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Máquina desejante e a lógica das sensações: perceptos e afectos nos limites do Asfalto

1 ENGRAÇADINHA: A ESTÉTICA TRANSGRESSIVA NA CONSTRUÇÃO DE

1.3 Máquina desejante e a lógica das sensações: perceptos e afectos nos limites do Asfalto

É na superfície que as sensações circulam. Segundo Deleuze, as artes operam por sensações (2007). Tais sensações não produzem nem sínteses, condensações, nem processos identificatórios. Elas possuem “apenas uma realidade intensiva” (2007, p.51). O Corpo sem Órgãos é “um corpo intenso, intensivo” (2007, p.51). Esquivam-se a representações. Tal como aparecem, em Asfalto selvagem: Engraçadinha e seus amores, mostram a intensa agonística de Nelson contra os clichês ou estereótipos sociais.

A saída no romance é estabelecer a linha de fuga e instaurar, nos termos deleuzianos, um bloco de sensações, conectando-as aos perceptos e afectos, fazendo incidir na protagonista, de uma expressão em close que, aos poucos vai se distanciando, esfumando-se , dando-lhe um caráter intensivo que se altera, transformando-se em uma superfície de processos alteritários, que desvanecem o leitor de encontrar meras semelhanças e sentimentos identificáveis. Isso permite a Nelson Rodrigues fazer-se um escritor que se decide por criar afectos singulares e selvagens e partir para também criar para si um Corpo sem Órgãos, movendo-se entre o caos e o desejo, retomando a imagem do menino curioso, do anjo peralta, do cupido a bisbilhotar a vida dos outros, para além de uma cópia do que está no exterior, mas, principalmente, como um eu-autoral despersonalizado, longe da seriedade de um homem adulto, taciturno e reprodutor, ipsis litteris, do que está no mundo.

Vemos, em Deleuze, que o funcionamento da máquina desejante coloca, em perspectiva, rostidades, rostos (não necessariamente o que entendemos como rosto, como parte da cabeça, mas o que possa funcionar como tal, como outras partes do corpo, ou rostos não humanos, rostos maquínicos, por exemplo). Essas produções constituem-se de “dois pólos de afeto, potência e qualidade” (DELEUZE, 1985, p.123). E por elas percorrem linhas de desterrritorialização.

Trabalhando a seu pensamento semiótico em interconexão com a semiótica, do norte-americano Charles Sanders Peirce, Deleuze ressalta a questão da primeiridade, ou iconicidade, relacionadas à qualidade:

... a primeiridade é uma categoria inteiramente diferente (da secundidade), que remete a outro tipo de imagem, outros signos. Peirce não esconde que a primeiridade seja difícil de definir, pois é mais sentida do que concebida – ela diz respeito ao novo na experiência, ao fresco, ao fugaz e, no entanto, o eterno. [...] Peirce fornece exemplos estranhos, mas que acabam chegando no seguinte: são qualidades ou potências, consideradas por si mesmas, sem referência ao que quer

que seja de diferente, independentemente de qualquer questão sobre a sua atualização. É o que é na proposição “isto não é vermelho” quanto em “é vermelho”. [...] A primeiridade é a categoria do Possível. (DELEUZE, 1985, pp.126-127)

Quanto à segundidade, Deleuze diz que, para Peirce, a segundidade reporta-se como sendo “o que é, tal como é, em relação a um segundo” (DELEUZE, 1985, pp.126- 127):

Tudo o que só existe opondo-se, por e num duelo, pertence, portanto à segundidade: esforço-resistência, ação e reação, excitação-resposta, situação- comportamento, indivíduo-meio... É a categoria do Real, do atual, do existente, do individuado. E a primeira figura da segundidade já é aquela em que as qualidades-potências tornam-se “forças”, isto é, atualizam-se em estado de coisas particulares, espaços-tempos determinados, meios geográficos e históricos, agentes coletivos ou pessoas individuais. É aí que nasce e se desenvolve a imagem-ação.

O romance rodrigueano apresenta, no seu investimento, essas categorias sígnicas, pondo em relação signos do Possível e signos do Real, em Engraçadinha, quanto se instala no regime dos pensamentos-signos ou o que Peirce articula como terceiridade, em que o signo não se subordina a uma relação real com seu objeto, mas com sua significação.

Observaremos que a posição realista-naturalista dá uma revirada, entendendo-se que o romancista atinge a percepção de que seus personagens são signos e o que se identifica por “Homem”, consiste num signo, ou num quase-signo, considerando a perspectiva de Peirce, que Deleuze toma por um dos seus intercessores (PEIRCE, 1988, p. 121):

Pues lo que prueba que un hombre es un signo es el hecho de que todo pensamiento es un signo, en conjución con el hecho de que la vida es un flujo de pensamiento; de manera que el que todo pensamiento es un signo externo, prueba que el hombre es un signo externo. [...] pues el hombre es el pensamiento. De modo que o que se llama de realidade “depiende de la decisión última de la

comunidad”.11

11

Tradução nossa: “Pois o que prova que um homem é um signo é o fato de que todo pensamento é um signo, em conjunção com o fato de que a vida é um fluxo de pensamento; de maneira que todo pensamento é um signo externo, o que prova que o homem é um signo externo [...] pois o homem é o pensamento. De modo que a realidade “depende da decisão última da comunidade”.

Essa percepção é contida em Engraçadinha e essa condição de exterioridade do homem de seu próprio pensamento. A ética que aí se desenvolve é a do escritor propiciar que o leitor perceba que não há, na narrativa literária, nada que se tome por um espelhismo direto com a sociedade, coincidente com uma narrativa verídica, sendo assim, a literatura (como as artes) deixa de “pretender o verdadeiro” (DELEUZE apud BADIOU, 1997, 148): “O homem verídico morre, todo modelo de verdade desaba, em proveito da nova narração”.

Essa nova narração é um acontecimento literário no romance rodrigueano. Surpreendemos esse novo status narrativo nas falas de Engraçadinha (RODRIGUES, 1995, p.311):

Engraçadinha abre o primeiro botão do quimono, o segundo. Para. Vira- se para o marido, com surda irritação.

Mas por quê? Responde: - por quê? Estende a mão crispada:

- É uma vez, só essa vez e nunca mais!

Está rouco de angústia. Engraçadinha aperta a cabeça entre as mãos: - E a minha religião?

Aproxima-se. Seu rosto é uma máscara de apelo: -Eu sou humano! E você é humana!

Responde, com violência:

- Eu não sei se sou humana! Quem disse a você que eu sou humana? Os dois sabem que, em vinte anos de vida conjugal, ela jamais conheceu um momento de volúpia. Quando apagava a luz e o marido pesava sobre o seu corpo – tinha vontade de gritar. Precisava repetir para si mesma: -‘É meu dever’. Mas sentia a náusea contraída no fundo do seu ser, (Tinha ódio de todos os deveres, de todas as obrigações sexuais). E ao ouvir falar no filme Les amants, e numa cena que punha a plateia atônita e gelada – Engraçadinha inflamara-se, um dia:

- Eu sou casada. Mas se meu marido tivesse a audácia, o atrevimento de me propor, eu era capaz até de, nem sei!

Nelson Rodrigues faz com que a máquina desejante ative a potência do falso. O autor descortina a rede de relações reprimidas, hipócritas e desgastadas, pondo à vista aquilo que os olhos das pessoas tidas como puras não podem enxergar, conforme principia Bataille. É em Rodrigues que se configura a crise da verdade. Assim, Deleuze atribui a Nietzsche, sob a expressão de “vontade de potência” (DELEUZE apud BADIOU, 1997, p.148): “é Nietzsche, que, sob o nome de ‘vontade de potência’, substitui a forma do verdadeiro pela potência do falso, e resolve a crise da verdade, quer decidi-la uma vez por

todas, mas ao contrário de Leibniz, em proveito do falso e da sua potência artística criadora...”. Engraçadinha constitui a “verdade histórica” de mulher casada e perfeita, o mito do amor burguês. Na cena, essa verdade é implodida, dissolvida porque a mulher, no seio do lar, no recinto do casal, não cumpre as suas funções maritais.

Ainda dentro dessa discussão, desencadeia-se o papel da fabulação que se encontra relacionada à literatura, que proporia sua escritura como fábula. Na concepção platônica, começa a questão da fabulação. No livro II, de A República, Platão discorre sobre o ensino que deve ser ministrado às crianças, de maneira que elas se tornem adultas capazes de ajudar na construção de um Estado forte, soberano (PLATÃO, 2011, p. 65):

[...] uma verdadeira e outra falsa! [...] primeiro ensinamos fábulas às crianças? Ora, no conjunto, as fábulas são mentiras, embora contenham algumas verdades. E servimo-nos de fábulas para as crianças, antes de as mandarmos para os ginásios. (PLATÃO, 2011, p. 65).

A partir daí, o filósofo estabelece a primeira significação do falso e do verdadeiro, criando-se a concepção de “narração verdadeira”, considerando-se como subgêneros as fábulas, por desencadearem a potência do falso, o não-ser. A ficção é, portanto, uma máquina fabuladora. A autora Nancy Huston, renomada romancista e intelectual canadense contemporânea, questiona o realismo (2010, p.128):

Quanto mais uma pessoa se acha realista, mais ela ignora ou rejeita a literatura como um luxo ao qual não tem direito, ou como distração para a qual não tem tempo, e mais essa pessoa tem chances de cair no Arque-texto, ou seja, na veemência, na violência, na criminalidade, na opressão do próximo, das mulheres, dos fracos, ou até de um povo inteiro.

É isso que vemos ao longo de uma tradição clássica de controle e de censura, que se vê claramente neste trecho platônico, ao ele afirmar e prescrever que (PLATÃO, 2011, pp.65-66):

[...] devemos começar por vigiar os autores de fábulas, e selecionar as que forem boas e proscrever as más. As que forem escolhidas, persuadiremos as amas e as mães a contá-las às crianças e a moldar as suas almas por meio das fábulas, com muito mais cuidado do que os corpos com as mãos. Das que agora se contam, a maioria deve rejeitar-se. (Destaque nosso.)

Chega-se à crise da verdade e mais do que isso à afirmação contemporânea da indecibilidade entre o verdadeiro e o falso. E mais ainda: ao abandono de pretensão do “homem verídico” (DELEUZE apud BADIOU, 1997, p.148).

Diante das passagens citadas do romance de Nelson Rodrigues, a ficção impõe sua potência do falso. Potência que compreende a própria estetização da obra, sob a lógica das sensações, o caminho para a subjetivação, a criação de si e a alteridade como linguagem. Com a crise da representação, veio também a crise da estética do sublime, enquanto um modo de domesticação do corpo e das sensações. Ao se falar de estética, na contemporaneidade, é da multiplicidade, novos modos estéticos e novas perspectivas, em face de sua pluralidade irredutível.

Em Engraçadinha, é dessa pluralidade que se trata. Daí, extraímos rizomas (DELEUZE; GUATTARI, 1995, v.1) que estão justamente na capacidade de estabelecer uma multiplicidade de conexões entre corpos, coisas, seres. Enxergamos, assim, a poética rodrigueana e os seus constituintes não mais como árvore ou raiz, mas como um corpo no qual

[...] cadeias semióticas de toda natureza são aí conectadas a modos de codificação muito diversos, cadeias biológicas, políticas, econômicas, etc, colocando em jogo não somente regimes de signos diferentes, mas também estatutos de estados de coisas. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.15).

Destarte, na construção romanesca de Asfalto selvagem, desde o título e o subtítulo, se nos apresentam elementos constitutivos essenciais para a construção das multiplicidades. Sua obra traz em seu corpo um conjunto de desconstruções conceituais, de cunho machista, sexista, político, religioso, as quais confirmam a pretensa hegemonia, homogeneização, a supremacia do discurso normativo. Seu romance traz também a discussão do lugar do livro.

Em Mil platôs – Capitalismo e esquizofrenia, Deleuze e Guatarri repensam esse lugar e redefinem de maneira impactuante para uma tradição do livro concebido como livro- raiz (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.12, v.1):

Um livro não tem objeto nem sujeito; é feito de matérias diferentemente formadas de datas e velocidades muito diferentes. Desde que se atribui um livro a um sujeito, negligencia-se este trabalho das matérias e a exterioridade

de suas correlações [...]. Num livro, como em qualquer coisa, há linhas de articulação ou segmentariedade, estratos, territorialidades, mas também linhas de fuga, movimentos de desterritorialização e desestratificação. [...] Um livro é um tal agenciamento e, como tal, inatribuível. É uma multiplicidade – mas não se sabe ainda o que o múltiplo implica, quando ele deixa de ser atribuído, quer dizer, quando é levado ao estado de substantivo [...]. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.12).

Se assumirmos o viés da questão do livro, em Blanchot (2005), afirmaríamos que Nelson Rodrigues, com seu romance, estaria delineando o futuro do livro, como uma contingência, entregue ao porvir e ao anonimato. Não feito, mas um “livro por vir” (BLANCHOT, 2005, p.327). É o sentido larvar que habita o romance e o põe a caminho do futuro, na espera de sua metamorfose. Do movimento que conduz a obra e lança um brilho para o cosmo (RODRIGUES, 1995, p.555):

Quando Engraçadinha chegou em casa, Durval já a esperava. Ela estava exausta de prazer, saturada de sonho. O filho estendeu-lhe um envelope fechado. Um pouco febril disse apenas - ‘Da Letícia’. Engraçadinha abre ao mesmo tempo que fala para si mesma:

- Essa bruxa! Começa a ler:

‘Engraçadinha”: - Quem te fala é uma morta. Eu já morri. Quando leres

esta carta, estarei entre os mortos. Vai parecer desastre e tu dirás que foi desastre. Ninguém desconfiará de um atropelamento. Darling: só te peço uma coisa: - acredita no meu amor. É amor e não tara. Na hora de morrer, eu não mentiria. É amor, Darling, só amor. Para sempre. Já morri e é amor, I Love you, I Love you, I Love you – Letícia’.

Ao lado, excitadíssimo, o filho está falando em cheque, em herança, em depósito. Engraçadinha não ouve nada. Aproxima-se lentamente da janela. Olha a noite. No alto, uma estrela brilhou mais clara.

O filho de Engraçadinha articula a morte de Letícia à economia subjetiva capitalística. Contudo, coexistindo com a linha de vida, mesmo com o acontecimento do “desastre”, traçando a linha de morte, desencadeia-se a linha de fuga que se refrata a esse destino, “vigiando duvidando rolando brilhando e meditando” (BLANCHOT, 2005, p.344). O romancista – e crítico francês – cita essas palavras de Mallarmé, animado pela concepção poética mallarmaica que ensejará a reflexão do livro por vir, conjugado ao acaso e à contingência.

O final do romance rodrigueano conjuga-se a essa ideia do livro por vir, trazendo consigo, numa repetição da diferença, alusões a narrativas como as de Machado de Assis, na dimensão dos mortos, do defunto autor ou do autor defunto; como as

narrativas de Clarice, qual A hora da estrela, cujo fim remete a essa cintilação, como um tratamento dentro da mitologia cinematográfica, da morte de Macabeia atropelada. E a narrativa de Mário de Andrade, Macunaíma, com este se transformando em estrela e entrando como um, entre outros, ponto luminoso na configuração constelar, mas sem evocação mística, assim como não acontece também no romance rodrigueano.

A estética rodrigueana – dever-se-ia antes dizer-se as estéticas – no romance, participa da transgressividade, das rupturas, das sensações, das intensidades, das descontinuidades, feitas de matérias dessublimadoras, heterogêneas, que multiplica seus efeitos onde toca. Tem uma força desorganizadora do modelo homogêneo da estética orgânica da tradição clássica, normativa, fundada no belo e no sublime. Retoma o sentido de estesia (do grego aisthesía, sensação, percepção), que se encontra em Deleuze (2007).

Ao analisar a pintura de Francis Bacon12, tendo em vista à pintura de Cézanne13, afirma Deleuze com relação à sensação (DELEUZE, 2007, p. 42), tendo sido esta redescoberta pelo segundo pintor, para ultrapassar a figuração, que (DELEUZE, 2007, pp.43-44):

A figura é a forma sensível referida à sensação. [...] A sensação é o contrário do fácil e do lugar comum, do clichê, mas também do “sensacional”, do espontâneo, etc. [...] é ser-no-mundo, como dizem os fenomenólogos: ao mesmo tempo eu me torno na sensação e alguma coisa acontece pela sensação, um pelo outro, um no outro. Em última análise, é o mesmo corpo que dá e recebe a sensação, que é tanto objeto quanto sujeito. [...] ... a sensação é mestra de deformações, agente de deformações no corpo. [...].

Em Engraçadinha, isso se manifesta, por exemplo, em relação à boca, aos olhos, à carne mesma, numa cena que será aproveitada por nós, mais adiante, mas que nos serve, também agora, por se configurar como uma torrente de sensações, de jogos de corpos pulsantes (RODRIGUES, 1995, p.125):

Sílvio, que procura a prima e a deseja! Oh, Sílvio! Letícia não responde. Ser chamada de Engraçadinha. Sente a mão de Sílvio deslizando e segurando,

12

Bacon. Francis Bacon (1909-1992) é um pintor britânico que é visto por Deleuze como aquele que procede à desfiguração do figurativismo, sendo o pintor das forças, das sensações e das intensidades.

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apertando um dos seus pés. Letícia quase não respira, como se o seu hálito pudesse trair-lhe a identidade. Por um momento, Sílvio segura na mão a vida delicada e vibrante daqueles pés. Letícia está pensando: - “Sílvio! Eu não sou

Letícia, eu sou Engraçadinha!” E continua, sentindo na carne a mão áspera e

quente: - “Ah, se eu fosse Engraçadinha, eu me acariciaria...” Ela não entendia como certas mulheres não têm desejo por si mesmas ou ainda: - como certas mulheres não se possuem a si mesmas. A mão de Sílvio abandona os pés. Sobe. Letícia mal respira: - “Ele não desconfiou ainda”. A mão pousada no joelho. E pensa: - “Engraçadinha viu Sílvio entrar. Sabe que ele está comigo”. E passa por Engraçadinha, ser Engraçadinha, viver a vida da outra, ter por um momento o seu nome, receber as suas carícias! Sílvio deixa-se enganar pela insânia dos sentidos. Engraçadinha não se mexe. E se eu me levantar e acender a luz? Já, não; ainda não. Acaricia-se a si mesma: “Como é bom! Como é bom!” Ouve Sílvio balbuciar seu nome ainda uma vez, num lamento estrangulado:

- Engraçadinha!

Quer que ela fale. Boca com boca, Sílvio diz a Letícia: - “Vim, querida! Não queria e vim!” Passa-lhe a mão pelo rosto e não sente que são as feições de Engraçadinha. Depois a agarra pelos cabelos que não são tão leves e macios como os da mulher desejada; nem os lábios têm a mesma voluptuosidade. [...] E ele não percebe que o beijo de Letícia não tem o gosto da boca de Engraçadinha.

As sensações passam, aí, como sequências moventes. E, assim, multiplicada. Desfaz-se o mito folhetinesco do sentimentalismo, como falaria Deleuze a respeito de Bacon (DELEUZE, 2007, p.46): não há sentimentos em Engraçadinha, mas “sensações” e “instintos”. O corpo, a figura, a carne escorregam pelas mãos do “pintor” rodrigueano. Aparecem vários domínios do sensível rizomatizando-se nos diferentes órgãos do sentido: toque, odor, um gosto... Uma multissensibilidade percorre o corpo, a carne, que se tornam a morada do caos. Mas sobre o qual o narrador se debruça numa postura clínica, que dispara tanto as imagens quanto as palavras. A pele e suas pilosidades igualmente impõem o toque e as sensações, que exacerbam essa tactibilidade, desencadeando vertigens que deslocam num ritmo, digamos dionisíaco, com algo de comovente.

Digamos, assim, que até o olho excede o campo da visualidade. Em Engraçadinha, produz-se um espaço “táctil-ótico” (DELEUZE, 2007, p.156), a que pudemos relacionar à perspectiva da obs-cena, como, particularmente na cena que ocorre no cemitério, com o guarda-chuva, a chuva e o vestido molhado de Engraçadinha, passando o material do guarda-chuva a assimilar-se a uma pele, sobreposta sobre a pele molhada da moça, de maneira a compor fluxos improváveis de congelar a imagem.

Esse trabalho de sensações, no romance, alinhando a mão, olho e o toque, leva- nos a notar a relação que tal deslocamento visual e táctil traz como um processo equivalente ao do pintor Francis Bacon (DELEUZE, 2007, pp.161-162): “Mas o fato

pictural vindo da mão é a constituição do terceiro olho, um olho háptico, uma visão háptica do olho, a nova claridade”.

A erotização que acontece, em Engraçadinha, nesse espaço táctil-ótico, resulta numa possibilidade de os sentidos escaparem da domesticação ocidental a que foram submetidos. Tornam-se uma dinâmica do possível, confrontando impossibilidades, diante do turbilhão dos corpos.

Cabem, sobre o que há de pornográfico e de erótico no romance, as discussões que Deleuze desenvolvem sobre a obra de Klossowski, articulando corpo e linguagem (DELEUZE, 1974, p.290): “Não há nada de mais verbal do que os excessos da carne”. Para Klossowski, a transgressão se processa duplamente na linguagem (DELEUZE, 1974, p.295): “da linguagem pela carne e da carne pela linguagem”. Essa é a dupla transgressão que ocorre no romance rodrigueano e que discutiremos mais à frente. Desse modo concebido, Engraçadinha redimensiona a obscenidade e a própria pornografia (RODRIGUES, 1995, p.169):

[...] Dr. Arnaldo pensa que devia estar gritando, devia estar assombrando a casa com os seus gritos. Mas sua vontade quebrava-se na impotência de odiar. Se ao menos explodisse em palavrões! A pornografia irresponsável e selvagem daria, sim, numa espécie de excitação, de embriaguez, de violência artificial.

Com o olho da obs-cena, Rodrigues põe “a boca no trombone” e grita o que o corpo deseja, rompe o silêncio e dedica-se à linguagem obscena, a sua ficção impura, investindo contra uma teologia da linguagem pura. Deleuze fala (1974, p.299): “É a grande ‘pornografia’, a desforra dos espíritos, ao mesmo tempo sobre Deus e sobre os corpos”.

É a ironia e até o humor que fazem passagem para o escoamento pornográfico. Tomemos a seguinte cena (RODRIGUES, 1995, pp.55-56):

Letícia olha-o como a um homem perdido para o seu amor. Pensa: “Oh, Sílvio!