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2 ENGRAÇADINHA, SEUS AMORES E SEUS PECADOS: O ROMANCE COMO

2.1 Asfalto Selvagem: por uma Narrativa do Fora

O trecho epigrafado do romance Asfalto selvagem evidencia a trajetória de transgressividade a que dá início a personagem. O autor põe de lado o ambiente familiar e desloca a sua mão de ficcionista para a desterritorialização na rua, na urbanidade onde se consomem as vidas. Nesse ambiente, ele se expõe e a sua ficção à experiência do fora, fazendo operar o movimento de saída do ambiente familiar para que seja possível compreender como agem as forças humanas para além do ambiente fechado, comprimidas no espaço da família como falsa representação das pretensas verdades que orientam a construção do homem.

Engraçadinha é tirada, assim, do território da “proteção paterna” e posta nas paredes de um mictório, sujo, fedorento e carregado de desejos lascivos. Desejos estes que chegam, à ficção, para “macular” a sua vida como “menina de família”. Na cena seguinte, ao voltar para casa, diante da sobrinha, o tio esbraveja: “Antigamente, eu só via em paredes de mictório nome de político, deputado. De menina de família, é a primeira vez! [...] Nunca vi nome de menina de família” (RODRIGUES, 1995, p.20). Num mesmo plano, confrontam-se os modelos e as deformações, a “menina direita” e Engraçadinha, a qual gera a perspectiva do diferente, engendrando a saída do plano molarizado familiar e introduzindo um novo plano, o plano das deformações, da derrocada dos modelos, gerando-se o espaço outro pelo desejo, desejo enquanto matéria larvar.

É sobre esse plano que emergem as diferenças, fazendo-nos caminhar em direção a conceitos dogmáticos rachados, fissurados e implodidos: é a menina que destoa do espaço

onde nasceu e foi criada para seguir o “modelo de noivinha”14

, rompendo com as amarras que a prendem nas formas de representação.

O texto rodrigueano, nesse sentido, configura-se como um território ficcional que transcende a discutível ideia do espaço literário como mímesis e reprodução de sedimentações sociais, pondo em discussão princípios rígidos que giram em torno de verdades absolutas, a partir da pretensa perfeição da humanidade, dada a sua idealizada natureza divina. Por esse aspecto, em uma outra cena do romance, o “guia” espiritual da família, Irmão Fidélis, presencia, na rua, uma outra exibição do nome da protagonista:

Pouco adiante, quando o carro passava por um muro, teve uma surpresa: –

via, lá, escrito a carvão, de ponta a ponta, o nome “Engraçadinha”. Vira-se

no assento, achando aquilo espantoso. Pela primeira vez, de fato, o nome de uma menina direita, de família, aparecia nas paredes como se fora propaganda eleitoral. [...] Riu, baixinho, considerando que acabava de fazer um achado feliz, inteligente. Fosse como fosse ali estava, naquele muro, o apelo de uma colossal luxúria popular. (RODRIGUES, 1995, pp. 24-25).

Mas uma vez, as formações molares são confrontadas à força da potência que devém do nome “Engraçadinha”. O muro e as paredes da privada de um bar, como espaços públicos, são postos como espaço de deserção da molaridade rígida, já que é justamente nesses espaços que a vida da protagonista é escrita, rompendo-lhe o lacre de moça prendada, pura e pronta para o casamento. O uso desses espaços públicos, na construção narrativa, confere à obra uma dinamicidade outra porque congrega, ao mesmo tempo, a desambientalização do espaço das construções rígidas concentradas no lar (“menina de família”), a referência à política como molaridade apodrecida (“só via em paredes de mictório nome de político, deputado”), e o pensamento libidinoso e hipócrita do padre (“Riu, baixinho, considerando que acabava de fazer um achado feliz, inteligente”).

Esse compartilhamento entre lar, política e religião constitui-se, na prosa rodrigueana, como uma postura de resistência às formas com que a tradição literária retrata os espaços de poder, como instituições que concentram a força para definir o bem-estar social a partir de seus modelos de conduta, gerando corpos normativos. O muro da rua e as paredes da privada levam-nos, aí, a pensá-los, a partir do que Deleuze e Guattari denominaram de “muro

14

Rol ik. O odelo oivi ha o espo de fo a fe i i a ue é o st uída pa a se movimentar em torno da figura do homem, numa eterna dependência material e psicológica. (ROLNIK, 2011, p.14).

branco, buraco negro”15. É no espaço do muro e das paredes, como espaços de margens, que Engraçadinha é escrita, comportando o sistema de escrita transgressiva, do corpo que se desengessa e existe para além da norma.

Seu nome é, assim, prenhe de significações e, quando escrito nos muros e nas paredes, atinge o desejo coletivo: a “colossal luxúria popular” (RODRIGUES, 1995, p.25), podendo-se relacionar, nesse ponto, a escrita rodriguena ao que Deleuze e Guattari propõem acerca da obra de Kafka. Para os autores, o texto kafkaniano caracteriza-se como uma escrita de fala coletiva, uma vez que:

É a literatura que se encontra carregada [...] dessa função de enunciação coletiva e mesmo revolucionária: é a literatura que produz uma solidariedade. [...] A máquina literária reveza uma revolucionária por vir, não por razões ideológicas mas porque esta está determinada a preencher as condições de uma enunciação coletiva que falta algures nesse meio: a literatura é assunto do povo. (DELEUZE; GUATTARI, 2002, p.40).

O desejo luxurioso do povo é despertado, posto para fora dos lares, como escrita de uma micropolítica do desejo, numa voz coletiva que, embora silenciada, cria meios de falar, traçando linhas de fuga. Não é mais o eu individualizado em seu espaço de identidade imposta, mas é o eu da linguagem quem fala, sem pessoa definida a ser sacrificada, mártir da inquisição social da modernidade. É o nome de Engraçadinha despersonalizado. O muro e as paredes da privada tornam anônimo o sujeito da escrita erótico-pornográfica, podendo ser qualquer um. Nesse sentido, como forma de tornar o espaço literário o portal de uma voz de enunciação coletiva, Nelson Rodrigues sai dos centros do poder e põe na boca e nas mãos do povo o desejo recluso: seus textos configuram o sistema “muro-branco, buraco-negro”.

Despersonalizando o eu, o autor utiliza-se do nome de sua personagem para potencializar o espaço micropolítico das minorias, do povo. O muro-branco torna-se, aí, o espaço de uma escrita de semiotização, de “significância” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, v.3) do desejo recluso, sendo ela, a escrita do nome de Engraçadinha, os signos da transgressividade, os buracos negros que, segundo Deleuze e Guattari (1996, p.28, v.3) fazem germinar a “subjetivação” coletiva, a qual “não existe sem um buraco onde aloja sua

15

Pa a os auto es, Mu o a o, u a o eg o o siste e u siste a, o ual se i s eve sig ifi ações e se dese volve su jetividades . DELEUZE; GUATTARI, , pp. -29, v.3)

consciência, sua paixão, suas redundâncias”. O muro e a parede públicos permitem a escrita do desejo, da linguagem passional sem que o olhar dogmático incida sobre ela, sem que se denuncie o sujeito, mantendo-o no anonimato, mesmo porque, nesse momento, o texto literário flui no vazio das relações de poder. Nesse sentido, Barthes fala que:

A escritura é a destruição de toda voz, de toda origem, a escritura é esse neutro, esse composto, esse oblíquo aonde foge o nosso sujeito, o branco-e- preto onde vem se perder toda identidade, a começar pelo corpo que escreve. (BARTHES apud LEVY, 2003, p.59).

Não havendo, assim, mais o sujeito que assina a escritura, que não se reveste de uma identidade molarizada, o ato da escrita desprende-se, na escrita rodrigueana, das amarras dos jogos sociais de poder, que submetem o autor às regras forjadas para manter o pensamento em conformidade com as ideias e com os princípios de centro. Nelson Rodrigues, ao longo do Asfalto, vai, pois, orientando a sua escritura exatamente para a construção desse espaço, no qual despersonalizado o eu, a escrita flui e expõe o pensamento do fora, na perspectiva tratada por Levy, a partir de Blanchot, para quem, a literatura do fora não representa o exterior da obra, mas exatamente as múltiplas possibilidades de escrita, que fogem dos padrões do que está no mundo, o que configuraria, nesse sentido, uma retomada da crítica à perspectiva mimética: “Quanto maior a distância do eu, mais livre, mais sem limites, o movimento da literatura. Aproximar-se do Fora significa sair do eu e dos seus abismos, libertar-se do eu e do seu medo da morte”. (LEVY, 2003, p.47)

Saindo, pois, do espaço do eu dogmatizado e domesticado, mais uma vez, numa outra cena, o autor revela a despersonalização do pensamento engessado e elitizado e traz o povo para a assinatura coletiva. Na situação, o narrador dá voz às curiosidades públicas em torno da possível causa do suicídio de Doutor Arnaldo:

Político nato, com uma sagacidade extraordinária, era o homem público que mais cumprimentava no Espírito Santo. Saudava conhecidos, desconhecidos, e, digo mesmo: – saudava, de preferência e com maior efusão, os desconhecidos. Tal cordialidade pode parecer apenas uma dessas virtudes médias. Mas não se faz uma sociedade com heroísmos e com heróis. Seria intolerável uma sociedade em que todos fossem heróis, em que o cobrador da luz o fosse, e assim o vizinho, o guarda-noturno, o literato, o ciclista, o padeiro. E, embora tivesse feito muito pouco ou nada, o fato é que o povo o amava. Mas o povo tem seus abismos, que convém não mexer, nem açular. (RODRIGUES, 1995, p.15).

Despindo-se de personagens que denotam o típico herói, Nelson Rodrigues abre o seu espaço literário para a voz que surge dos desejos do povo, desfazendo-se dos tipos heroicos, dos perfis românticos, dos que difundem, hipocritamente, pensamentos puros e sublimes. Ele projeta, pelo fora das relações de poder, o espaço literário do por vir, a literatura como ser da linguagem, sem a marca da perfeição. Assim, “o cobrador da luz”, “o vizinho”, “o guarda-noturno”, “o literato”, “o ciclista”, “o padeiro”, enfim, “o povo”, são os corpos que marcam a despersonalização romantizada dos textos rodrigueanos. Em Asfalto selvagem, o povo fala, surgem eus despersonalizados, porque pode ser a voz de qualquer um, fazendo pulsar a vida. O autor resgata essa população que está pelo lado de fora das relações sociais de poder verticalizadas.

Reconhecendo que “o povo tem seus abismos, que convém não mexer, nem açular” (RODRIGUES, 1995, p.15), Rodrigues provoca a reflexão, impõe a quebra dos limites da literatura canônica e abre espaço para que o pensamento do fora se instale em seu romance, configurando, aí, a narrativa sem a personalização típica que limita a atuação das vozes, fazendo eco das falas silenciadas, dos que estão à margem do centro, na perspectiva proposta por Blanchot (2001)16. Em Asfalto selvagem, há, pois, a abertura do território para os ecos de fora, das minorias, dos que inscrevem a sua fala nos muros e nas paredes das privadas.

Não mais com um eu definido e molarizado como porta-voz dos espaços de centro, a narrativa do Asfalto trafega pelas bordas, como uma força a expulsar os resquícios de dogmas e de princípios falidos. Para Blanchot, não sendo uma literatura difusora do pensamento sedimentado, cujo processo de semiotização caracteriza-se por uma linguagem racionalizada e de cunho belocentrista, a arte da escrita ruma para além de centros de dominação, direciona-se para processos significativos em constante devir, região de buracos negros, onde germinam subjetivações17. É o território de devires animais, e, portanto, local em que a voz da lógica e do bom-senso não consegue adentrar nos orifícios obscuros, nas fendas. Nesses espaços, é

O “Ele” que toma o lugar do “Eu”, eis a solidão que sobrevém ao escritor por intermédio da obra. “Ele” designa o desinteresse objetivo, o desprendimento criador. [...] “Ele” sou eu convertido em ninguém, outrem

16 Blanchot. Es eve é faze e o do ue o pode pa a de fala – e, por causa disso, para vir a ser o seu eco, devo de uma certa maneira impor-lhe o silêncio. (BLANCHOT, 2011, p.18).

17 Segundo Blanchot, a arte clássica é marcada por um processo de claridade, de luz, que idealiza aspectos da natureza humana a serem copiados, como sustentáculos da ordem, numa perspectiva universalizante, de ordem e de modelos, cuja voz prenuncia o lado de dentro do poder, nuclear, sedimentado. (BLANCHOT, 2011).

que se torna o outro, é que, do lugar onde estou, não possa mais dirigir-me a

mim e que aquele que se me dirige não diga “Eu”, não seja ele mesmo.

(BLANCHOT, 2011, p.17)

Ao se libertar do eu dogmatizado, Nelson Rodrigues imprime sua cartografia movida pelo desejo, estabelecendo-se, para além de identidades logocêntricas, como um artista do fora, cuja narrativa desconstrói a imagem do ser-idílico, heroico. A sua solidão, enquanto ficcionista de personagens para além das aparências e da construção de molaridades, insurge num processo de descompromisso com a cópia do mundo, quando muito, resgatando cópias mal-acabadas, distorcidas daquilo que seria uma discutível representação do exterior.

Não é a voz de Nelson (pelo menos não enquanto reprodutor de cópias) que ecoa nas páginas de Asfalto selvagem, é a voz de uma terceira pessoa, de um Ele que possibilita a arquitetura do espaço do fora das convenções sociais, que traz o povo para se expressar, desejar e escrever nos muros e nas privadas, potencializando o seu desejo recalcado. Como narrativa do fora, o autor, para chegar ao povo e para fazê-lo falar, abandona a alcunha de autor de literatura clássica e idílica, e fala como outrem, que pode ser qualquer um, em qualquer lugar, sem centros.

Perde a sua identidade, como pessoa real, e investe-se como “Ele”, sem referente no mundo das convenções, como uma voz nômade, no espaço criado como ficção, para muito além do que se denomina como imaginário18. É essa voz que transita, que se rizomatiza, ora no mundo, ora na narrativa, vagando, para encontrar outras vozes, também perdidas a fim de construir espaços heterotópicos. É essa voz despersonalizada de um “Eu” que, na narrativa, determina, corrosiva e jocosamente, que: “O Brasil vive uma fase ginecológica! [...] O desenvolvimento traz um medonho estimulante erótico. Nunca o brasileiro foi tão obsceno. É uma obscenidade histórica. [...]” (RODRIGUES, 1995, p.551).

Há, aí, a confluência de vozes para a desconstrução da áurea divina da humanidade. Focado na realidade brasileira, mina a pretensa seriedade, o discurso das aparências que enaltece a força, a coragem e o patriotismo do homem brasileiro. O “Ele” que fala desloca a câmera para a intimidade, lançando doses de sarcasmo, de ironia, construindo

18Pa a Deleuze, o i aginário [...] está no cruzamento dos dois pares. O imaginário não é só o irreal, mas a indiscernibilidade entre o real e o irreal. Os dois termos não se correspondem, eles permanecem distintos, mas não cessam de trocar sua distinção. É o que se vê no fenômeno cristalino [..] existe a troca entre uma imagem atual e uma virtual, o virtual tornando-se atual e vice-versa. [...] o opaco tornando-se límpido e inversamente. [...] há a troca entre o germe e o meio. Creio que o imaginário é esse conjunto de trocas. [...] O imaginário é a imagem-cristal. (DELEUZE, 1992, pp. 84-85)

vociferações, no espaço da imagem-cristal, deslocando-se entre o real e o irreal. Assim, “Ele”, a voz rodrigueana despersonalizada, vocifera sobre a realidade obscena do brasileiro, para além do teor pornográfico, guiando-se para a questão da macropolítica, dos sistemas políticos e econômicos opressivos.

No espaço da imagem-cristal (DELEUZE, 1992, pp.84-85), entre o límpido e o opaco, Rodrigues vai construindo imagens vertiginosas, ora com foco nos corpos moleculares, ora nas formações molares. Nesse sentido, quando contactamos os conflitos que se desenvolvem ao longo da narrativa de Asfalto selvagem, somos levados ao encontro de processos micropolíticos que se configuram, como forças estabelecidas em torno do sistema molar, rígido, fundado na objetividade e ferocidade do capital 19.

Deleuze crê, assim, que na construção das micropolíticas, enquanto força “revolucionária” (DELEUZE, 2006, p.351), surgem os espaços cuja economia consiste no desejo e esse desejo possibilita o rompimento da linha de domínio, fundando os discursos das minorias oprimidas, o “discurso esquizofrênico, o discurso drogado, o discurso perverso, o discurso homossexual”, todos eles subsistindo, fazendo com que “se implantem numa máquina de guerra que não reproduza um aparelho de Estado...” (DELEUZE, 2006, pp.351- 352).

Os discursos das minorias de que fala o filósofo convergem para o espaço das vozes que, em multiplicidades e em agenciamentos, confrontam o discurso normativo cujos modelos procuram definir modos de comportamento e de pensar, como Engraçadinha, criada para ser boa filha, mãe amantíssima e esposa fiel. Todo e qualquer princípio que seja norteador de uma maneira outra de ser, de agir e de pensar, que não se coadune com os das molaridades, origina um discurso marginal, que conflui para o embate com aquilo que o Estado, em sua soberania, define como moral, ético e, politicamente, correto. Esses discursos do fora do poder centralizador revelam-se como “máquinas de guerra” que não confirmam a supremacia unilateral e verticalizada de uma política macroestrutural arraigada na mascarada ideia de que é com a família, casta e preservada das anomalias, que toda a sociedade funciona em ordem.

19Pa a Deleuze , o apitalis o é u u g a de siste a pa a oi o , ue sus ita o su gi e to, pela p ess o ue exe e so e os o pos ole ula es, das de o i adas li has de fuga do seu domínio molar. Para o autor, são essas linhas de fuga que interessam no estudo das relações humanas na contemporaneidade, porque elas remetem ao foco do desejo de não permanecer reproduzindo os ditames da máquina estatal. (DELEUZE, 2006, p.351).

Assim, à revelia do que o sistema paranoico preceitua como o lugar da retidão e dos bons costumes, os discursos marginais passam a potencializar maneiras outras de, estabelecendo linhas de fuga do organismo social como espaço de normalidades, construírem seus espaços cujo perímetro, mesmo concentrados nas formações molares (igrejas, escolas, famílias, políticas, leis...), abrem fendas e passam a funcionar em dissonância com máquina arbitrária, central.

É nesses espaços do fora, a-institucionais, de imagem-cristal, que o discurso presente no texto de Rodrigues brota em agenciamentos de enunciações coletivas, não trazendo mais emersões de eus sacralizados, como potências do poder. Mas dando vida a uma máquina de guerra, que combate a ditadura do centro, do belo e do normal. Há, sim, a potencialidade de personagens que não seguem padrões, de falsos corpos assépticos, em conformidade com as normas da máquina paranoica. É através da voz despersonalizada que surge o povo, rabiscando em muros e em banheiros públicos, fissurando o discurso do poder, de sedimentações, no “muro-branco, buraco-negro”. Assim, a partir de Asfalto selvagem, como narrativa do fora, observamos que

O movimento do escritor consiste justamente em abrir mão de sua intimidade em prol do povo. Somente se sair de si, se se colocar no Fora do mundo, no Fora da linguagem, é que ele conseguirá fazer uma revolução de valor coletivo. Quanto mais o autor participa da narrativa, maior a distância entre o eu e a palavra. Quanto maior a distância do eu, mais livre, mais sem limites, o movimento da literatura. Aproximar-se do Fora significa sair do eu e de seus abismos, libertar-se do eu e de seu medo da morte. A vida do indivíduo dá então lugar a uma vida impessoal. (LEVY, 2003, p.47).

Saindo desse eu, Nelson Rodrigues cria suas personagens, as quais passam a veicular a voz errante, que pode ser de qualquer um, agenciada da multidão, sem rostos definidos, livre de pudores e livre de falsos princípios humanísticos. E é assim que, ao projetar a imagem de Zózimo, há a sensação de que a maneira como a personagem se comporta é diferente, estranha, anormal, como definiriam os conservadores, de centro. Em determinadas cenas, quando Engraçadinha o exorta, o humilha, termina o noivado ou, quando já casados, demonstra asco por ele, Zózimo revela-se para além dos modelos de masculinidade, de poder, do sexo forte. Mostra-se como fragmento de uma imagem construída à força de molaridades familiares e religiosas, como uma cópia desconstruída do Adão que teria originado Eva:

O bêbado anda circularmente pela sala; súbito, estaca: – Vou reconhecer o filho. Faz de conta que é meu. Sou muito homem pra mudar a fraldinha do meu filho. Desata a chorar. Um gaiato faz voz de falsete: – “Chuta tua noiva

pra mim!”. Zózimo gira sobre si mesmo, procurando o gaiato: – “Vocês não entendem! Ninguém entende!”. E repete: – “É uma indignidade insultar uma adúltera”. Outro bate-lhe nas costas: – “Já de chifre, rapaz!”. O bêbado ri. “Chifre!”. E, súbito, baixa a cabeça e, no passo pesado e incerto, sai dando

marradas no ar. [...] Para e, num esforço de equilíbrio, raspa o chão com o pé como um touro de desenho animado. De repente, cambaleia e acaba derramando-se no chão. [...] Na cara de Zózimo as lágrimas vêm misturar-se com a baba. Chora: – Minha adulterazinha!. (RODRIGUES, 1995, p.119).

Zózimo lançado no “asfalto selvagem”, na ferocidade urbana, é posto na imagem- cristal, destoa-se entre o real e o irreal, confunde as crenças acerca do homem forte e provedor