• Nenhum resultado encontrado

3 PORNÓGRAFO-REPETIDOR, LITERATO-ITERADOR: AGENCIAMENTO

3.1 O romance larvar rodrigueano e o sistema literário

Em O que é filosofia? (2005), Deleuze e Guattari fazem-nos pensar na filosofia enquanto processo que se estabelece entre as coisas, o mundo e os seres, atentando para os signos e as linguagens que circulam, pondo em relação sentidos, conceitos, ideias.31 À filosofia, caberia a criação de conceitos e a produção da diferença, no espaço da repetição e semelhança, que instaura a linha de morte. Por isso, afirmam os pensadores franceses: (DELEUZE; GUATTARI, 2005, p.4):

Criar conceitos sempre novos é o objeto da filosofia. É porque o conceito deve ser criado que ele remete ao filósofo como aquele que o tem em potência, ou que tem sua potência e sua competência. Não se pode objetar que a criação se diz antes do sensível e das artes, já que a arte faz existir entidades espirituais, e já que os conceitos filosóficos são também

sensibilia.

Considerando o caráter metamórfico do conhecimento, a existência dos conceitos relacionar-se-ia, nessas condições, ao fazer dos filósofos como uma construção por vir, os quais, segundo Nietzsche, “não devem mais contentar-se em aceitar os conceitos que lhe são dados, para somente limpá-los e fazê-los reluzir, mas é necessário que eles comecem por fabricá-los, criá-los, afirmá-los, persuadindo os homens a utilizá-los”. (NIETZSCHE apud DELEUZE; GUATTARI, pp.13-14).

Mas, transpondo barreiras de pensamento, vemos, nas posições dos filósofos, que as artes mesmas têm a potência conceitual como forma experimental, passando a questionar seu próprio status como arte, como o fez, por exemplo, Marcel Duchamp, em

31 Essas relações colocam instâncias problemáticas, inclusive a da naturalização dos pressupostos que elas

envolvem, instituindo formas dogmáticas de pensamento, do uso e das práticas sígnicas, sendo o sentido o que o que as atravessam, tomados como lugar da verdade (DELEUZE, 1988).

1917, apresentando como arte um vaso sanitário como peça de escultura, intitulada “Fonte”. O ativo criativo deu lugar ao ato conceitual (STANGOS, 1993)32.

Nesse caminho provocador e irreverente, podemos situar a literatura, que manifesta singularidades e opera a repetição33 como “potência terrível” (DELEUZE, 1988, p.35), uma “viagem ao fundo da repetição” (DELEUZE, 1988, p.48), levando o filósofo a se perguntar: “Como a morte inspira a linguagem, estando sempre presente quando a repetição se afirma?” (DELEUZE, 1988, p.53). Como em Artaud34, isso provoca na linguagem um teatro da crueldade, na tentativa de “atravessar e restaurar totalmente a ‘existência’ e a ‘carne’” (DERRIDA, 2009, p.339), ao mesmo tempo cortando a própria carne, para que a diferença apareça. Os rostos, as identidades se decompõem e a diferença surge. A diferença “é o monstro” (DELEUZE, 1988, p.65).

Conduzindo nessas instâncias nossa discussão, podemos dizer, a respeito do romance rodrigueano, que é um romance larvar35 da diferença e essa larvaridade consiste na ideia teatral da repetição, porquanto do desempenho do literato-iterador.

Esse teatro da repetição vai ao limiar da destruição, antes mesmo de “evoluir”, no seio do romance, contudo instaura-se como involução criadora36, que aciona no

32

Diz-nos o estudioso da arte conceitual, a respeito do ato criativo e revolucionário de Duchamp: “Alcançando sua mais pura e mais ampla expressão, a sua arte como ideia foi decomposta e desdobrada em arte como filosofia, como informação, como linguística, como autobiografia, como crítica social, como risco de vida, como piada e como forma de contar histórias” (STANGOS, 1993, 183).

33 Diferença e repetição consistem em problemáticas viscerais no pensamento deleuziano. Ele discute essas

questões a partir de uma filosofia da repetição, por exemplo, em Kierkegaard e em Nietzsche, e a filosofia da diferença, p. em Espinosa e no próprio Nietzsche. Tanto a repetição como a diferença são expostos a vários pontos de vista. Quanto à repetição, ela pode ser compreendida, inclusive como o inconsciente “do livre conceito, do saber, ou da lembrança, o inconsciente da representação” (DELEUZE, 1988, pp.41-42), assim como aparece nas artes, na literatura. Quanto à diferença, Deleuze concebe a “Ideia singular da diferença”, não um conceito geral. E fala o “encontro das duas noções, diferença e repetição só se dá “graças a interferências e cruzamentos entre estas duas linhas concernentes, uma à essência da repetição, a outra à ideia de diferença” (DELEUZE, 1988, p.61)

34

“Recorde-se a ideia de Artaud: a crueldade é somente a determinação, o ponto preciso em que o determinado entretém sua relação com o indeterminado, a linha rigorosa, abstrata, que se alimenta do claro-escuro” (DELEUZE, 1988, p.65.)

35

Deleuze admite o sistema filosófico é povoado por “sujeitos e eus passivos” que agem nele simultaneamente. E que “o filósofo é o sujeito larvar de seu próprio sistema” (DELEUZE, 1988, p.198). Mais à frente, ele situa o sistema literário: “... a repetição das palavras nem se explica negativamente, nem pode ser apresentada como uma repetição nua, sem diferença” (DELEUZE, 1988, p.202). E permite-nos remontar às subjetividades larvares que constituem os dinamismos insólitos expressos no sistema literário: “Há movimentos dos quais só se pode ser paciente, mas o paciente, por sua vez, só pode ser uma larva” (DELEUZE, 1988, p.136). Essa larvaridade engendra ficções que se insinuam em meio aos modelos de representação literários.

movimento da repetição, o seu corte, através de forças e de fluxos que a tornem outra: “Eros e Tânatos distinguem-se no seguinte: Eros deve ser repetido, só pode ser vivido na repetição; mas Tânatos (como princípio transcendental) é o que dá a repetição a Eros, o que submete Eros à repetição” (DELEUZE, 1988, p. 47).

Aí está o princípio romanesco rodrigueano, pois nele encontra-se a involução criadora, na qual pululam as diferenciações embriológicas, larvares, que efetuam rupturas da continuidade na série das semelhanças e nas representações sedentárias do amor, da família ou de outras formas de representações orgânicas, desorganizando-as, até serem submetidas a situações catastróficas.

Tal elaboração incide sobre o próprio conceito de literatura como o conceito que se estende para além da forma, do campo teórico dogmatizado e se configura como uma cartografia na qual a atividade conceitual se expressa na construção dos personagens que não são tipos ou indivíduos, e sim multidão, multiplicidades do inconsciente, não redutíveis a representações homogêneas. Assim é Engraçadinha, no romance: “um corpo povoado de multiplicidades” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.44).

Seres larvares, sentidos larvares e potência criadora, “através das metamorfoses e transformações” (DELEUZE, 1988, p.104), o que propicia o retorno ao caos. Esta é

Engraçadinha: seus amores e seus pecados e nela se abrem linhas de vida e de morte, mas

também de fuga criadora, trazendo “divergência das séries, o descentramento dos círculos, o “monstro”, tornando o romance rodrigueano uma obra problemática. O sistema literário, aí, é atravessado por larvaridades, fluxos desejantes, dos quais Eros é extraído de Tânatos, na procura de outras rebentações ontológicas, para reverter a Ontologia do Mesmo, do Uno, do Semelhante. Recusar as distribuições sedentárias, as repetições sem diferença.

Nessas cartografias do desejo37, em que se torna esse romance, Engraçadinha, a

36 Deleuze afirma: “Criar é sempre produzir linhas e figuras de diferenciação” (DELEUZE, 1988, p.405).

Relacionando a criação às singularidades, ele desenvolve o conceito de involução, que desterritorializa os organismos e remete aos fatores individuantes e intensivos e não a fatores de desenvolvimento (evolução).

37 As cartografias do desejo colocam em causa o horizonte puramente linear do discurso cronológico. Vejamos o

que têm a dizer sobre isso Kirst et al (2003, p.91): “Cartografar remonta a uma tempestade... Tempestade de escolher rotas a serem criadas, constituir uma geografia de endereços, de registros de navegação, buscar passagens... Dentro do oceano da produção de conhecimento, cartografar é desenhar, tramar movimentações em acoplamentos entre mar e navegador, compondo multiplicidades e diferenciações”. Mas as cartografias do desejo, para esses autores procuram explicitar as sensações, tomando-as como “intermezzo” e “demanda irresistível de fabulação...” (KIRST et al, p.98): “A cartografia busca extrair um bloco de sensações, um puro ser de sensações”. Extraindo também perceptos, atingindo sujeito e objeto, que “não tem mais outro objeto nem sujeito senão eles mesmos (DELEUZE, apud KIRST ET AL., 2003, p.99).

personagem expõe o seu ser larvar, o seu rizoma animal, selvagem, desconstruindo a ordenação discursiva do macro-modelo realista e social, deixando-nos também em face à desordenação da comunicação dos afetos e da indisciplina do desejo. É uma máquina literária desejante em relação à produção social da literatura. (RODRIGUES, 1995, p.90):

Era ele. O corpo inteiro colado à porta, Engraçadinha sorri para si

mesma, numa selvagem euforia. Oh, Sílvio! Viria sempre, sempre! “Minha

vidinha, estou aqui! Não posso falar, mas estou aqui! Olha: sou tua! Morde aqui, querido, morde, meu amor, oh!, querido! Do outro lado, com seu obstinado desejo, o lábio encharcado, ele mexe na porta. Diz num sopro: -

“Engraçadinha”! Sabe que a prima está ali. E, súbito, Engraçadinha cai com

um ombro e esmaga o seio contra o trinco. Não fala, mas, se pudesse, ela falaria pediria: - “Machuca, oh, machuca! Não pode falar, mas, ah, agora está pensando: no médico e em Sílvio.

Esse é um dos registros do desejo em Asfalto selvagem. Entretanto, a máquina não para de produzir. Como discutem Deleuze e Guattari (DELEUZE; GUATTARI, 2000, p.30): “Sem dúvida, toda produção desejante já é imediatamente consumo e consumação, logo ‘volúpia’. O mesmo movimento vital ruma na direção da linha de morte. E a imagem do corpo está sempre envolto em sombras”38.

Afirmam o filósofo e o psicanalista franceses (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 48): “o desejo produz real, ou a produção desejante não é outra coisa senão a produção social”. Nesse sentido, as máquinas literárias como máquinas desejantes produzem o real, mas não realismo, antes elas desarranjam-no, já que esse último conceito remete a uma ordenação de uma realidade “x”, submetida à homogeneidade e integrada na lógica dos sentidos enfeixados nas semioses dominantes e fundados em princípios miméticos.

A singularidade de Nelson Rodrigues é encontrar essas instâncias nos interstícios do romance burguês, moralista e conservador, desenvolvendo nele as linguagens embrionárias, nas relações entre a literatura e o mal, expondo um mundo de perversão e de devassidão, o que leva a crítica da época a acusar o autor de pornográfico. Com Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus amores e seus pecados, ele inscreve-se entre os autores malditos, fazedor de criaturas diabólicas, que rastejavam na imundice. Aponta-se o

38 Interessante observar o tratamento que o filósofo alemão Kant dá ao desejo, segundo Deleuze e Guattari

(2010, p.41): “Coube mesmo a Kant operar uma revolução crítica na teoria do desejo ao defini-lo como ‘a faculdade de ser, pelas suas representações, causa da realidade dos objetos dessas representações’”.

romance como uma monstruosidade literária, enfim, como uma máquina pornográfica. O escritor instaura-se como pornógrafo.

Desencadeia-se no seu romance intersticial uma luta contra a ordem tradicional dos valores, das convenções romanescas e dos conceitos pré-estabelecidos pelas representações correntes. Pode-se associar tal combate rodrigueano às considerações de Nietzsche a esse respeito do filósofo (NIETZSCHE apud DELEUZE; GUATTARI, pp. 15- 16, 2005):

[...] não conhecerá nada por conceitos se [...] não os tiver de início criado, isto é, construído numa intuição que lhe é própria: um campo, um plano, um solo, que não se confunde com eles, mas que abriga seus germes e os personagens que cultivam.

Nesse sentido, evidencia-se em Nelson Rodrigues uma constituição filosófica, que nos permitiria dizer que ele aciona máquinas de ser, elaborando conexões filosóficas no espaço romanesco, já que traz, para a cena da escritura, personagens que funcionariam como quase-conceitos, sob o peso da desaprovação da crítica de sua época, colocando em xeque a narrativa verídica, como diria Deleuze na discussão da nova narração, “em proveito do falso e de sua potência artística, criadora”. (DELEUZE, apud BADIOU, 1997, p.148).

É no seu labor literário, artístico (e por que não filosófico?) que assistimos ao autor desconstruindo conceitos historicamente engessados (e engessantes) nas teias de seus romances, de seus contos, de suas crônicas, de seus textos dramáticos. São personagens que se projetam para além do texto literário dogmático da tradição, numa espécie de devir- louco39, ou num devir-animal40, com marcas de uma travessia de fronteiras, que destituem o

39 A partir da discussão sobre as dimensões temporais em Platão, Deleuze aponta o que este considera “um puro

devir sem medida, verdadeiro devir-louco que não se detém nunca, nos dois sentidos ao mesmo tempo, furtando- se ao presente, fazendo coincidir o futuro e o passado, o mais e o menos, o demasiado e o insuficiente na simultaneidade de uma matéria indócil.” (DELEUZE, 1974, pp.1-2).

40 Deleuze e Guattari discutem a respeito da multiplicidade dos devires e entre eles localizam o devir- animal,

dissociando-o de qualquer forma de totemismo. Para eles, assim se dá: “Os devires-animais não são sonhos nem fantasmas. Eles são perfeitamente reais. Mas de que realidade se trata? Não consiste em se fazer de animal ou imitá-lo, é evidente também que o homem não se torna ‘realmente’ animal, como tampouco o animal se torna ‘realmente’ outra coisa. O devir não produz outra coisa a não ser ele próprio [...]. O devir animal do homem é real, sem que seja real o animal que ele se torna; e, simultaneamente, o devir-outro do animal é real sem que esse outro seja real [...]. Devir é um rizoma, não é uma árvore classificatória nem genealógica [...] Num devir animal, estamos sempre lidando com uma matilha, um bando, uma população, um povoamento, em suma, com uma multiplicidade.” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, pp.18-19).

modelo antropológico e o eu desse ethos discursivo: “Eu” histórico, clássico e castrado, fazendo vazar para o seu exterior os germes, que atuam como agentes da transformação.

Engraçadinha, a protagonista, diríamos com palavras deleuzianas e guattarianas, intensifica os devires e “é menos a mulher que é feiticeira” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.32). Por ela, passam todos os devires-animais e mudanças de natureza, o que podemos situar nessa passagem da narrativa (RODRIGUES, 1995, pp.50-51):

Engraçadinha olha para Sílvio. Faz-lhe com a boca um bico de beijo, sussurra: - ‘Meu amante!’ E ele:

- Nunca mais!

Claro que nunca mais. Todavia pouco depois empurrava a porta da prima. Em calças de pijama, nu da cintura para cima, descalço, aproximou-se da cama. Sentiu a mão da pequena no seu braço. Não podiam fazer barulho e Engraçadinha dizia: -‘Chega pra cá’. Sílvio fica de bruços, com a cara enviada na metade do travesseiro. Ela fala tão próximo que o rapaz o rapaz sente a sua respiração na orelha. Ocorreu-lhe, então, a curiosidade que o Irmão Fidélis teria depois:

- Fui o primeiro? Riu, no escuro:

- Seu burro! Ou você não percebeu? Arqueja:

- Sei lá! Mulher é tão falsa!

Ele pensa: - ‘Não tem alma. É só fêmea’. Ah, se Letícia soubesse que, naquele momento, ele estava com Engraçadinha! No quarto em trevas, a intimidade era mais voraz, misteriosa e ameaçadora.

Com surdo desespero, pergunta: - E teu noivo?

Com as unhas ela risca, novamente, as costas do primo. Ele sente na pele lanhos de fogo. Queria saber – “Teu noivo te beija?” E, depois, tem uma curiosidade ainda mais aguda e sofrida:

- Vocês nunca passaram de beijo?

Engraçadinha morde o seu ombro. Sílvio geme. Ela, então, beija na carne do rapaz a marca de seus próprios dentes. Pergunta: - ‘Doeu?’ Diz: - ‘Um pouco’. Cicia:

- Meu amante.

A fêmea, a felina e também o vento que cicia, rumoreja nos ramos das árvores, encantando, enfeitiçando o próprio cosmos. Podemos acrescentar, em face à questão do “animal que logo sou”, a seguir, em Derrida (2002, pp.14-15): “Ao passar as fronteiras ou os fins do homem chego ao animal: ao animal em si, ao animal em mim e ao animal em falta de si-mesmo, a esse homem de que Nietsche dizia, aproximadamente, não sei mais exatamente onde, ser um animal ainda indeterminado, um animal em falta de si-mesmo”.

A germinação, no romance rodrigueano, atua subliminarmente no espaço normativizado da escritura, minando-o, impondo a desordem na ordem discursiva e na ordem da realidade estabelecida como a única. Os espaços minados por esses seres larvais são “um campo, um plano, um solo”, (e por que não um livro?), tornados rizomáticos, nômades, transitórios. É, pois, neles que se instauram as vertentes de Asfalto selvagem e tornam-no obra dos devires, um território do estranho, do perceptível e do imperceptível, movido por intensidades, e fluxos, e estranhos sons e silêncios, intercalados por sinais de pontuação, na sintaxe de uma língua “bárbara”, a dos desejos, com suas marcas de obstinação em movimentos obscuros e perdidos.

Rodrigues surge como um desconstrutor de um realismo normatizador, disciplinar, concitando-nos às aventuras eróticas, para a criação de sua língua “bárbara” e a invenção de um povo menor, população de feiticeiros(ras), matilhas de animais, tendo, como forma, o embrião, que se move entre os interstícios do romance, na babel das obscenidades, afrontando a instituição familiar, desconcertando as famílias que, segundo Deleuze e Guattari (1997, p.31), não param “de conjurar o Aliado demoníaco que as corrói...”.

Em Crítica e clínica (2011), Deleuze evoca a dimensão farmacológica do discurso platônico, remetendo ao pharmakós, ou feiticeiro, fora da pólis, tratando com ervas, sebo e entranhas do animal, constituindo o curanderismo, em oposição à medicina hipocrática da pólis41. Para esse filósofo, o domínio da pólis, recalcando o feiticeiro, impõe a medicina. E, se o escritor é um bruxo, disputa com o médico e com a clínica, o tratamento legalizado, profissional da literatura, enquanto narrativa de redenção ou de salvação, seja no modelo platônico, seja no modelo cristão. Porém, afirma Deleuze (2011, pp.14-15):

A saúde como literatura, como escrita, consiste em inventar um povo que falta. Compete à função fabuladora inventar um povo. Não se escreve com as próprias lembranças, a menos que delas se faça a origem ou a destinação coletivas de um povo por vir ainda enterrado em suas traições e renegações. [...] Precisamente, não é um povo chamado a dominar o mundo. É um povo menor, eternamente menor, tomado num devir-revolucionário. Talvez ele só exista nos átomos do escritor, povo bastardo, inferior, dominado, sempre em devir, sempre inacabado. (DELEUZE, 2011, pp. 14- 15).

41 Remetemos também a Derrida (1991, p.80), que assim diz do pharmakós: “Origem da diferença e da partilha,

o pharmakós representa o mal introjetado e projetado. Benéfico enquanto cura – e por isso venerado, cercado de cuidados -, maléfico enquanto encarna as potências do mal – e por isso temido, cercado de precauções”.

Em Asfalto selvagem, percebemos esse povo menor e essa bastardia conferida ao pharmakós. A máquina do pornógrafo põe-se a trabalhar na tarefa de colocar em trânsito no asfalto urbano, a dimensão selvagem, indomesticável, da população de personagens, ações, estados, conceitos que consistirão em singularidades irrefratáveis ao espelhismo da realidade social, que abalam os discursos moralistas, as convenções clericais, nesse caso, daí a importância do papel do padre e das implicações religiosas, em meio à eroticidade que lubrifica as articulações duras dos ritos, discursos e atos, implicados no controle do corpo (RODRIGUES, 1995, pp.39-40):

Ainda ofegante, Irmão Fidélis põe-se de cócoras diante da menina e a segura pelos pulsos. Sem desfitá-la, estrangula a voz:

– Olha pra mim. E ela:

– Estou olhando.

O Irmão pensa: – “Não vou aguentar muito tempo essa posição”. A articulação dos joelhos já lhe doía. Continua:

– Agora fala. Admira-se:

– Mas o quê? Falar o quê? Aperta os pulsos da menina: – Tudo!

Um pouco atônita, olha-o sem responder. Irmão Fidélis ergue-se (muito incômoda a posição) Apanhando uma cadeira decide, decide: – “Ela

vai me contar tudinho!” Vem sentar-se de frente para Engraçadinha, quase

joelho com joelho. De longa data, já notara que aquela menina tinha, por vezes, em torno dos olhos, um halo intenso. Para si mesmo, concluía: - “Eu sei como interpretar essas olheiras!” Exaltou-se de novo. E, coisa curiosa! Não fingia, nem representava. Toma, entre as suas, as mãos de Engraçadinha:

– Menina! – e repete, com uma violenta chama interior: – Não sei o que houve, nem importa. Você é mais pura do que antes. Agora, sim, é que você é realmente pura!

Para confuso. Pergunta a si mesmo: – “Mais pura depois do

incesto?” Vacila: – “Vou dizer que até as prostitutas são incorruptíveis.

Mas ela entenderá isso? E por que “até”, se as prostitutas são como nós?” Ergue a voz, com surdo sofrimento

– Até as prostitutas são incorruptíveis!

Um padre lúbrico encena estratégias de confissão, culpa e perdão, diante da menina, ele em luta para não ceder ao orgiástico e ao domínio da pele, do corpo desta. E o monstro que se forjava entre eles era o dos movimentos do padre, suas estratégias obscenas. Quase ébrio, diante das artimanhas do feitiço de Engraçadinha, o qual vai abrindo passagem

para o pharmakós, sob as falas pseudoteológicas do padre, que não pode controlar ou submeter as metamorfoses às coerções do poder e da “glória” cristãos.

O povo menor de Asfalto selvagem é antes esse povo “inacabado”, presente nos “átomos do escritor”, como propõe Deleuze (2011). Um povo que, no início da narrativa, aparece enformado, enclausurado nos próprios desejos, nos medos de ousar e parecer estar fora dos padrões, mas prenhe de uma larvaridade que o transborda.