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Cartografias do desejo em asfalto selvagem - engraçadinha, seus amores e seus pecados: humor, erotismo e o pornógrafo no romance rodrigueano

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Academic year: 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES

DEPARTAMENTO DE LETRAS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DA LINGUAGEM

DAVI TINTINO FILHO

CARTOGRAFIAS DO DESEJO EM ASFALTO SELVAGEM -

ENGRAÇADINHA, SEUS AMORES E SEUS PECADOS:

HUMOR, EROTISMO E O PORNÓGRAFO NO ROMANCE RODRIGUEANO

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DAVI TINTINO FILHO

CARTOGRAFIAS DO DESEJO EM ASFALTO SELVAGEM -

ENGRAÇADINHA, SEUS AMORES E SEUS PECADOS:

HUMOR, EROTISMO E O PORNÓGRAFO NO ROMANCE RODRIGUEANO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre. Área de concentração: Literatura Comparada.

Orientação: Professora Doutora Ilza Matias de Sousa.

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Catalogação da Publicação na Fonte. Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).

Tintino Filho, Davi.

Cartografias do desejo em Asfalto selvagem – Engraçadinha, seus amores e seus pecados: humor, erotismo e o pornógrafo no romance rodrigueano / Davi Tintino Filho. – 2013.

123 f.: il.

Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes. Programa de Pós-Graduação em Estudos da Linguagem, 2013.

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Ilza Matias de Sousa.

1. Rodrigues, Nelson - Literatura comparada. 2. Cartografias do desejo. 3. Humor. 4. Erotismo. 4. Pornógrafo. I. Sousa, Ilza Matias de. II. Universidade Federal do Rio Grande do Norte. III. Título.

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DAVI TINTINO FILHO

CARTOGRAFIAS DO DESEJO EM ASFALTO SELVAGEM -

ENGRAÇADINHA, SEUS AMORES E SEUS PECADOS:

HUMOR, EROTISMO E O PORNÓGRAFO NO ROMANCE RODRIGUEANO

Apresentada em: _______/________/________

Resultado: ______________________________________

BANCA EXAMINADORA

_________________________________________________ Profa. Dra. Ilza Matias de Sousa (UFRN)

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DAVI TINTINO FILHO

CARTOGRAFIAS DO DESEJO EM ASFALTO SELVAGEM -

ENGRAÇADINHA, SEUS AMORES E SEUS PECADOS:

HUMOR, EROTISMO E O PORNÓGRAFO NO ROMANCE RODRIGUEANO

_______________________________________________________ Derivaldo dos Santos – Professor Doutor – UFRN

Examinador Interno

______________________________________________________ Cristina Maria da Silva – Professora Doutora – UFC

Examinadora Externa

______________________________________________________ Ilza Matias de Sousa – Professora Doutora – UFRN

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AGRADECIMENTOS

Este espaço me serve, agora, para agradecer, objetivamente, àqueles que, cada um do seu modo, colaboraram para a realização deste estudo.

Agradeço, primeiramente, à minha família (minha mãe Lúcia, minhas irmãs, Maria Cláudia e Neném, meu sobrinhos, Denilson, Mateus e Ana Júlia, e Alexandre), pelo apoio incondicional, em todos os instantes do percurso da Pós.

À professora Ilza Matias, pelas orientações tão necessárias à construção do pensamento crítico.

Aos amigos Joaquim Adelino, Helena Queiroz, Helenice Lopes, Marcos Antônio Araújo, Patrícia Carla, Samuel Lima, Wagner Alves, Avelino Neto, Eliane Silva, Gislene Araújo, Andréa Pereira e Maura Bezerra, pelos momentos que compartilhamos, juntos, reflexivos e necessários, para nos lembrarmos, sempre, de que não estamos sozinhos e de onde viemos.

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RESUMO

Trata-se nesta dissertação de estabelecer, partindo do pensamento contemporâneo francês da linha deleuziana e guattariana, sobretudo, uma analítica do desejo capaz de reconfigurar o romance de Nelson Rodrigues, Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus amores e seus pecados, desterritorializá-lo em relação à tradição crítica e estética, fundada no paradigma realista-naturalista enraizado no pensamento literário brasileiro, especificamente no século XX. Movemo-nos por discussões sobre o autor e sobre o romance, empreendidas por Rolnik, interlocutora de Guattari, o qual está ligado aos novos paradigmas estéticos, à questão da produção de subjetividades, à micropolítica, às multiplicidades e às minorias. Buscamos contribuir para esse redimensionamento, colocando-nos na perspectiva cartográfica e rizomática para surpreender, em Asfalto, seus processos de subjetivação, incidindo sobre as singularidades selvagens, considerando os conceitos de Foucault, aplicados à construção literária enquanto espaço heterotópico, configurando a experiência do fora, como princípios estéticos. Veremos que as personagens, com foco em Engraçadinha, funcionam, como pequenas máquinas desejantes, Corpos sem Órgãos, moléculas desestabilizando as formações molares. Destarte, Nelson Rodrigues, na perspectiva da produção autoral, torna-se o pornógrafo, o literato iterador, como agenciador de uma palavra perversa, para além dos dogmas, da cena romantizada, originando, em sua poética, a revelação da obs-cena, a obscenidade, como crítica às instituições falidas. Trazemos, nesse sentido, referências de Bataille, quanto ao que na atividade estética se relaciona com o excedente da visão, relacionados ao espaço tático-ótico, concepção deleuziana referentes ao corpo-linguagem, pornografia, pornógrafo, narrativas abomináveis. Acompanhamo-nos, pois, dos conceitos da problemática da diferença e da alteridade, repercutindo na larvaridade, nas afecções, que abrem vias comunicantes com fenômenos extremos, atuantes em torno do mesmo e do outro, trazendo a rizomaticidade do mal e da monstruosidade para a construção estética de Asfalto selvagem, vistos sob a ótica de Bataille, Deleuze, Baudrillard, em ensaios que rompem o olhar estrutural em torno da obra e oferecem subsídios para a construção de uma cartografia outra, o território do ficcional, habitado por um povo por vir, na perspectiva tratada por Deleuze e por Blanchot.

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ABSTRACT

In this study, we establish an analysis of the desire able of reconfiguring the novel Asfalto Selvagem: Engraçadinha, seus amores e seus pecados, by Nelson Rodrigues, as well as deterritorializes it in what concerns to the critical and aesthetic tradition, based on the realistic-naturalistic paradigm rooted in Brazilian literary thought, especially in the twentieth century. Such analysis is based on the contemporary French thought following the Guattarian and Deleuze lines. We move by discussions about the author and the novel, undertaken by Rolnik, Guattari's interlocutor, who is linked to the new aesthetic paradigms, to the question of the production of subjectivities, to the micro politics, to the multiplicities and to the minorities. We seek to contribute to this resizing, putting us in the cartographic and rhizomatic perspectives in order to surprise, in Asfalto, the subjective processes, focusing on the wild singularities, considering the concepts of Foucault, applied to literary construction as heterotopic space, and configuring the experience of setting out as aesthetic principles. We will see that the characters, focusing on Engraçadinha, work as small desiring machines, Bodies without Organs, molecules destabilizing molar formations. Thus, Nelson Rodrigues, from the perspective of authorial production, becomes the pornographer, the writer-iterator, as an agent of a wicked word, beyond the dogmas and the romanticized scene, resulting, in his poetic, the revelation of the ob-scene, the obscenity, as a criticism of the failed institutions. In this sense, we bring Bataille references to that it is related to the surplus of vision in the aesthetic activity, also related to the tactical-optical space designed by Deleuze as body-language, pornography, pornographer, abominable narratives. We follow the concepts of differences and otherness problematic, resulting in the larvarity, the affections, which open pathways connecting with extreme phenomena, working around the same and the other. It brings the rhizome of the evil and monstrosity for the aesthetic building of the Asfalto Selvagem under the perspectives of Bataille, Deleuze, and Baudrillard, in trials that disrupt the structural look around the work and offer subsidies to build a cartography another, the territory of the fictional, inhabited by the people to come, under Deleuze and Barthes perspective.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO

UM AUTOR À ESPREITA, PERSONAGENS À DERIVA: AGENCIAMENTOS DO

DESEJO...11

1 ENGRAÇADINHA: A ESTÉTICA TRANSGRESSIVA NA CONSTRUÇÃO DE ASFALTO SELVAGEM...26

l.1 Engraçadinha e o surgimento das fissuras na ordem do discurso ...26

1.2 Humor, erotismo, pornografia, na obs-cena: a figura do olho e a encenação dos sentidos...36

1.3 Máquina desejante e a lógica das sensações: perceptos e afectos nos limites do Asfalto ...42

2 ENGRAÇADINHA, SEUS AMORES E SEUS PECADOS: O ROMANCE COMO EXPERIÊNCIA DO FORA...54

2.1 Asfalto Selvagem: por uma Narrativa do Fora...54

2.2 A ficção molecular na construção do romance de família rodrigueano: “Engraçadinha!”.65 2.3 Os monstros que somos: imagens-fantasma em Asfalto Selvagem...78

3 PORNÓGRAFO-REPETIDOR, LITERATO-ITERADOR: AGENCIAMENTO MAQUÍNICO E A POTÊNCIA DA PALAVRA PERVERSA...94

3.1 O romance larvar rodrigueano e o sistema literário...94

3.2 Perversões nas cartografias do corpo-linguagem...105

3.3 O pornógrafo do Asfalto e o literato-iterador...113

CONSIDERAÇÕES FINAIS...120

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INTRODUÇÃO

“Sou um menino que vê o amor pelo buraco da fechadura. Nunca fui outra coisa. Nasci menino, hei de morrer menino. E o buraco da fechadura é, realmente, a minha ótica de ficcionista. Sou (e sempre fui) um anjo pornográfico” – Nelson Rodrigues.

UM AUTOR À ESPREITA, PERSONAGENS À DERIVA: AGENCIAMENTOS DO DESEJO

O que significaria para nós voltar ao estudo da obra romanesca de Nelson Rodrigues e o que emergeria ali a mostrar-nos a atualidade que nela encontramos? Conduzidos pela fundamentação teórica e analítica do pensamento francês contemporâneo, iniciamos por dizer que seu romance, Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus amores e seus pecados, surpreende e interroga a economia do desejo1 (GUATTARI; ROLNIK, 2011), que perpassa e fissura a sociedade, o capitalismo, a cultura e a política, do ponto de vista do campo da representação, situando-se além do decalque realista e das suas articulações molares, isto é, enrijecedoras e estratificadas.

A partir das reflexões produzidas pelo psicanalista francês, Félix Guattari, durante sua estada no Brasil, em 1982, para dar lugar à discussão dos novos paradigmas estéticos e do papel, poder-se-ia dizer, microrrevolucionário dos processos de subjetivação, nas artes e na literatura, redimensiona-se a singularidade da obra romanesca rodrigueana, encontrando-se nela cartografias do desejo, capazes de minar o modelo realista da tradição

1 O desejo revela-se, no nosso estudo, como princípio motor para o desenvolvimento de toda a sorte de ações transgressivas a serem discutidas no romance Asfalto selvagem. Pela esteira analítica do aporte teórico que utilizamos, percebemos que o desejo é potência, fissuradora da ordem, a partir do corpo molecular que desestabiliza a ordem dos espaços molarizados. Ele constitui a energia dos corpos que, sob o julgo das normatividades, conduz as ações, as transformações, rizomatizando-se pelo espaço, pelos corpos, através dos

te pos. Pa a Guatta i e Rol ik: O desejo o é fo çosa e te u egó io se eto ou ve go hoso o o toda a

psicologia e moral dominantes pretendem [...] O desejo permeia o campo social [...]. [O desejo são] todas as formas de vontade de viver, de vontade de criar, de vontade de amar, de vontade de inventar uma outra sociedade, outra percepção do mundo, outros sistemas de valores. Para a modelização dominante – aquilo que

[ ha a os] de su jetividade apitalísti a – essa o epç o de desejo é total e te utópi a e a ui a

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narrativa brasileira apontando para o que Rolnik, psicanalista, amiga e interlocutora do esquizoanalista francês, chama de a “arte sutil de um esquizoanalista”. Diz a autora (GUATTARI; ROLNIK, 2011, p.159):

Em Nelson Rodrigues, temos um desses talentosos analistas da micropolítica que habitam a literatura. A análise dos caminhos e a dos descaminhos do desejo, em nossa sociedade, encontram em sua obra um prato cheio. Ninguém melhor do que ele e com igual senso de humor, apreendeu as nuanças da família de classe média brasileira dos anos 50, seu perfil e o esboço de sua degradação – degradação que, nessas últimas décadas, só se fez acentuar, o que confere à sua obra grande atualidade. Seu texto destila uma sensibilidade privilegiada para captar, no plano molar [plano da representação], a rigidez com que se conservam as formas vigentes, mesmo quando totalmente desatualizadas; no plano molecular [plano da textura], o imperceptível movimento de partículas solapando tudo, diluindo todos os contornos; entre os dois planos, a ausência total de trânsito, a tensão de uma polaridade, desembocando, necessariamente, numa destruição irreversível. As partículas, que o intenso movimento no plano molecular não para de agitar, nunca chegam a se articular em novas formas sociais. Nunca se constituem novos territórios de desejo. A família implode. Mas um além da família é impensável. “Família ou morte”! expressa bem o que seria o nosso lema se seguíssemos Nelson Rodrigues à risca.

Tal posição analítica encontrada na tessitura romanesca rodrigueana conduz ao cerne das relações entre a literatura e o mal expostas por Georges Bataille, na mesma década de 50, na França. Ele liga a experiência literária a um conhecimento abissal do mal, dando lugar ao tempestuoso, ao tumultuado e ao obscuro (1957), o que, em Rodrigues, configura-se com a pressão sobre o plano molar da família.

No prefácio do seu livro, escreve que visa a esclarecer o sentido da literatura (BATAILLE, 1957, p.8): “A literatura é o essencial, ou não é nada. O Mal – uma expressão pungente do Mal – de que ela é a expressão, tem para nós, creio, valor soberano. Mas esta concepção não envolve a ausência da moral, exige uma ‘supermoral’”, como aquela que para Proust, segundo Bataille, não existe sem a transgressão da lei moral (BATAILLE, 1957, p. 178): “Proust, que teve a raiva da verdade, exprimiu a raiva da justiça que uma vez o possuiu”.

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O desejo se configura, pois, no nosso autor, como uma força que destitui as formações e lança energia para além de concepções valorativas e dogmáticas. É do desejo, enquanto energia pulsante e desconstrutora, de que Nelson Rodrigues se utiliza para dar vida às suas personagens, sendo que, com estas, surge, na perspectiva de parte da crítica da época, uma literatura do mal, com seres impossíveis de aconteceram na realidade, que deflagravam a pornografia e a lascívia, contaminando os bons costumes e maculando a boa família.

Essas tensões vinculam-se a fenômenos extremos, como a monstruosidade, que conectam a literatura às formas contraditórias e paradoxais do mal, que parecem incitar Nelson Rodrigues, quando associa as suas obras dramatúrgicas literárias ao contágio, ao afirmar o “destino infernal” destas, dizendo, assim, dessas obras: “pestilentas, fétidas, capazes, por si só, de produzir tifo e malária na plateia”, conforme citação por Rolnik (2011, p.160).

Dessa maneira, o dramaturgo e romancista rodrigueano perfura o plano molar do modelo da representação, com isso provocando uma densa crítica aos parâmetros que unificavam linguagem, sociedade e consciência, numa estética repetitiva e ideologizada, encerrando a produção artística e a literária numa clausura que conduz a uma falsa assepsia do social e à abolição da diferença. Ao se despir desse espaço asséptico, Rodrigues inicia um espaço outro, possibilitador do surgimento de uma gente que não existe, de uma população povir, como acentuam Deleuze (2011) e Barthes (1979), ao refletirem sobre a criação literária, para além da cópia, da mimese, da reprodução do mundo na arte.

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romance, volta ao espaço fissurado do lar, após ceder à força do desejo que a impulsionou a sair do território familiar e “aventurar-se” (DELEUZE, 1999).

Assim, em termos gerais, a obra Asfalto selvagem é dividida em dois volumes, que tratam da vida da protagonista Engraçadinha nos anos que vão dos 12 aos18, e depois dos trinta. Nos dois momentos da narrativa, compreendemos como se configuram os amores e os pecados da personagem, o que vem se agregar em forma de subtítulo. Os seus amores e os seus pecados principiam-se na adolescência quando ela se envolve, sem o saber com o irmão Sílvio, com quem desenvolve uma relação incestuosa e acaba por gerar uma gravidez indesejada. Engraçadinha foge, com o então noivo Zózimo, de Vitória do Espírito Santo para os subúrbios do Rio de Janeiro. Casa-se, tem outros filhos e, para aplacar a fúria de desejo que a consome, busca apaziguamento na religião: torna-se evangélica. Inicia-se, aí, pela pena rodrigueana, o processo desconstrutivo das formações molares, das instituições, a partir da força do desejo que vem com a potência selvagem da protagonista. O desejo conflui, assim, para que o espaço burguês seja minado, de maneira que as energias moleculares concentradas nele sejam liberadas, esvaiam-se e projetem outras realidades na quais os modelos de conduta, de comportamento e de pensamento sejam subvertidos.

Assim, no romance aqui em estudo, podemos observar que a força de desconstrução que se opera nos direciona para a insuficiência da escritura burguesa, diante da explosão molecular, do advento da multiplicidade e da pluralidade que contrariam e questionam a univocidade dos seus paradigmas. E, de acordo com Barthes (1993, p.165), “abolindo mais e mais sua condição de mito burguês” e sua concepção de humanismo, concepção esta que nos leva a assistir, em Asfalto selvagem, a um conjunto complexo de personagens que destituem do homem o ideal de perfeição, de sua origem sacrossanta, como sendo um berço de razão e de conduta indelével.

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A partir daí, percebemos que a desconstrução da ordem hierárquica e dominante remete o romance de Nelson Rodrigues à problemática da morte, como concebido em Barthes (1993, p. 139): “O Romance é uma Morte; faz da vida um destino, da lembrança um ato útil, e da duração de um tempo dirigido e significativo. Mas essa transformação só pode se verificar aos olhos da sociedade”. Quer se trate da literatura como experiência humana do limite, ou como se refere Barthes (1993, p. 139): “Quer se trate da experiência inumana do poeta, assumindo a mais grave das rupturas, a da linguagem social”.

Nesse sentido, concebemos, na produção romanesca rodrigueana, essa tensão entre o humano e o inumano, estendendo na superfície da obra, um processo que marcaria, com os signos da urbanidade, o asfalto selvagem, onde surgem as singularidades selvagens, à deriva dos desejos e irredutíveis ao saber e ao poder, considerando-se a discussão foucaultiana em A ordem do discurso: nessa obra, Foucault (2009, p.35) fala de uma “exterioridade selvagem”, significando isso sair das condições internas do discurso, de “um núcleo interior e escondido” e “passar às suas condições externas de possibilidade”, àquilo que dá lugar à multiplicidade aberta (FOUCAULT, 1979, 53).

Veremos, destarte, que as personagens de Asfalto selvagem configuram-se como essas singularidades, que, na perspectiva foucaultiana, funcionam como corpos que não se prendem aos dogmas, às normas que castram o ser sensível, que tentam acorrentá-lo em princípios engessantes. Alguns personagens da obra encerram o discurso cultura, política, religião etc, enquanto que outros trincam a solidez de suas normas, lançando-se fora de si, da clausura do eu secularizado, do discurso interiorizado e dogmatizado, deixando vazar o ser do sensível, do não-ser. As singularidades selvagens surgem, pois, como as personagens que, pela potência da protagonista Engraçadinha, turbinam-se, promovem a desordem, mergulhando-se no caos, dissolvendo a ordem, corporificada nos espaços molares, como veremos mais adiante. E na exterioridade do discurso do belo, dos bons costumes, do mito burguês da família como centro de tudo, que apreenderemos o desenvolvimento e a potência desses corpos moleculares ganhando status de selvagem.

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dava vida a personagens que transcendiam as expectativas dos modelos existentes, fazia existir personagens que não se deixavam prender pelo dentro do discurso, estavam para além das formações molares e não se enformavam no processo de submissão e de engessamento.

Nesse sentido, Engraçadinha, mais que uma personagem erótica, é uma máquina desejante, na perspectiva tratada por Deleuze e por Guattari (1995, v.1), funcionando como uma singularidade selvagem, acionando a potência do existir, numa cadeia significativa heterogênea. Máquina que se move pelo desejo, que incita a produção de ações transgressoras nos outros, levando-os a fissurar a ordem dogmática do discurso, como ocorreu com Letícia, com Sílvio, com seu pai Arnaldo, com o juiz Odorico, com seu filho Durval. Ela expõe, na economia do desejo, o dispêndio contrário à lógica capitalística das formações subjetivas.

De acordo com o pensamento de Rolnik (2011), o sistema, seja qual for ele (político, econômico, cultural, no caso rodrigueano, os sistemas do capital e do patriarcalismo opressor), leva o autor de literatura, como cartógrafo, a desenvolver sua estética de modo que, ou se enquadra em tal sistema ou burla os seus princípios.

No Asfalto selvagem, não é mais a ordem do capital, o poder de venda e de compra que mandam. É o desejo que mina o processo hipócrita e utilitário do capital, e impõe a ordem (ou desordem) da máquina desejante. É essa máquina que estabelece o ritmo da transgressão, implodindo a estrutura de identidade e fazendo surgirem as larvas, os corpos que falam, os não-seres.

As personagens rodrigueanas assumem, pois, o desejo como caos e evidenciam, utilizando as palavras de Guattari (GUATTARI; ROLNIK, 2011, p.214) “os componentes criadores da subjetividade”. Rodrigues desorganiza o modelo recalcado de família, introduz nesta sua produção larvar, ou o espectro, o fantasma, a máscara. As linhas que esboçam seu corpo são linhas de vida e linhas de morte embaraçadas. Linhas de vida que se revelam na criação artística, na produção de uma vida outra, como se a vida real, minguada, tivesse que ser destituída para que uma outra surgisse: as linhas de morte, o rizoma do mundo no livro.

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potência transformadora, desconstrutora, mas também, como um mitólogo do cotidiano, das vidas urbanas do asfalto, no sentido barthesiano, inclusive o que resta do mito edipiano, que serviu de representação universal da estrutura cultural da família humana.

A família, assim, como espaço do caos na poética rodrigueana, será a formação molar mais evidente, na qual, as máquinas desejantes, como singularidades selvagens, atuarão minando as resistências, como larvas que decompõem a matéria. Essas larvas corroem as estruturas, as sustentações das formações e fazem com que desabem ao peso da própria carga. Nesse sentido, as denominações “larvas”, “máquinas desejantes” e “singularidades selvagens”, dentre outras, serão utilizadas ao longo do nosso estudo, uma vez que corroboram bem com a perspectiva crítico-analítica da estética do romance rodrigueano. A larva, a máquina e a singularidade far-nos-ão, ainda, recorrer a outras denominações que serão constantemente utilizadas no nosso trabalho, como “corpo sem órgão (CsO)”, “corpo afetivo” e “corpo linguagem”, as quais nos remetem às personagens que “funcionam” quando em contato com o outro, fazendo-o vibrar, pulsar, sair de seu território de suportabilidade, a partir da perspectiva crítico-teórica de Deleuze e de Guattari.

O romance expõe, assim, suas mitologias urbanas, afrontando a moral cristã com as próprias lógicas perversas que esta desenvolve, problematizando a erótica solar, apolínea, com situações intensas, que provocam percepções nebulosas, atravessadas por fantasmas. E, para isso, a montagem do romance mostra que o sistema fatual e a ordenação da realidade são constituídos de relações de linguagens, de signos, de agenciamentos semióticos, e não de relações naturalizadas, como as práticas e a crítica literária do realismo-naturalismo forçaram a conceber.

A máquina desejante se alimenta de recortes das narrativas constantes dessas práticas para compor, em Engraçadinha, o olhar de Esfinge, devorador, de uma Capitu machadiana, para proceder ao resgate do desejo, recalcado na obra machadiana, tentando livrar-se de imagens da mulher como mãe, refúgio, ninho. Nelson Rodrigues procura apreender, em sua protagonista, aquilo que escapa e põe em movimento as sombras inquietas que deslocam o desejo, o que compreende igualmente a instauração das singularidades selvagens.

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afetação, em vez de processos de identidade, furtando-se aos clichês, retirando-a de qualquer teleologia romanesca redencional.

Pode-se dizer que o romancista faz a ultrapassagem de uma concepção ontológica ou de constituição do ser para a transmutação do humor, em que evidencia, numa linguagem carregada de intensidade semântica, o lado risível da humanidade, despindo o tom sério, normalmente, delegado à literatura. Esse humor, enquanto princípio estético, agenciado a outros aspectos, como a alteridade, a monstruosidade, o espaço da obs-cena, enfim, que, em Nelson Rodrigues, convergem para a construção do objeto literário.

O homem rodrigueano surge como uma intensidade fissuradora da ordem molar, familiar, política, jurídica, dissolvendo o discurso do dogma e da verdade absoluta. É com humor solvente, por vezes cáustico, que ele introduz no discurso literário a palavra perversa, desconstrutiva. Nomeia e descreve suas personagens de maneira tal que a seriedade é deslocada do centro para as margens. Sua protagonista não é uma Maria, uma Lúcia, uma Helena, uma Sofia: ela é Engraçadinha, de graça, de gracejo, de engraçada, que lembra riso, gargalhada, pilhéria, fuga da ordem, morte da seriedade, crítica mordaz às aparências burguesas.

Como linguagem, Engraçadinha, sua designação, é uma fala. Mas abre fissuras na mitologia da linguagem literária, via o humor das singularidades. Afirmando que “a literatura ‘realista’ é mítica”, Barthes leva-nos a pensar na estratégia de mitólogo em Nelson Rodrigues, que extrai do mito a crítica da sociedade burguesa. Para Barthes (2007, pp.199-200),

O mito não se define pelo objeto de sua mensagem, mas pela maneira como a profere: o mito tem limites formais, contudo não substanciais. Logo, tudo pode ser mito? Sim, julgo que sim, pois o universo é infinitamente sugestivo. Cada objeto do mundo pode passar de uma existência fechada, muda, a um estado oral, aberto à apropriação da sociedade, pois nenhuma lei, natural ou não, pode impedir-nos de falar das coisas.

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Letícias, de Zózimos, de Silenes etc., para desnortear o espaço da seriedade das instituições falidas. É com o humor estampado na superfície sígnica, que o autor estabelece os mitos urbanos, desapropria os signos do discurso canônico, esvazia da pretensa seriedade e joga no espaço do texto, arquitetando pensamentos, comportamentos e desejos reprimidos.

Se por um lado, Nelson Rodrigues se inscreve como cartógrafo micropolítico, a partir de processos de singularização imanentes à produção literária, por outro, ele se investe contra o recalcamento do mito, desterritorializando-o, quer dizer, no sentido deleuziano e guattariano (DELEUZE; GUATTARI, 1997, v.4). É fazendo-se passar de um agenciamento2 a outro que o próprio ato de desterritorializar se incumbe de produzir, sendo os agenciamentos coletivos de enunciação, e não um sujeito de enunciação, responsáveis pelas multiplicidades em jogo, no campo do social e no campo das subjetividades. Passa do homogêneo ao heterogêneo, da unicidade para o campo das multiplicidades, de onde emerge a revolução molecular do desejo.

A máquina desejante instaura uma desordem amorosa, num movimento da subversão criadora e crítica, perturbando, como diria Lacan (1981, p.73), “a dialética das sublimações”, dentro dos princípios do sublime cristão. Podemos reconhecer tal movimento nas falas de Engraçadinha, dirigindo-se ao marido, despertando nele sentimentos adversos, vistos sob o ponto de vista do narrador, que se destitui da posição onisciente (RODRIGUES, 1995, p.9):

Andando de um lado para outro, D. Engraçadinha (era protestante) estava sempre humilhá-los, talvez. E com os filhos, a mesma coisa. Chamava cada um de “vocês”. E o marido, quando sóbrio, perguntava de si para si –“Como é que eu fiz filhos nessa cara?” Precisava repetir para si mesmo como se quisesse adquirir uma certeza impossível: - “Já foi minha! no escuro, mas já foi minha!” No escuro, sim. Sempre de noite, jamais de dia. Podia repetir de si para si ou anunciar para todo mundo: - “Eu nunca a vi nua! Era verdade. Nunca, nunca!

Aqui cabe bem a discussão de Deleuze e de Guattari sobre os agenciamentos maquínicos de enunciação coletiva (1995, p. 12), indagando a questão na literatura: “Um livro existe apenas pelo fora e no fora. Assim, sendo o próprio livro uma pequena máquina,

2So e age ia e to , dize Deleuze e Guatta i , p. : A lite atu a é u age ia e to, ela ada te

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que relação, por sua vez mensurável, esta máquina literária entretém com uma máquina de guerra, uma máquina de amor, uma máquina revolucionária etc”. – e com uma máquina abstrata que as arrastam. Engraçadinha desmancha a unidade suposta em “você”. Pluraliza e circunscreve sua micropolítica, moleculariza as relações conjugais e dispõe as condições de sua hospitalidade carnal.

Diante disso, esta dissertação tem como fulcro basilar, diante das interrogações suscitadas pelas configurações cartográficas de Nelson Rodrigues, nesse romance, publicado, pela primeira vez, em 1959, em forma de folhetim, no jornal carioca Última Hora, estudar tal perspectivismo cartográfico, visando suscitar a problemática do desejo, que traça uma posição micropolítica do autor, e, por consequência, dimensionando sua prática literária, sua concepção estética na trama das tensões e dos conflitos que predispõem o romance para novos regimes de enunciação, quais os propostos por Deleuze e por Guattari, em processos de singularização marcados por diferenças e por multiplicidades, por onde vasam os registros de afecção de corpos suas linhas cartográficas e intensidades. O “eu” das personagens, no nosso estudo, será questionado, desconstruído, revelando-se como ficções, a partir do que propõe Houston (2010), partindo do espaço de Asfalto selvagem, enquanto uma cartografia construída a partir do desejo (ROLNIK, 2011).

Essa perspectiva, que se afasta da concepção estética realista-naturalista consagrada pelo leitor e o crítico brasileiro do século XIX e do XX, confere ao romance rodrigueano e à sua construção esse novo e atual princípio artístico, como se apresenta em Deleuze e Guattari (1992, p.253): “A arte quer criar um finito que restitua o infinito: traça planos de composição que carrega por sua vez monumentos ou sensações compostas, sob a ação de figuras estéticas”. Nesse caso, figuras estéticas que agenciam figuras míticas, a fim de proceder às visões diferenciadas daquilo que constitui o “destino” comum da humanidade e o lugar da mulher dentro disso.

As mulheres de Nelson Rodrigues vão se desprendendo do peso dogmático da história e da cultura reacionária, que as submetia a quadros de valores relacionados aos pecados e aos amores, ligando-as ao abominável, ou à monstrificação, por fim, à pulsão de morte. Algo que se vincula às percepções do simulacro e do mal. E essa fabricação e malignidade são mostradas na imagem construída pelo marido, lançado em pensamentos vertiginosos (RODRIGUES, 1995, p.9):

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uma fração de segundo. Ela estava no banheiro, tomando banho. Ah, esse corpo molhado! Levanta-se devagar, os pés descalços. Ele próprio se sentia abjeto. Fora de si, de cócoras, quase de gatinhas, colara o olho no buraco da fechadura. Vira aquela nudez molhada e total. Mas sentira tal pusilanimidade diante da mulher, que não teve coragem de prosseguir com aquilo.

O velado prazer faz escoar as forças míticas, a imagem da Esfinge, mas também o triunfo dos sentidos, observável no voyeurismo, ou no gosto do marido de espiar cenas eróticas e o que surge a cada movimento do olhar, buscando-se em pedaços, fragmentos da imagem.

Define-se, aí, um espaço outro, capaz de projetar visualidades em planos heterotópicos3 (FOUCAULT, 2006). Esses outros espaços, que contestam as espacialidades convencionais, são regidos por “uma espécie de contestação simultaneamente mítica e real do espaço em que vivemos” (FOUCAULT, 2006, p.416). São espaços de crise e remetem à exterioridade, à experiência do fora.

Há em Foucault uma convergência de exterioridade, pela via de Blanchot, com quem cruza uma leitura heterotópica da noção de fora. E nesse cruzamento chega-se a Deleuze, verificando-se que esta é também a exterioridade atingida por Nelson Rodrigues, e é como a que ocorre em Engraçadinha, o romance. Nas discussões sobre essa espécie de experiência em Blanchot e em Foucault, feitas por Levy (2003, p.59): “a linguagem se transforma em sua própria realidade”. Faz desaparecer o autor, instância do sujeito da enunciação, enquanto articulação institucional do poder e dá lugar aos agenciamentos de enunciação coletiva. A linguagem libera-se de uma função autoral, identificadora e onisciente.

Assim, se Rodrigues se autodenominou como um eterno menino, um anjo pornográfico, a olhar o mundo pelo buraco da fechadura, é justamente como agente pelo qual se veiculam agenciamento de vozes, não se limitando a dizer que os seus textos, que as suas criaturas advêm de sua fala, enquanto solitário. É o menino, despido de um regramento mais incisivo que a questão autoral se revela no autor de Engraçadinha como

3 Heterotopia.

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uma enunciação coletiva. O buraco da fechadura é, destarte, o espaço outro, heterotópico, da transgressividade, não o espaço normativizado: é por ele que Nelson Rodrigues espreita o mundo das relações opressivas e do fingimento. Ele produz sua arte no exterior dessas relações, sem amarras que o limitem a atuar na norma e para a norma.

É nessa exterioridade, nesse espaço do fora “onde quem fala é a própria palavra”, (LEVY, 2003, p.83) que o Nelson Rodrigues se despersonaliza, vira o garoto curioso, como o peralta Cupido, agencia as vozes sociais, as vozes individuais, e as lança, pelo olhar do ficcionista, no espaço do imaginário.

E, no concernente a Deleuze, a estudiosa confirma a sua concepção de fora (LEVY, 2003, p.83): “O fora é o reino do devir, uma tempestade de forças, o não estratificado, o informe, um “espaço anterior”, de singularidades, no qual as coisas não são ainda”. E quanto às subjetividades? O sujeito e a subjetividade aí em questão pertencem à tradição metafísica e ordenadora na representação de um Eu, dotado de identidade etnocêntrica. O que se individua4, nessa conceituação, “não é um Eu ou uma pessoa, mas um acontecimento em sua singularidade, e em sua indefinição: um vento, um grito, um cachorro magro na rua, uma vida, uma estação”.

Podemos afirmar que, em Engraçadinha, individua-se uma vida, o desejo, no terreno da micropolítica (GUATTARI; ROLNIK, 2011, p.233), os jogos sexuais, as intensidades5, que acabam por disparar o humor. Diremos que em Engraçadinha, o romance, há qualidades entrópicas que colocariam a família como morada do caos, onde subjetividades larvares habitam esse corpo social desorganizado. Algo sempre está prestes a acontecer ali e é sempre o inesperado que se torna acontecimento.

Consideramos, ainda, com concepções deleuzianas e guattarianas, o que equivaleria às matérias larvais que compõem o Corpo sem Órgãos (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.13, v.3): ele é a matéria intensa não formada, não estratificada, a matriz intensiva, a intensidade = O, mas nada há de negativo nesse zero, não existem intensidades negativas nem contrárias. Em luta com o organismo familiar, Engraçadinha,

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Para Deleuze (2009, p.345), os indivíduos “são sistemas sinal-signo. Toda individualidade é intensiva: logo, cascateante, comunicante, compreendendo e afirmando em si a diferença nas intensidades que a constituem. [...] É a individuação que responde à questão Quem?, assim como a Ideia respondia às questões quanto?, como? Quem? é sempre uma intensidade (DELEUZE, 2009, p.346).

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enquanto cria para si um Corpo sem Órgãos, “pleno de alegria, de êxtase, de dança” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.11, v.3), emerge à superfície como fosse algo de monstruoso, cruel, frio. A diferença se estabelece como uma parte maldita, a figura do mal, “destinada à expiação”, considerando a questão de Deleuze, ao dizer que a “diferença é o monstro” (DELEUZE, 1988, p.65). Tal discussão leva-nos, ainda, a estabelecer relações com os ensaios de Jean Baudrillard (2008), sobre a parte maldita e as alteridades radicais que o sociólogo francês epigrafa com a figura mítica da medusa.

Ao mesmo tempo em que a protagonista embrenha-se no organismo familiar, como uma peça de sua engrenagem, ela se desarticula da máquina familiar, desestabiliza-a e a faz implodir sobre as suas falsas verdades. Engraçadinha é um corpo sem órgão que se articula a outros corpos, fazendo-os saírem de seus territórios, criando outros, voltando aos de outrora, ou seguindo linhas de fuga, perdendo a referência de quem são.

A provocação do olhar medúsico encontra-se em Engraçadinha, personagem, podendo-se afirmar, como em Baudrillard (2008), em sua epígrafe, que não se pode olhá-la sem morrer, conquanto a alteridade que a constitui recai na diferença radical, isso dando lugar à produção de “formas monstruosas da alteridade” (Baudrillard, 2008, p.137). O que resulta na “fraqueza das ideias”, “dialéticas da alteridade, que apostam no bom uso da diferença” (BAUDRILLARD, 2008, p.137), sendo esta na literatura ligada à construção de significados e à produção de sentidos.

Essas instâncias narrativas, que também incorrem numa confrontação e questionamento pelo narrador rodrigueano, serão tratadas por nós no sentido de desconstruir esse constructo cultural que estigmatiza a mulher, dentro da sociedade, quando ela mesma apresenta-se como uma sociedade cultural. Para essa desconstrução, recorremos à produção de significância e de subjetivação, que intervêm nas representações dicotômicas do feminino, suas imagens e estereótipos, desorganizando-as.

Desse modo, o deslocamento propicia que, no romance de Nelson Rodrigues, no seu corpo-linguagem, o desejo saía do sistema de reprodução enraizado na sociedade e que nesta se apresenta como decalque num tecido transparente. Abre caminhos na produção de sentidos, na dimensão subjetiva, num efeito de ressonâncias não-lineares e rizomatiza-se6,

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singularizando-se. Desterritorializa o campo social e busca constituir outros territórios, fazendo minar o mito do feminino e os dualismos ontológicos, de conformidade com Deleuze e Guattari (1995, p.31, v.1).

A desterritorialização impõe abalos sísmicos no modelo literário realista-naturalista e abre fendas para a constituição de “novos territórios de desejo e uma nova suavidade” (GUATTARI; ROLNIK, 2011, p. 281). Nesse sentido, não se busca mais reproduzir o real, porque o real já não existe: ele é questionado, subvertido, desconstruído. Vemos, assim, com Rodrigues, a formação de novos territórios, para os quais, muitas vezes, faz-se necessário o movimento para o fora do social e duas amarras: desterritorializa-se, assim, das estruturas rígidas e engessantes do desejo. A noção de realismo, como cópia do mundo exterior, não atende mais às inquietações em torno do texto literário como mimese. Nessa direção, considera-se o seguinte:

Há um certo tratamento serial e universalizante do desejo que consiste precisamente em reduzir o sentimento amoroso a essa espécie de apropriação do outro, apropriação da imagem do outro, apropriação do corpo do outro, do devir do outro, do sentir do outro. (GUATTARI; ROLNIK, 2011, p.339).

Interessam-nos, portanto, a percepção das multiplicidades, das sensações e afecções que se mostram através da rizomaticidade das linhas cartográficas, em Engraçadinha e que nos possibilitam ver o mapeamento do desejo, do corpo, das subjetivações, das desterritorializações e das territorializações.

São problemáticas que nos permitem repensar as articulações da exterioridade, a desorganização dos modelos representados, a reorganização em novos espaços para a alteridade circular, ou espaços do outro, contestadores, implicando constituições de alteridade e de diferença radical.

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instituídos como representação do Idêntico, da Igualdade do Mesmo. Disso ressalta-se que o movimento da autoria, em Nelson Rodrigues, só faz sentido em devir.

Colocamos essas relações em perspectiva, o que contribui igualmente para novas concepções autorais, qual a que nos motiva aqui (SORDI, 2003, p.150):

Autoria não tem a ver com o que já está feito, não é compreendida como um produto, mas como uma abertura para o sempre inacabado; fala mais de um devir, um modo de situar-se, uma ética que tem a ver com o desejo de produzir e com as possibilidades produtivas do outro. O escritor, a escritora, entrega sua obra ao outro, mas há uma diferença entre ver e ser escritor/escritura. [...] Usufruir da autoria é desfrutar de seu processo, porque potencializa o autor, o que não significa o mesmo que ser proprietário – até porque não parece haver uma unidade completa entre a obra e o autor.

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1 ENGRAÇADINHA: A ESTÉTICA TRANSGRESSIVA NA CONSTRUÇÃO DE ASFALTO SELVAGEM.

1.1 Engraçadinha e o surgimento das fissuras na ordem do discurso

Os territórios discursivos construídos por Nelson Rodrigues, desorganizando os lugares familiares da narrativa literária brasileira, vistos na perspectiva do que sugerem Deleuze e Guattari (1995, v.1), incorporam um intrincado de relações conturbadas, intempestivas, projetadas a partir de Engraçadinha, protagonista do romance, construída para ser o epicentro de forças reveladoras daquilo que mais tememos, mas de quem não podemos, por motivos vários, esquivar-nos, como a Medusa, sedutora, mas mortal.

Os outros personagens evidenciam os efeitos da distribuição dessas intensidades, de modo que efetivam um jogo de sentidos e de simulações, que fazem do imaginário e do simbólico, referências de segundo plano, retirando destes o pólo privilegiado de discussão sobre identidade e sobre representações. Da mesma maneira, não interessará ao romancista o problema ontológico7 do romance, de seus personagens e da realidade, questionando a ordem e normalidade do real.

A produção de literatura adquiriu um valor mercadológico e passou a se submeter às regras. O caráter transgressivo, ao mesmo tempo em que, aparentemente, se adequou a elas, tornou-se mais forte, engenhoso, fabulador, como nos fala Deleuze (2011), conseguindo driblar o bloqueio imposto pelo capital, multiplicando a sua própria capacidade de reinventar o seu discurso e ultrapassando os empecilhos impostos pela ordem institucionalizada.

Entendemos, assim, que Nelson, na época de sua produção, não atendendo aos apelos mercadológicos, produziu uma arte que desconstruía as exigências de uma arte ligada aos princípios platônicos do belo e da unidade temático-formal, acabando por estabelecer uma marca transgressiva que estava intimamente relacionada ao seu nome, tanto que várias de suas produções foram censuradas.

As acusações impostas a Nelson Rodrigues, como “Autor Maldito”, que o fizeram se autodenominar como o “Anjo Pornográfico”, relacionam-se exatamente aos efeitos que a sua arte provoca. Nesse sentido, compreendemos que “a palavra proibida”, uma das categorias

7

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dos procedimentos de exclusão apontados por Foucault, constitui a própria natureza polêmica que o nome “Nelson Rodrigues” provoca quando se fala em arte no século XX. E é interessante registrarmos que, a partir do final século XVIII,

[...] quando se instaurou um regime de propriedades para os textos, quando se editoram regras estritas sobre os direitos do autor, sobre as relações autores-editores, sobre os direitos de reprodução etc. [...] é nesse momento em que a possibilidade de transgressão que pertencia ao ato de escrever adquiriu cada vez mais aspecto de um imperativo próprio da literatura. (FOUCAULT, 2009, p.275).

O ato de escrever “literariamente” passou a ser, com o tempo, sinônimo de propriedade de alguém, mais especificamente, daquele que disponibiliza capital para a produção da obra. O nome do autor passou a se vincular a uma marca, de maneira que a sua liberdade para escrever ficou condicionada ao princípio de produção capitalistística, como expõem Guattari e Rolnik (2011). Ou seja, produzir um “bem” que consiga agradar ao “dono” do processo e, consequentemente, ao público consumidor.

Nelson, como veremos, forçava a linguagem a sair de sua conformação de lei, um forçamento que significa provocar o cânone a desterritorializar-se e perfurar “a língua do poder, maior ou dominante” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.45, v.2). A literatura rodrigueana pode, assim, ser vista à luz do que aponta Deleuze (2011), ao pensar à instância da clínica no texto literário, como “a saúde para um mundo doente”, enquanto análise de um mundo-problema. Como pontua Gilles Deleuze em Crítica e clínica (2011, p.14):

A saúde como literatura, como escritura, consiste em inventar um povo que falta. Compete à função fabuladora inventar um povo. Não se escreve com as próprias lembranças, a menos que delas se faça origem ou a destinação coletivas de um povo por vir ainda enterrado em suas traições e renegações.

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Os territórios, para Deleuze (1997), demandam, prontamente, a perspectiva estética. E essa perspectiva se alinha a produções da literatura que se dão em torno de experiências minoritárias8. A língua molar, em Rodrigues, é, portanto, desterritorializada, origina as línguas menores, a língua das minorias, dos que, como afirma Deleuze, por pressão, por traição daqueles que estão no poder. São essas minorias que encontramos na selvageria do Asfalto, lutando pela expressão do desejo.

Assim, em Nelson Rodrigues, a estética é provocada pela experiência do fora e por um querer estar numa minoria. Sua expressão na imagem do anjo pornográfico vincula-o a outro autor de nossa literatura – Carlos Drummond de Andrade, que publicou em 1930 Alguma poesia, no qual se encontra o “Poema de sete faces”, introduzindo a estética do anjo torto e de um eu retorcido, ainda no horizonte da herança barroca mineira. Mas que também instala o seu querer estar na minoria (ANDRADE, 2001, p.21):

Quando nasci um anjo torto desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida

Drummond e Rodrigues instauram, aquele na poesia, e este na narrativa brasileira, o mapeamento do desejo que os move. E a minoria que os constitui. Em Drummond, linhas de religiosidade cruzam-se com as linhas eróticas a que o poeta estabelece como parte de uma analítica, mas com um olhar dessacralizado, voyeurista, espiando a passagem das cenas para erotizá-las, fragmentá-las.

Há até em Engraçadinha, linhas de religiosidade associadas, como em Drummond, à ordem do campo social, compreendendo a família como organismo, mas esmaecendo-se, pela ação das linhas de fuga criadoras, que passam a ser as linguagens eróticas e pornográficas no romance do social a que Nelson Rodrigues atreve-se a singularizar confrontando a prática literária pautada na representação ideológica, em

8 Minoria.

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modelos molares, naturalizando o social, fixando identidades e lugares de fala, como invariavelmente se deu do século XIX para as primeiras décadas do XX.

Vista pelo olhar do personagem, Dr. Odorico Quintela, a protagonista Engraçadinha, mais velha, assim aparece (RODRIGUES, 1995, pp.210-211):

Engraçadinha deixa escapar bruscamente a exclamação: - Que cabeça a minha!

[...]

-Esqueci a oração! Não fiz a oração!

De fato, há anos (desde que se convertera) que a família não fazia uma refeição sem que ela orasse inicialmente. Naquele dia ocorrera o lapso abominável. A surpresa da visita e, além disso, a obsessão da calcinha de náilon, Dr. Odorico não entende; exclama, interiormente: ‘Mas que piada é essa de oração?’ Olha Engraçadinha numa interrogação muda. Ela explica, sôfrega:

- Sabe? Eu me converti – pausa e acrescenta – sou protestante, Batista.

Ele enxuga os lábios com um dos guardanapos que a família só usava nas visitas memoráveis. Pigarreia:

- Muito bem! Muito bem!

No fundo estava em pânico. ‘Uma fanática!’ era o que pensava. Tratando-se de fanatismo religioso, teria, então que dar a geladeira. Fez sarcasmo, acabando de beber o resto de cerveja: - ‘A geladeira contra a fé!’ Desejou-a mais do que nunca, agora que a sabia uma religiosa praticante. Imaginou Engraçadinha, nua, nos seus braços, varada de escrúpulos inefáveis.

O anjo pornográfico rodrigueano coloca em funcionamento, do ponto de vista estético, a máquina desejante e dispara as fissuras na ordem discursiva, dando lugar nessa instância a um espaçamento entre o discurso molar, social, do controle dos corpos, e dos efeitos do poder sobre eles, como falaria Foucault (1979). Na cena, a fissura principia-se à medida que, na tessitura, confronta-se o poder institucionalizado, qual seja a religião, a personagem que se “converteu” (busca pela renuncia do desejo) e o pensamento do juiz Odorico, que visa combater o fanatismo com um eletrodoméstico: “a geladeira contra fé”.

Nesse sentido, no romance rodrigueano, as vozes e falas se anarquizam, abrindo possibilidades de se repensar essa ordem discursiva do poder, permitindo que o discurso da minoria participe minando a ordem, instaurando espaços heterotópicos, ou espaços outros, que, na cena, configuram-se como o pensamento do juiz Odorico: “Mas que piada é essa de oração?”.

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exemplo. O humor é cáustico. O espaço do pensamento da personagem é posto como o local da fissura, por onde escorre o solvente que dissolverá as bases da formação molar.

Se de um lado, está Engraçadinha, casada e protestante da igreja batista, e, do outro, o desejo do juiz, o romancista instrumentaliza, nesse embate, a ação do magistrado por meio de um protocolo linguístico que subverte a ordem macropolítica: é a “piada”, é a “geladeira”, é a “fanática”. É também a analítica do desejo e a expressão que determina os princípios estéticos, fora do paradigma tradicional do belo e do elevado. São espaços de crise e de desvio do modelo social, como em torno de Engraçadinha, cuja força de deslocamento constitui uma espécie de espaço flutuante (RODRIGUES, 1995, pp.35-36):

Ainda ofegante, Irmão Fidélis põe-se de cócoras diante da menina e a segura pelos pulsos. Sem desfitá-la, estrangula a voz:

- Olha pra mim. [...]

Para confuso. Pergunta a si mesmo: - ‘Mais pura, depois do incesto? Vacila: - ‘Vou dizer que até as prostitutas são incorruptíveis. Mas ela entenderá isso? E por que ‘até’, se as prostitutas são como nós? Ergue a voz, com surdo sofrimento:

- Até as prostitutas são incorruptíveis! [...]

Eu continuarei perguntando: - Onde e quando? Naturalmente foi aqui presumo. Teu pai não te levaria para outro lugar – faz a pergunta à queima-roupa: - Foi no teu quarto?

[...]

‘Numa biblioteca!’ – é o seu espanto. [...]

E ela: - Sim. [...]

Fui eu a culpada. [...]

Engraçadinha imaginava: -‘O Irmão finge que nem me liga. Vem aqui e não olha pra mim. Duvido! Fingimento puro. Bem que no enterro de papai, lá no cemitério, houve uma hora em que ele ficou me roçando. Mas eu, que não sou boba, percebi tudo. Quero ver a cara dele, agora. Ele pensa que eu sou uma menina bobinha, cheia de pudor!

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Engraçadinha, marcando a excitação do homem. A pulsação do corpo dela faz pulsar o seu, vibrá-lo também, daí, como desenvolveremos mais à frente, a ideia de “corpo vibrátil”, com Suely Rolnik (2011).

O protocolo linguístico utilizado, aí, para compor o conflito entre a protagonista e o religioso é prenhe de palavras que materializam a pulsão dos corpos, marcando uma poética em que o espaço micropolítico, o das personagens e de suas sensações, e o macropolítico, chocam-se: é o possível incesto e a sua pureza. É a prostituta e a sua incorruptibilidade. É o cemitério, como espaço de respeito à morte e a sugestão da excitação sexual, com o padre possivelmente atritando o seu corpo contra o da ninfa. É, enfim, o espaço dogmatizado da biblioteca enquanto território do saber logocêntrico servindo para transgressão do desejo.

Rodrigues acaba por desorientá-los (corpos e estruturas), através de processos de individuação do desejo9. E acena para a produção das subjetividades. Vemos, desse modo, o chamado “autor maldito e pornográfico” produzir uma arte que afrontava o dogmatismo da tradição literária em evidência, compelindo-nos a afastar o nosso olhar de leitor da cena social e seus arranjos mascaradores para outro lugar – a obs-cena, por onde circulam personagens, vida, fluxos, afetos, desejos, movimentos, errâncias, flutuações, constituindo tanto uma poiésis quanto produções estéticas transgressivas, singularizadas, diante da fixidez das instituições normatizantes, que difundem, que “enformam” e que conformam a estética a um fundo moralizante e a um olhar castrado.

A obs-cena, como espaço para além da norma, vai tomando o lugar da cena em Engraçadinha e ativando também o humor, e se torna como o próprio espaço da transgressão (RODRIGUES, 1995, p.13):

O promotor, porém só pensava em Engraçadinha. Ia no meio do discurso, quando lhe ocorre uma hipótese assustadora: -‘E, se de repente, eu mudo de assunto e começo a elogiar os peitinhos dessa menina?’ Imaginava o espanto da multidão, o terror das autoridades. Houve um instante que lhe veio a tentação, quase diabólica, de parar tudo e recomeçar o discurso em termos de um erotismo hediondo. Diria, então: - ‘Meus senhores e minhas senhoras! Não é nada disso! O que interessa são os peitinhos da nossa Engraçadinha! Amigos, orai por esses dois seios pequeninos!’

9

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Mais uma vez, a cena recortada e posta aqui leva-nos para o embate, para a supressão da ordem pela colocação do desejo enquanto princípio estético e norteador para a produção do ambiente em que, muitas vezes, o sagrado e o profano atuam como força potente e questionadora: é a menina diabólica que ativa o desejo na ordem, ordem esta configurada na pessoa do representante da lei, o Dr. Odorico, é o Eros originando o Dionísio, é o seio enquanto forma típica e clássica atribuída à áurea da maternidade, mas que é posto, na cena, para despertar a mente reprimida do homem para o profano e libidinoso.

Através da trajetória de desejo, descontínua e intricada de Engraçadinha, o romance segue rompendo espaços físicos e mentais, perfurando os espaços molares da sociedade. O romance, outrora publicado em forma de folhetim, capítulo a capítulo, dia a dia, no extinto jornal do Rio de Janeiro Última Hora, de 1959 a 1960, é estruturado em duas partes: “Dos doze aos dezoito” e “Depois dos trinta”. Ao todo, são 112 capítulos, que puxam o leitor para a obs-cena, na fronteira entre vida e ficção, fazendo-o trafegar vorazmente no perigoso e violento asfalto selvagem “pornográfico”, em busca da Engraçadinha, consumida por suas paixões. Dela, poderíamos dizer (HUSTON, 2010, p.132): “Sou uma ficção, amem-me pelo que sou”. É, nessa medida, como enuncia Huston (2010, p. 134), o que faz da literatura a arte “a nos permitir explorar a exterioridade do outro”.

Essa ficção é capaz de fissurar a ordem imposta. E essa fissura inicia-se já pelo título do livro, o substantivo “asfalto”, com sua dureza, escaldante ao sol, de onde se desenvolvem potencialidades maquínicas do “selvagem” e as combinações singulares dos afectos, remetendo a Deleuze (1985). O subtítulo assinala as fendas na superfície discursiva a partir das quais se traçam as linhas de fuga. Tal superfície comporta-se como um espaço “de conjugação virtual entre as singularidades” (DELEUZE, 1985, p.135). Nela, projeta-se a laminalidade do anjo pornográfico. No plano estético, situa a transgressividade, o movimento deslizante do olhar, a pluralidade, a existência de mundos possíveis.

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primeiramente, no espaço burguês de uma família em Vitória do Espírito Santo, e vinte anos mais tarde, no subúrbio do Rio de Janeiro.

No primeiro momento, uma garota que explora, apesar da pouca idade, os desejos do corpo, do seu e dos outros. Não se envergonha de ser o que é. Desperta desejos, tem consciência disso e adora ser vista como pequena “máquina desejante”, como verificamos em uma cena clássica do romance, quando Engraçadinha está a se mirar no espelho do banheiro e a refletir sobre a ferocidade que faz o mundo rizomatizar-se em seu corpo, ao mesmo tempo em que ela se rizomatiza no mundo, destilando desejo:

Tinha certeza de que a outra [Letícia] não lhe chegava aos pés. Aliás, por onde passava, Engraçadinha ia sentindo, em torno, a efervescência do desejo anônimo e geral. Ficava prestando atenção; pensava: – “Aquele está me olhando”. Quando passava por um espelho, olhava, meio de perfil, para si mesma. Nada a excitava mais do que a própria imagem. E, agora, já pensava em tirar tudo, para ver a nudez começar nos pés e subir pelas pernas, pelos quadris, pelo ventre. (RODRIGUES, 1995, p.33).

Engraçadinha difunde, aí, o desejo. Como um ser parasitário, conforme será explorado mais à frente, ela vive do desejo do outro, alimenta-se dele, para fazê-la vigorosa e ela mesma, selvagem, como sugere o título do romance. É essa imagem da ninfa selvagem e rompedora dos espaços molares que suscitará a repressão dos corpos, do próprio corpo na segunda parte, do romance.

Vemos, assim, que a Engraçadinha adulta mostra a máquina dos mascaramentos, mas mantém vestígios das passagens e das velocidades que percorrem a máquina desejante: uma senhora casada, recatada, evangélica, que se apega à religião para esquecer tudo o que fora no passado. Apesar dos anos, ela ainda se encontra com a beleza de outrora, transformada, reforçando mais o desejo que ela insistia em reprimir, mas que continuava ali, firme, forte, vigoroso e potente, atravessando os espaços singulares e heterotópicos: biblioteca, cemitério, hotel, modificando suas funções sociais, abrindo neles, cartografias do desejo, levando, por exemplo, o marido Zózimo, em vários momentos da narrativa, às raias da loucura, como na cena que transcrevemos a seguir:

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– Você não tem obrigação de me amar. E já que a minha mulher não me ama, já que tem horror de mim...

Balbucia: –“Horror?”. E ele:

– Claro! Uma mulher que, em vinte anos. Vinte anos não são vinte dias. Que, em vinte anos, não se deixou ver nua uma única vez! O que é isso? Horror! Você exige que eu apague a luz. Você não se entrega de dia. Você, ah, Engraçadinha, você tem horror de mim! [...] Eu quero... Olha! Queria te ver sem roupa, uma única vez. Apenas isso, Engraçadinha! Uma vez e só essa vez! Eu apenas olharia sem tocar em você. (RODRIGUES, 1995, p.309).

Da liberdade do corpo à repressão da nudez na protagonista, vinte anos depois, depreendemos o desejo, o prazer, o gozo e a sexualidade que se inscrevem em Engraçadinha nas textualidades eróticas ou ditas pornográficas. É o olhar de vinte anos do marido submetido à reclusão visual sobre o corpo de sua esposa que nos leva ao olhar em torno do proibido, ao discurso da cena que flui para a construção da obs-cena como local de escrita do não-dito. Através de Engraçadinha, a produção pornográfica desencadeia, pois, um combate contra o poder instituído, tornando-se o livro uma espécie de máquina de guerra (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.35, v.1): “A escrita esposa uma máquina de guerra e linhas de fuga, abandona os estratos, as segmentaridades, a sedentaridade, o aparelho de Estado”. É máquina rodrigueana esposando a luta contra os locais de poder centralizador, movimentando-se para as margens, para onde os dogmas e os princípios castrantes que obrigam as moléculas a solaparem as paredes da clausura, que, em Rodrigues, é o próprio corpo.

Ainda (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.50):

Definimos a 'máquina de guerra' como um agenciamento linear construído sobre linhas de fuga. Nesse sentido, a máquina de guerra não tem, de forma alguma, a guerra como objeto; tem como objeto um espaço muito especial, espaço liso, que ela compõe, ocupa e propaga. O nomadismo é precisamente essa combinação máquina de guerra - espaço liso.

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O olhar em Engraçadinha cataliza o potencial erótico-sedutor (RODRIGUES, 1995, p.220): “Engraçadinha pensava que, antes, não podia encostar-se na quina de um móvel, sem crispar-se toda. Às vezes, o simples olhar de um homem como que a transfigurava. Seu corpo tornava-se, então, erecto e vibrante”. O olhar insinua a obs-cena. E esse olhar insinuante rizomatiza-se por todos os espaços do romance, como vimos com o desejo transcendental de Zózimo.

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1.2. Humor, erotismo, pornografia, na obs-cena: a figura do olho e a encenação dos sentidos

A obs-cena traz um posicionamento estético constante da violência erótica, que aqui retomamos a partir de Bataille. Posicionamento que repercute no olhar e na questão da visibilidade, de maneira a nos inspirar o estabelecimento dessas relações no romance rodrigueano. Em A história do olho (2003, p.58), romance de Bataille, considerado pornográfico, o narrador diz: “Para os outros, o universo parece honesto. Parece honesto para as pessoas de bem porque elas têm os olhos castrados. É por isso que temem a obscenidade”.

Trata-se da produção em que isso se revela como algo que acontece fora da cena, ou além da encenação do sentido, na direção de arrancar o olhar do visto pelo olho castrado, perturbando a correspondência entre o ver e o visto. Bataille assim daria vez a uma ficção impura. Nessa ótica, perceberemos que a ficção de Engraçadinha, configurada em torno de seu “segredo sujo” (de ter tido um filho, Durval, do irmão morto), faz-se do mesmo modo uma ficção impura. E tais impurezas estariam presentes nos componentes estéticos do romance, podendo-se mesmo dizer que se manifestam na estética transgressiva rodrigueana, tornando-se uma estética da obs-cena, agenciando as linhas discursivas, ora do pornográfico, ora do erótico10, ora carregando a cena de um tom pornográfico, de uma exploração erótica mais sutil e sugestiva dos constituintes do corpo.

Verifica-se, nesse aspecto, como Nelson Rodrigues “apreendeu as nuanças da família de classe média dos anos 1950, seu perfil e sua miséria” (GUATTARI; ROLNIK, 2011, p.159), e buscou afrontá-la com a heterogeneidade dos objetos eróticos e com a linguagem escatológica da pornografia. É como se o olhar castrado batailliano fosse dissolvido no instante em que o leitor abrisse as vidas do “asfalto selvagem” e passasse a enxergar o para além das aparências familiares, nos jogos de poder. A pureza das pessoas, num jogo rizomático do que está fora e do está dentro do romance, é fissurada, maculada diante das pretensas “pornografias” que brotam das páginas do romance.

10 So e o po og fi o e so e o e óti o, fala Do i i ue Mai gue eau: Po og afia veio a desig a

ual ue ep ese taç o de oisas o s e as [...] a lite atu a po og fi a est desti ada p oi iç o. [...] a pornografia tende a ser direta, [...] ela recusa interpor véus entre o sujeito percipiente e o espetáculo de ordem sexual. [...] [Enquanto que] o erótico não para de demonstrar sua superioridade por conta de sua capacidade de não ser pornográfico, enquanto o pornográfico se situa como um discurso de verdade que se recusa

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A realidade, quase delirante, que se produz na obra, remeterá ao corpo como lugar de transgressão e de erotismo violento. Engraçadinha desconstrói e dialoga com o dentro e com o fora, plasmado na imagem do “asfalto selvagem”, atribuindo um caráter rizomático, que se espraia em volta de si. E nesse ponto permite que encontremos equivalência com as discussões de Deleuze e de Guattari acerca da natureza da arte (DELEUZE; GUATTARI, 2005, p.213):

O que se conserva, a coisa ou obra de arte, é um bloco de sensações, isto é, um composto de perceptos e afectos. Os perceptos não são mais percepções, são independentes do estado daqueles que os experimentam; os afetos não são mais sentimentos ou afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por eles. As sensações, perceptos e afectos são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido. Existem na ausência do homem, podemos dizer, porque o homem, tal como ele é fixado na pedra, sobre a tela ou ao longo das palavras, é ele próprio um composto de perceptos e afectos. A obra de arte é um ser de sensação, e nada mais: ela existe em si.

Encarando-se dessa maneira, Engraçadinha, o romance, determina sensações, percepções e afecções, que se articulam à concepção estética da obs-cena, realçando a mistura dos corpos e a dimensão da alteridade, aí, potencializada na figura da protagonista, Engraçadinha, face à castração reguladora da subjetividade. Mas o movimento flutuante da personagem a coloca como caminho de construir para si um Corpo sem Órgãos (corpo este que não funciona só, que precisa de outros para se configurar como potência desconstrutiva), diante da ação da linha de morte combinadas à linha de carne, quais como a elas se referem Deleuze e Guattari (1996, v.3).

Criar para si um Corpo sem Órgãos é inevitável (CsO). É uma experimentação, um exercício estético agenciador, que “não pode desejar sem fazê-lo” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.9, v.3). Traz um paradoxo (1996, pp.9-10, v.3):

Ele não é desejo, mas também desejo. [...]. “Diz-se: o que é isto – o CsO – mas já se está sobre ele – arrastando-se como um verme, tateando como um cego ou correndo como um louco, viajante do deserto e nômade da estepe. É sobre ele que dormimos, velamos, que lutamos, lutamos e somos vencidos, que procuramos nosso lugar, que descobrimos nossas felicidades inauditas e nossas quedas fabulosas, que penetramos e somos penetrados, amamos.

Referências

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