., p. 54. 71 Idem.

maioria das pesquisas em História da Família no Brasil que priorizam as áreas mais dinâmicas da economia da época, ou seja, as mineradoras e urbanas. Essas áreas atraíam escravos e migrantes livres, que acabavam constituindo famílias no local, mas não formalizadas pela Igreja. Sheila Faria ainda argumenta que os altos índices de ilegitimidade do século XIX refle- tem a inexistência de estudos sobre áreas agrárias. Assim, segundo ela, a maioria da população colonial e do século XIX, preferia o casamento católico e a maternidade legítima às relações consensuais e filhos tidos fora do casamento cristão. Assim, a explicação para o menor ritmo de casamentos e de nascimentos legítimos, no século XIX, pode ser considerada a partir de um comportamento familiar diferenciado, sobre o qual a localização geográfica e a atividade econômica exerciam grande influência.72

O trabalho de Faria contribui para a reflexão sobre o concubinato na História da Família no Brasil. Nos capítulos seguintes dessa tese, avaliaremos as condições em que essa relação aparecia, sobretudo no segundo capítulo, no qual comentaremos as ações da Igreja em relação aos chamados “mal casados”, ou seja, concubinos. Buscaremos demonstrar que a pre- sença de recursos materiais, a estabilidade da relação no tempo e a prole numerosa são fortes indícios de que o concubinato era o comportamento familiar diferenciado para o qual Sheila Faria chamou a atenção.

Também trataremos das expectativas dos concubinos em relação ao matrimônio, bem como apresentaremos concubinatos antigos, transformados, depois de anos de convivência, em casamentos legítimos. A avaliação da trajetória que fizemos desses casais permitiu-nos pensar o concubinato como um momento da vida familiar, tendo o matrimônio como algo no horizonte que se poderia alcançar. Nesse sentido, buscamos nessa tese comprovar que o casamento legítimo era, de fato, conforme afirmou Sheila Faria, a opção preferencial da população da colônia.

O encaminhamento econômico dos filhos ilegítimos e da concubina também são fortes indícios de que o concubinato se constituía em uma família de fato. Na verdade, muitos foram os casos em que os pais desejaram dar à prole ilegítima as distinções de que ele gozava ou o nome de família. Por essas razões e pelas demais já citadas, não temos motivo para considerar o concubinato como uma relação doentia em si, mas apenas como o fruto das condições a que os indivíduos estavam submetidos.

2. CONCUBINATO E IGREJA: A PERSEGUIÇÃO NAS