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1 ENGRAÇADINHA: A ESTÉTICA TRANSGRESSIVA NA CONSTRUÇÃO DE

1.2 Humor, erotismo, pornografia, na obs-cena: a figura do olho e a encenação dos

A obs-cena traz um posicionamento estético constante da violência erótica, que aqui retomamos a partir de Bataille. Posicionamento que repercute no olhar e na questão da visibilidade, de maneira a nos inspirar o estabelecimento dessas relações no romance rodrigueano. Em A história do olho (2003, p.58), romance de Bataille, considerado pornográfico, o narrador diz: “Para os outros, o universo parece honesto. Parece honesto para as pessoas de bem porque elas têm os olhos castrados. É por isso que temem a obscenidade”.

Trata-se da produção em que isso se revela como algo que acontece fora da cena, ou além da encenação do sentido, na direção de arrancar o olhar do visto pelo olho castrado, perturbando a correspondência entre o ver e o visto. Bataille assim daria vez a uma ficção impura. Nessa ótica, perceberemos que a ficção de Engraçadinha, configurada em torno de seu “segredo sujo” (de ter tido um filho, Durval, do irmão morto), faz-se do mesmo modo uma ficção impura. E tais impurezas estariam presentes nos componentes estéticos do romance, podendo-se mesmo dizer que se manifestam na estética transgressiva rodrigueana, tornando-se uma estética da obs-cena, agenciando as linhas discursivas, ora do pornográfico, ora do erótico10, ora carregando a cena de um tom pornográfico, de uma exploração erótica mais sutil e sugestiva dos constituintes do corpo.

Verifica-se, nesse aspecto, como Nelson Rodrigues “apreendeu as nuanças da família de classe média dos anos 1950, seu perfil e sua miséria” (GUATTARI; ROLNIK, 2011, p.159), e buscou afrontá-la com a heterogeneidade dos objetos eróticos e com a linguagem escatológica da pornografia. É como se o olhar castrado batailliano fosse dissolvido no instante em que o leitor abrisse as vidas do “asfalto selvagem” e passasse a enxergar o para além das aparências familiares, nos jogos de poder. A pureza das pessoas, num jogo rizomático do que está fora e do está dentro do romance, é fissurada, maculada diante das pretensas “pornografias” que brotam das páginas do romance.

10 So e o po og fi o e so e o e óti o, fala Do i i ue Mai gue eau: Po og afia veio a desig a ual ue ep ese taç o de oisas o s e as [...] a lite atu a po og fi a est desti ada p oi iç o. [...] a pornografia tende a ser direta, [...] ela recusa interpor véus entre o sujeito percipiente e o espetáculo de ordem sexual. [...] [Enquanto que] o erótico não para de demonstrar sua superioridade por conta de sua capacidade de não ser pornográfico, enquanto o pornográfico se situa como um discurso de verdade que se recusa hipo ita e te a tapa o sol o a pe ei a , ue p ete de o es o de ada . MAINGUENEAU, , pp. - 15-16-30-31)

A realidade, quase delirante, que se produz na obra, remeterá ao corpo como lugar de transgressão e de erotismo violento. Engraçadinha desconstrói e dialoga com o dentro e com o fora, plasmado na imagem do “asfalto selvagem”, atribuindo um caráter rizomático, que se espraia em volta de si. E nesse ponto permite que encontremos equivalência com as discussões de Deleuze e de Guattari acerca da natureza da arte (DELEUZE; GUATTARI, 2005, p.213):

O que se conserva, a coisa ou obra de arte, é um bloco de sensações, isto é, um composto de perceptos e afectos. Os perceptos não são mais percepções, são independentes do estado daqueles que os experimentam; os afetos não são mais sentimentos ou afecções, transbordam a força daqueles que são atravessados por eles. As sensações, perceptos e afectos são seres que valem por si mesmos e excedem qualquer vivido. Existem na ausência do homem, podemos dizer, porque o homem, tal como ele é fixado na pedra, sobre a tela ou ao longo das palavras, é ele próprio um composto de perceptos e afectos. A obra de arte é um ser de sensação, e nada mais: ela existe em si.

Encarando-se dessa maneira, Engraçadinha, o romance, determina sensações, percepções e afecções, que se articulam à concepção estética da obs-cena, realçando a mistura dos corpos e a dimensão da alteridade, aí, potencializada na figura da protagonista, Engraçadinha, face à castração reguladora da subjetividade. Mas o movimento flutuante da personagem a coloca como caminho de construir para si um Corpo sem Órgãos (corpo este que não funciona só, que precisa de outros para se configurar como potência desconstrutiva), diante da ação da linha de morte combinadas à linha de carne, quais como a elas se referem Deleuze e Guattari (1996, v.3).

Criar para si um Corpo sem Órgãos é inevitável (CsO). É uma experimentação, um exercício estético agenciador, que “não pode desejar sem fazê-lo” (DELEUZE; GUATTARI, 1996, p.9, v.3). Traz um paradoxo (1996, pp.9-10, v.3):

Ele não é desejo, mas também desejo. [...]. “Diz-se: o que é isto – o CsO – mas já

se está sobre ele – arrastando-se como um verme, tateando como um cego ou correndo como um louco, viajante do deserto e nômade da estepe. É sobre ele que dormimos, velamos, que lutamos, lutamos e somos vencidos, que procuramos nosso lugar, que descobrimos nossas felicidades inauditas e nossas quedas fabulosas, que penetramos e somos penetrados, amamos.

Asfalto selvagem: Engraçadinha, seus amores, seus pecados, romance de inscrição burguesa tem, na sua imanência, o seu outro, o romance larvar do Corpo sem

Órgãos que o constitui enquanto experimentação, circunscrevendo as cartografias do desejo, sua micropolítica de minorias, para além do plano molar, em que “a realidade está aprisionada num álbum de família” (GUATTARI; ROLNIK, 2011, p.160), fazendo da obra um lugar de coexistências.

O romance rodrigueano apresenta o corpo-linguagem como uma repetição vestida, ou travestida, representação orgânica. O seu romance larvar põe o nu, as singularidades selvagens, a diferença, o ser do sensível, a produção do inconsciente. Reveste-se, enfim, de outras superfícies – deslizantes.

Deparamo-nos com essas configurações na voz do narrador (RODRIGUES, 1995, p.14):

Caiu, finalmente, a tempestade. E, por um momento, a multidão não soube o que fazer. Olhava-se em torno como se pudessem existir, num cemitério, toldos, marquises. Surgiram, magicamente, alguns guarda-chuvas. Logo, porém, a ventania virou um deles pelo avesso. Risos. Corre-corre. Num mausoléu próximo, um anjo de mármore, flechado nas costas, recebia a chuva na cara e em todo o corpo nu. Houve uma debandada um tanto desrespeitosa. Parecia uma tempestade exagerada de fita de cinema, com relâmpagos de estúdio e jorros artificiais de mangueira. [...] Perto, o promotor pensava: - “O vestido colado nas coxas! [...]”, olhando-a até sumir: - “Merece um crime sexual”.

O escritor torna-se o animal à espreita. Tudo é captado: a chuva em torrente, o guarda-chuva virado, o anjo nu e molhado sensualizado, o riso dos que correm como crianças, o olhar sobre o corpo molhado da ninfeta. O autor é como o cão, que ergue as orelhas ao menor som, como conceitua Deleuze no texto da entrevista concedida a Claire Parnet (1989), ligando essa relação à questão dos territórios e isso, para Deleuze, “é quase o nascimento da arte”.

Como homem, Nelson faz o ataque violento ao pudor e a qualquer tipo de decência; como escritor comporta-se como um devir-animal, na constituição territorial circunscrita na obra, mas, ao mesmo tempo, faz-se um artesão do Corpo sem Órgãos. Busca refazer um novo corpo, como o fez Antonin Artaud, no seu teatro da crueldade: “Cada um faz seu corpo, do contrário, ele de nada vale”, declara Artaud (apud LINS, 1999, p.57). E em Deleuze (apud LINS, 1999, p.58), o CsO é “o portador das pontas de desterritorialização dos agenciamentos ou linhas de fuga”.

Ao se autodenominar como um “menino que vê o amor pelo buraco da fechadura”, ele se desvincula da visão panóptica, no sentido foucaultiano, libera-se das imagens estereotipadas e busca no cotidiano analisar a proliferação de mitos que

circundam o amor, o desejo, a sexualidade, de onde poderia emergir, em Engraçadinha, uma Vênus, do mito grego; ou, de outro modo, uma Lilith do reino das sombras, do mito judaico.

De qualquer forma, poderíamos ver o escritor como um obsessivo cartográfico, mapeando incessantemente o desejo, na travessia de suas escritas, dir-se-ia, em consonância com outros escritores cartógrafos, leitor que era de Guimarães Rosa, Machado de Assis, Eça de Queiroz e Dostoievsky, mesmo não concluindo o que corresponde hoje ao que seria o ensino médio, por sempre discordar do que ensinavam os professores.

No seu romance, depreende-se um outro saber, um saber do erotismo violento do corpo, cujo potencial erótico-pornográfico seduz e irrompe molecularizando o desejo e ensejando a perspectiva rizomática na literatura. No que concerne ao aspecto do saber corporal, pode-se dizer que aponta também para um não-saber, uma experiência do não- saber, que incide sobre a produção de linhas, agenciamentos e sobre a atividade estética, nas sensações, contribuindo para a emergência do humor, no sentido deleuziano, dando lugar ao que Deleuze chama de um quarto discurso sem fundo das singularidades selvagens (DELEUZE, 1974).

O humor desce ao discurso, “em proveito das superfícies” (DELEUZE, 1974, 139). E, para Deleuze (1974, p.143): “O que é mais profundo do que todo o fundo é a superfície, a pele”. Ainda (1974, p.143): o humor, diz ele, é coextensivo “ao senso e ao não senso”. O humor, em Engraçadinha, traz uma espécie de alegria nietzschiana, que diz no início de A gaia ciência (1978, p.193): “Talvez ainda haja futuro para o riso”. Nelson Rodrigues, em seu romance, faz derivações de humor que nos permite afirmar que ele se coloca na linha do porvir desse humor.

Em Asfalto selvagem, o humor aparece, por exemplo, na memória dos suicidas. O suicídio de Dr. Arnaldo, o pai de Engraçadinha, deixara sob o travesseiro um livro de um autor alemão, Nossa vida sexual, que o médico da família encontrara (RODRIGUES, 1995, pp.15-16):

- Imagina você o que eu descobri na cama do Dr. Arnaldo, debaixo do travesseiro? Faz uma ideia?

O outro não fazia ideia nenhuma.

[...] A indiscrição soltou, na rua, os abismos da alma popular. Cada um de nós, individualmente, pode não ter o sexo na cabeça; mas o povo tem. O pobre para sobreviver precisa da pornografia. De um momento para o outro, aquele livro de divulgação, limpamente didático, nobremente científico, parecia mais uma parede rabiscada de privada. [...] Então, aconteceu esta coisa atroz: uma cidade ou, mais do que isso, um Estado inteiro passou a especular sobre o suicídio. O

homem acabava de ser enterrado e já se improvisava o folclore erótico a respeito. Por exemplo: - uma criada veio dizer que o morto nunca mandara para a lavadeira a sua roupa interior. [...] No fundo da casa, e sem que ninguém visse, queimava, dia após dia, num rito abjeto, as camisas e as ceroulas. Por quê, a troco de quê? Era o que ninguém saberia jamais. O povo não teve pena de nada. Até sua barbicha em ponta, evocativa de Pasteur, sugeriu a idéia de um bode, por assim dizer, sobrenatural. Eis a verdade: - o grande homem da véspera não está livre de ser o bode do dia seguinte, um bode de chifres anelados e ornamentais.

Eis que o humor chega e atinge a superfície em cheio. Estamos diante do quarto discurso. É a figura do bode dionisíaco que desce e produz o não-senso, torna-se o louco da superfície, conduz à arte das superfícies. É o livro sobre a vida sexual encontrado na cama do morto que leva a seriedade do momento ao burlesco. É o humor que se revela na tessitura da narrativa, revelando o que se passa no imaginário popular, o desejo pela fofoca, que se materializa no choque entre a seriedade do homem público, de terno e de gravata, no Doutor Arnaldo, de ceroulas. É, mais uma vez, o humor que é posto como princípio gerativo de uma estética transgressiva, por fora do discurso fixo e dogmático.

Em seu livro sobre a experiência do fora em Blanchot, Foucault, Deleuze, Tatiana Salem Levy remonta, nas considerações sobre arte superficial e arte feliz, a uma discussão que Roberto Corrêa dos Santos faz, analisando Nelson Rodrigues (LEVY, 2003, p.37):

Falando sobre Nelson Rodrigues, Roberto Corrêa dos Santos afirma que nele o interior é posto para fora, uma vez que as coisas são dadas à visibilidade,

colocadas ‘escandalosamente sobre o corpo’, jogadas ‘ao rosto da plateia ou do leitor’. E continua: ‘Cada elemento do hemisfério burguês intimista é

esquartejado pela luz à que o interior será trazido. Daí o horror, o susto, o ridículo. E o riso [...] Nelson, com sua violência plástica, disseca o interior, faz

dele matéria para o olho que pensa’.

Essa é que é a arte feliz, no sentido que Blanchot imprime. Estudando a experiência do fora no romancista francês, Levy afirma (2003, p.38): “Conceitos como profundidade e interiorização, muitas vezes caros à literatura, são agora substituídos por superfície e exteriorização. Arte feliz é, portanto, aquela que se desdobra para o fora, deixando-se atravessar pelas forças que o compõem”. É a arte que assim define o romance rodrigueano.

Onde os outros enxergavam tragédias familiares e corriqueiras, o então aprendiz de jornalista encontrava vida pulsante. O contato direto com os dramas passionais

estimulara Nelson Rodrigues a produzir uma literatura do fora, uma arte das superfícies, uma arte feliz, de uma alegria e humor desconstrutores.

Nelson está à espreita desse/nesse fora. Isso se aproxima do que fala Deleuze (1995, p.11): “Acho que quando vou ver uma exposição, estou à espreita, em busca de um quadro que me toque, de um quadro que me comova [...] estou à espreita de algo que passa dizendo por mim”. (DELEUZE, 1995, p.11).

Nosso romancista, para falar em termos deleuzianos, desposa o movimento imanente da vida. Como nos situa Levy no discurso de Deleuze (2003, pp.105-106): “deixando de ser um Eu macroscópico para constituir uma partícula”, cujo movimento não procura o repouso e o fechamento sobre si mesmo num “dentro”.