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Aspecto da rústica cozinha do sítio “Los Hoyos”.

DA ORDEM MORAL PARA A ORDEM ECONÔMICA

Foto 3: Aspecto da rústica cozinha do sítio “Los Hoyos”.

A cozinha do sítio turístico “Los Hoyos”, de Orfanda Soto. Apenas encontram-se nela panelas e bandejas. A água se mantém resfriada em grandes panelas de barro, seguindo a técnica tradicional. A luz elétrica chegara fazia apenas dois meses. Foto: Camilo Bustos Ávila, 24 de fevereiro de 2010.

Orfanda admite tacitamente que a sua riqueza atual ela conseguiu com seu próprio esforço, mas que na época da “respigueada” mais pessoas tinham a possibilidade de sobreviver, não como agora. Ela sobrepõe sua própria atitude frente ao dinheiro à atitude da mãe dela, que quis se enriquecer mediante a criação de gado (chegando a possuir cento e cinquenta cabeças de bovinos e vários cavalos, o que era considerado uma pequena fortuna e que, para a época da entrevista, ainda tinha cinquenta). Embora comece se orgulhando da sua capacidade de sobreviver, termina reconhecendo as limitações da modernização e da generalização da sociedade mediada pelo dinheiro, quando diz: “você prá fazer alguma coisa hoje em dia, você tem que saber medir, tudo, tudo! Prá poder que fique alguma coisa para você”114 e que “a carne e para o turista”115.

114 Idem. 115 Idem.

Orfanda nos falou dos problemas que teve com a criação de vacas e de bodes, já que aconteceu uma epidemia desconhecida e vitimou boa parte do rebanho. Também fala de seu gosto pela criação de aves, principalmente pombos, os quais são símbolos de amor e paz, razão pela qual ela não os vende, mas os cede em troca de arroz ou outros grãos. Como, além dos pombos, tem uma criação de galinhas, gansos e patos, também menciona as qualidades antibióticas dos ovos de pato. Relata trechos dos dezessete anos que passou como liderança comunitária, sob cuja responsabilidade conseguiu o conserto da via de comunicação com o centro urbano de Villavieja (a mesma construída pela pressão de José Rafael Márquez) e a criação da escola da vereda Palmira, mas expressa seu descontentamento com a comunidade, que não reconheceu seus esforços, entre outras razões, por ter arriscado sua vida negociando com as companhias petroleiras para que instalassem pata-patas (barreiras para a passagem das vacas), já que um dos principais problemas da comunidade era que o gado, que se cria solto, passasse na propriedade de outros e estes se apropriassem dele116.

As considerações de Orfanda em relação ao dinheiro aparecem quando conversa com Rosalba Peñafiel sobre os antigos donos da terra. Esta conversa é importante porque oferece dados importantes para se estabelecer a propriedade da terra no deserto de “La Tatacoa”. Orfanda conta que, em 1973, mais ou menos, a mãe dela, Isabel, comprou a terra a Vicente Cardozo, que era dono de toda a área junto a Diógenes Rubiano Guarnizo (membro da mesma família Rubiano dona da fazenda “La Portada”, nas imediações do centro urbano). Quando o senhor Rubiano morreu, sua viúva, dona Leticia Ramírez de Rubiano herdou a terra. Rosalba conta que, quando chegou a Villavieja, morou num quarto na casa da Dona Leticia, em Villavieja, ressaltando que a senhora, embora fosse rica, vivia em condições miseráveis. Orfanda, para complementar esta imagem, relata que seu sogro foi fazer uma faxina num sótão da casa da senhora e achou uma chocá (bule de barro), cheio de esmeraldas e libras esterlinas.

Rosalba fala, na sequência, que quando estava recém-chegada a Villavieja do seu município natal, Saladoblanco, foi morar na casa de Dona Letícia. Rosalba tinha uma pequena

116 Chama especialmente a atenção, no relato de Orfanda, a violência que teve de utilizar para conseguir este

feito, tendo deixado encerrado o pessoal da exploração do poço petroleiro durante uma tarde para pressionar a companhia a construir os pata-patas. Este tipo de pressão violenta sobre os trabalhadores da companhia é correlato à ameaça a facão de José Rafael Márquez ao operador da escavadeira que trabalhava para o HIMAT para obrigá-lo a construir a via para comunicar Villavieja e Doche. De ambos os relatos destaca a legitimação do uso da violência física como mecanismo de pressão dos habitantes para obter objetivos. Tal violência é respondida com o uso da violência armada por parte dos funcionários públicos e privados. Sobre a violência como forma legítima de resolução dos conflitos em sociedades rurais ver FRANCO, 1969.

geladeira para guardar o leite para sua filha bebê, mas dona Leticia exigiu que, se fosse ligar a geladeira à eletricidade, tinha que pagar a conta de toda a casa por um mês, o que Rosalba acabou fazendo por não ter alternativa. De qualquer forma, o importante é que os relatos mostram uma imagem de Dona Leticia como uma pessoa muito rabugenta e avarenta, sua imagem corresponde com a concepção tradicional do entesourador, aquele possuidor de dinheiro que não o faz circular socialmente; nem o gasta, nem o compartilha.

A imagem que se apresenta de Dona Letícia contrasta com a do sogro de Orfanda, que achou o pequeno tesouro, mas não pegou nem uma moeda, imagem do “pobre, mas honrado”, que se contrapõe a do rico e avarento que, como de Dona Letícia diz Orfanda: “nunca deu de comer a ninguém”117. Da mesma forma são retratados outros personagens velhos e ricos do povoado, como Santiago Rubiano que, segundo a lenda relatada por Orfanda, tinha muitos colchões cheios de dinheiro. A conversa entre Orfanda, Rosalba e o autor, a seguir, ilustra bem o posicionamento tradicional em relação aos entesouradores dos tempos passados.

Camilo: Mas, as pessoas na época tinham grana, mas não usavam. Rosalba: Não, o dinheiro não valia nada.

Orfanda: Nada!

Rosalba: O prazer de ter grana.

Orfanda: Porque, sim, pois tinham essas moedas velhas, descontinuadas e tudo isso apodrecia depois e o dinheiro sumia.

Rosalba: Não sabiam manejar o dinheiro. Orfanda: Sim! não sabiam manejar o dinheiro.

Camilo: Claro! o que acontecia é que não tinham a cultura que se tem hoje do dinheiro, tinham outra cultura, não se necessitava tanto o dinheiro como agora.

Rosalba: E saber que a gente agora almeja ter uma graninha para melhorar um pouquinho a vida, não é?

Os últimos trechos da entrevista são dedicados a questões de botânica tradicional e o uso medicinal de algumas plantas. Finalmente, chama-nos a atenção que o filho mais novo de Orfanda se encontra no local num momento em que deveria estar no colégio e perguntamos o

117 Entrevista a Orfanda Soto, realizada em 24 de fevereiro de 2010 por Camilo Bustos Ávila e Rosalba Peñafiel

porquê a Orfanda, ante o qual ela argumenta que ele não quer porque prefere trabalhar nos ofícios do campo pelos problemas que acontecem no Colégio “Gabriel Plazas” (o único de Villavieja) e culpa dos problemas ao diretor da instituição, que não sabe lidar com os alunos. Orfanda carrega um profundo preconceito contra os Emo mostrando a dificuldade de adaptação das pessoas do campo a manifestações marcadamente urbanas. Do ponto de vista dela, os Emo são igualados a membros de cultos satânicos. Ela relata a conversa que teve com seu filho, que esta terminando o segundo grau no colégio. Começa falando que os jovens, na atualidade, são muito folgados e não querem trabalhar, não querem fazer nada e entram facilmente em atividades criminosas, como o assassinato de pessoas, que ela atribui ao aborrecimento dos Emo e à necessidade de oferecer sacrifícios ao demônio. Esta última fala mostra como a integração entre aspectos próprios do mundo urbano no mundo rural é amplamente conflitante e cheia de entreveros. Mesmo em relação a aspectos tão pequenos, enxerga-se o rico potencial das diferenças.

Outro testemunho, o de Efraín Vanegas (Vereador do município, representante de La Victoria) constituiu uma evocação saudosística dos velhos costumes perdidos e ofereceu, junto com o último trecho da entrevista com Orfanda Soto, a melhor e única manifestação conseguida nas entrevistas de valores culturais e religiosos.

Ele nos conta que nasceu em La Victoria, 17 km. a norte do centro urbano de Villavieja. Toda a sua fala gira em torno da cotidianidade dos habitantes de La Victoria. Primeiramente, menciona que as duas coisas que mudaram a vida das comunidades foram: a chegada do trem (na década de 1930) e a construção dos distritos de irrigação (na década de 70) com a correspondente entrega de parcelaciones que se seguiu. Particularmente este último aspecto fez com que La Victoria crescesse, em detrimento de Potosí, lugar que teve seu auge na época da estrada de ferro porque nele ficava a estação e concentrava todo o movimento da área 118.

Para ele, a construção dos distritos de irrigação e as parcelaciones que seguiram, conseguiram melhorar o nível de vida dos camponeses da região, já que uma pessoa que seja proprietária de um terreno de três ha. consegue um patrimônio de $80.000.000. (aproximadamente 80.000 reais) Entretanto, o grande problema é que em La Victoria e San Alfonso cresceu a população, mas não a terra, e se conformam núcleos familiares que fazem rodízio com as mesmas terras durante o ano inteiro 119.

118 Entrevista a Efraín Vanegas, realizada em 9 de fevereiro de 2010 por Camilo Bustos Ávila e Rosalba

Peñafiel, em Villavieja.

Fala que La Victoria é uma comunidade endogâmica, em que todos os seus membros pertencem a três famílias: Vanegas, Olaya e González. Menciona que o telefone celular mudou os costumes das pessoas, tornando-as mais individualistas. Menciona que existem muitos problemas de alcoolismo na região, ele não bebe e se queixa muito de que os camponeses gastem todo o dinheiro deles na bebida 120.

Ele também nos fala de que alguns dos parceleros venderam seus terrenos para outras pessoas que os estão comprando e criando grandes extensões, um deles é o Sr. Patrocinio Torres e outra, a senhora Nelly Álvarez. Eles são, segundo ele, os novos grandes latifundiários de Villavieja 121.

Para ele, a agricultura comercial sustentada nos agroquímicos tem sido nociva para muitas pessoas, principalmente por causa dos envenenamentos por contato com agroquímicos. Menciona o caso de Ismael Vanegas e de uma menina chamada Catalina, que morreram por intoxicação por fumigar com pulverizadores. Fala também que rapazes de 25 anos estão morrendo de câncer e de que muitas pessoas têm problemas de zunido nos ouvidos em decorrência de um envenenamento progressivo. Muitos dos problemas, segundo ele, vêm dos maus hábitos de manejo da água, já que o aqueduto de La Victoria se abastece da água de um dos canais de irrigação do Distrito USOALFONSO. Este canal, que passa a norte do centro urbano de La Victoria, é, segundo ele, a razão de ser do povoado 122.

Ele fornece outros dados importantes como que La Victoria nasceu entre 1910 e 1915 e que o povoado tem 440 casas, 435 delas de uso residencial e as cinco restantes, de uso institucional. A população do povoado é de quase 2.000 pessoas 123. Para ele, La Victoria é um lugar pacífico, sem violência, nem assassinatos, embora as brigas sejam frequentes. O controle do povoado está nas mãos das matronas, as viúvas dos fundadores, primeiros habitantes do povoado e usuários originais do distrito de irrigação USOALFONSO. Do ponto de vista dele, apesar da prosperidade que a irrigação gerou, o povoado vizinho de San Alfonso

120 Idem. 121 Idem. 122 Idem.

123 Os dados fornecidos pelo entrevistado estão próximos dos encontrados no site do município, segundo o qual

La Victoria tinha 1667 habitantes e 446 casas, em 2005 è significativo o tamanho do corregimiento, pois a população constitui mais de duas terceiras partes da população do centro urbano de Villavieja (67,24%). Em comparação, o corregimiento de San Alfonso apenas tinha 868 habitantes e 243 casas. Informação disponível na internet em http://www.villavieja-huila.gov.co, acesso em sete de maio de 2012, por Camilo Bustos Ávila.

se deu melhor que La Victoria porque os habitantes deste lugar souberam aproveitar melhor as vantagens da irrigação e tiveram “mais visão” (de futuro) 124.

Porém, estas vantagens são limitadas. Para ele, há uma tendência cada vez maior à existência de problemas sérios por falta de água. Da mesma forma aumentam os conflitos pela terra, por causa da razão antes apontada, de que existe cada vez mais gente que depende da mesma terra. Ele menciona que esta circunstância faz com que exista um número crescente de pessoas que se dedicam a atividades distintas da agricultura (30% da população do município, segundo ele). Para ele, Villavieja é um município que expulsa população devido a causas econômicas. Os padres deixam os filhos pequenos para que os avôs os criem e migram para outros lugares em procura de emprego 125.

Mas, segundo ele, nem por isso a população de Villavieja deixa de gostar muito das festas que são: Semana Santa, São Pedro, 10 de agosto e Natal. Este gosto pela festa, segundo ele, não se traduz numa identificação de necessidades coletivas já que os habitantes de Villavieja, embora “amem a terra, não têm muito gosto por questões solidárias” 126. Apesar de todos estes problemas, ele destaca também aspectos positivos como, por exemplo, que as pessoas de San Alfonso têm voltado maciçamente ao Rio Cabrera para pescar, atividade que tinha sido quase esquecida nas décadas anteriores.

Da mesma forma que muitos outros entrevistados, ele acredita que a difícil situação da agricultura acontece, além da falta de água e de terra, pela condição precária dos cultivos de arroz, devido a uma conjuntura de baixos preços, pragas e seca.

Porém, a entrevista com Vanegas, como nenhuma outra, contém um importante apanhado de dados sobre as tradições dos habitantes de La Victoria e Villavieja. Ele faz questão de relatar as tradições funerárias que diferem muito da frieza e solenidade própria da cidade. Nas cerimônias fúnebres do povoado o defunto é velado na própria casa, todos os vizinhos vão acompanhar à família e ficam dia e noite rezando os terços. A família do defunto se encarrega de fornecer café e cigarros para os vizinhos e, à meia noite, serve uma galinha (ou, se a família for pobre, pelo menos um caldo de frango) para oferecer para todos os assistentes. A chamada “ceia de última noite” pode ser um jantar para 200 pessoas 127. No dia do enterro as pessoas fazem o percurso até o cemitério a pé, como é mostrado na foto 4.

124 Entrevista a Efraín Vanegas, realizada em 9 de fevereiro de 2010 por Camilo Bustos Ávila e Rosalba

Peñafiel, em Villavieja.

125 Idem. 126 Idem. 127Idem.

Também com relação à morte, Efraín fala que, para os povoadores da região, as corujas estão associadas com ela. Se uma coruja se posar no telhado da casa de uma pessoa doente, é sinal de que ela virá a falecer. Os funerais são uma tradição que permanece, mesmo que tendendo a perder esses componentes de fartura e reciprocidade apontados pelo entrevistado. Ele ressalta, com saudade, que as comilanças que caracterizavam a principal festa da região, a Festa de São Pedro e São João, já não acontecem mais 128.

Outra tradição que ele ressalta de seus antepassados era o cabelo comprido nas mulheres. Ele lembra que o cabelo da sua avó chegava aos joelhos, mas que ela sempre o mantinha recolhido numa trança e costumava penteá-lo, toda noite, com um enorme pente de tartaruga e que ninguém podia vê-la com o cabelo solto. Ele relata que, sendo criança, uma vez se escondeu e conseguiu vê-la, mas ela percebeu e deu uma surra nele, porque, para ela, era como se a tivesse visto nua129.

Para ele, outro dos problemas de La Victoria é a endogamia já que as crianças estão nascendo com malformações, como no caso da família de Hernando e Emma Vanegas. Outra causa de malformações é a inadequada manipulação de agroquímicos. Por causa da endogamia, há varias pessoas com o mesmo nome. Por exemplo, existem quatro pessoas chamadas Hernando Calderón em La Victoria. Lembra, também, de como existiram três vereadores (incluindo ele mesmo) de Villavieja, provenientes de La Victoria, de sobrenome Vanegas, eram eles: Paulino, Honorio e Efraín Vanegas 130.

Ele mostra como o mutirão era uma prática comum na região, geralmente se usava para o levantamento de novas casas ou o conserto das antigas. Falava-se “vamos comer galinha onde alguém”, queria dizer que ia se construir ou reconstruir uma casa, as construções tradicionais eram feitas com paredes de taipa e telhados de zinco. Hoje, o costume do mutirão para a reconstrução das casas tende a desaparecer, como foi demonstrado quando, em Potosí, houve a necessidade de reconstruir a casa dos irmãos Yara (David e Fabio, também entrevistados), muito bonita e localizada ao lado do Rio Magdalena. Segundo ele, agora, “se não houver dinheiro, não há trabalho”. Este aspecto também foi demonstrado quando se quis fazer a reconstrução da rua principal do centro urbano de Villavieja por meio do mutirão e ninguém aceitou se não fosse com dinheiro incluído 131.

128 Idem. 129 Idem. 130 Idem. 131 Idem.