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DA ORDEM MORAL PARA A ORDEM ECONÔMICA

Foto 7: Interior da Residência de Jose Enoc Culma

As fotos coladas nas paredes mostram a importância que se dá à formação dos filhos e a sua participação nas forças militares, a inserção dentro dos organismos repressivos do Estado aparece como uma possibilidade, perante a crise da sociedade do trabalho, para muitos dos jovens. Foto: Camilo Bustos Ávila, 10 de fevereiro de 2010.

Propositalmente deixamos para o final o testemunho de Deisy Méndez. Ela é uma moradora da Vereda “Palmira”, perto de “Los Hoyos” que, para a época, tinha uns 30 anos e três filhos. Quando a encontramos, ao acaso, fazia quase um ano que ficara viúva porque seu marido, que se dedicara á curtição de couros, tinha sido assassinado numa das curvas da estradinha que leva do centro urbano de Villavieja para aquele lugar. O assassinato não teve fins de roubo e sua causa permanecia desconhecida. Dos três filhos dela: uma menina de doze anos, um menino de dez e outra menina de dois anos, só moram com ela os dois mais novos. A menina mais velha mora com os avôs.

Como a maioria dos habitantes do deserto, Deisy se dedica á criação de bodes. Quando a encontramos estava procurando o macho do rebanho que teve que ser castrado por problemas de parasitas nos testículos, pelo que ficou manso e qualquer um pode levar embora. No deserto há poucas cercas e as pessoas costumam levar os bodes para pastarem onde houver alguma grama. Além desta atividade, ela não desenvolve nenhuma ocupação em particular, mas se assalaria ocasionalmente em casas de vizinhos como Orfanda Soto que precisam de algum trabalho extra, de modo geral, exercendo atividades domésticas. Além daquela atividade ela recebe um subsídio do governo de 100.000 pesos (aproximadamente 100 reais) pela filha e 30.000 pesos (aproximadamente 30 reais) pelo filho, que moram com ela, não conseguindo receber da filha mais velha posto que “não sabe onde esteja morando atualmente”159. Não tem nenhuma ligação com sua própria família, que não mora na região e também não possui terra em seu nome. O local onde mora pertence à família de seu falecido esposo e pode ser a única herança de seus filhos. Suas difíceis condições de reprodução social a mostram como uma pessoa que vive em condições críticas.

Deisy conta que, pelas condições ecológicas do lugar, os vizinhos moram afastados uns dos outros e, como foi mencionado, todos se dedicam à criação de bodes, vendendo-os para sustentar despesas extraordinárias. Se o preço de venda é relativamente barato (perto de 100.000 pesos por um “bom animal”), as despesas da criação são mínimas, pois os animais “se criam sozinhos” e apenas tem que se cuidar de que não fujam160.

Mas a fala é difícil, ela não fala espontaneamente, senão que responde a nossas perguntas. Quase que temos que tirar as palavras da sua boca para que nos relate de quando achou uma jaguatirica e de como tirava o mel. Conta que nunca voltou a encontrar outro

159 Entrevista a Deisy Méndez, realizada em 24 de fevereiro de 2010 por Camilo Bustos Ávila e Rosalba

Peñafiel, em Los Hoyos, Vereda Palmira, Villavieja.

animal como esse e que o mel já não se extrai mais. Também nos diz que, nessa região, as pessoas não costumam adoecer e que não há festas161. Ainda que todo seu relato expresse a dificuldade da reprodução social e a profunda tragédia ecológica, acrescentada pela seca, seu tom parece tranquilo e até desinteressado, sorrindo, às vezes. Em termos gerais, parece que as suas atividades cotidianas não lhe deixam muito tempo como para falar com estranhos, mas a cortesia lhe impede ir embora sem antes responder ao que lhe é perguntado. As respostas são simples, curtas e ambíguas. Um exemplo do anterior aparece no diálogo que transcrevemos

Rosalba: e você para sustentar a família o que tem que fazer? Porque de alguma maneira têm que viver!

Deisy: sim, sim, por ai, por ai uma coisa com outra, nos ajudamos e ai vivemos a vida.162

O subsídio que recebe do governo por seus dois filhos lhe permite uma reprodução precária. Com este dinheiro ela consegue pagar a moto para ir comprar os bens que precisa e não dispõe nas poucas lojas do centro urbano de Villavieja. O filho dela vai à escola da vereda, onde recebe a alimentação e com a comida de que dispõe faz arepas163, patacones164, chocolate ou sancocho165 “se houver carne”166 ou, se não houver, cozinha um feijão com arroz. Ante a aridez da terra, quase todos os bens são comprados e é pouca a provisão que tem em casa, apenas algumas plantas medicinais, os ovos e o leite das cabras, quando não é tempo seco.

Mesmo que esteja integrada na totalidade capitalista por meio de seu trabalho e, principalmente, de seu consumo, Deisy encarna, melhor do que qualquer outro entrevistado, a forma de consciência que temos chamado “camponesa”. A sua é uma vida focada na sobrevivência, não na acumulação. Ainda que suas condições de vida sejam precárias, ela se expressa num espanhol fluente e com palavras que remetem a uma língua antiga (“padrón”

161 Idem. 162 Idem.

163 A arepa é uma massa de farinha de milho assada que é muito popular para acompanhar as comidas, na

Colômbia.

164 O patacón é uma fatia esmagada de banana da terra frita. O nome vem do parecido com a moeda colonial do

mesmo nome que também tinha forma de rodela dourada.

165 O sancocho é uma sopa feita com diversos farináceos como banana da terra, mandioca e/ou batata e alguma

peça de carne que pode ser de boi, de porco, de frango ou galinha e, nas áreas litorâneas, de peixe.

166 Entrevista a Deisy Méndez, realizada em 24 de fevereiro de 2010 por Camilo Bustos Ávila e Rosalba

para se referir ao macho do bode, por exemplo, ou “mochila” para falar do escroto) verdadeiras manifestações residuais de uma língua que não corresponde com a língua das cidades. Embora nossa percepção sobre a sua situação seja preocupante, ela não parece reclamar, parece plenamente conformada.

Os testemunhos apresentados nos retratam uma parcela do cotidiano dos habitantes de Villavieja, conclui-se que a reprodução social baseada na agricultura e na pecuária é crítica pelo colapso dos sistemas de irrigação e pelas difíceis condições climáticas; que todo o sistema de desenvolvimento de uma agricultura produtora de valores de troca parece fadado ao fracasso pela insustentabilidade no tempo e pela superexploração da terra e dos homens que nela produzem e se reproduzem. Entretanto, existem muitos que ainda acreditam na possibilidade de se reproduzir socialmente a partir do trabalho da terra, seja em novas atividades agrícolas, seja no turismo incipiente. A lógica camponesa convive e está implicada na lógica moderna, mas, às vezes, é apenas a vontade dos sujeitos em se acomodar que nos inspira. Vontade egoísta, talvez, mas nem por isso desprezível.