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Aspectos da concepção das políticas públicas: reflexões pontuais sob o prisma da

4. CONCEPÇÃO, IMPLEMENTAÇÃO E RESULTADOS: AS INTERFACES DA

4.1 Aspectos da concepção das políticas públicas: reflexões pontuais sob o prisma da

De forma genérica, as políticas públicas podem ser compreendidas enquanto um mecanismo instituído pelo poder estatal com vistas a promover a redefinição de um determinado status quo social (CARVALHO et al., 2010). Assim, mesmo estando sob domínio do planejamento e intervenção institucional (do Estado), estas são resultantes de uma trama de situações complexas e mais abrangentes, como por exemplo, da atuação de agentes sociais distintos (poder público, setor privado e movimentos sociais), da influência e sobreposição de contextos (recortes socioespaciais e temporais variados), e da composição de uma estrutura fundamental para sua posterior materialização (estratégias, recursos humanos e técnicos disponíveis, instrumentos de validação, encadeamento das demandas, etc.). É a partir da dinâmica de correlações perceptíveis entre as partes constituintes dessa trama, que as políticas sociais são elaboradas e implementadas continuamente.

É importante destacar que a concepção das políticas públicas não resulta de situações casuísticas, mas sim, da identificação de problema ou distorção social grave, inerente a dado recorte espaço-temporal que encontra-se passível de intervenções mitigadoras. Exatamente por isso, é crucial que durante o processo de planejamento seja levado em consideração as características do problema identificado, os fatores contributivos para a sua ocorrência ou dilatação, assim como, os impactos gerados na dinâmica local ou em outras escalas que porventura estejam sob a ação direta do problema. Notoriamente, por se tratar de demandas de caráter subjetivo – quando ocorrem

inclusive situações de interesse diametralmente opostas –, alguns dos problemas/distorções sociais identificados acabam não recebendo a devida importância durante a concepção das políticas públicas, o que também tende a afetar o prosseguimento adequado das etapas posteriores (execução e avaliação dos resultados)39.

Se a identificação de uma distorção socioespacial se constitui enquanto elemento suficiente para direcionar a elaboração das políticas públicas, não devemos, contudo, desconsiderar o fato de que os próprios agentes envolvidos no contexto – ou ao menos uma partes deles – quase sempre possuem alguma interferência na relação de causa-efeito. Isso significa dizer que os prováveis motivos que acabam contribuindo para a instituição de determinada política, podem estar associados à questões de omissão e ação deliberada por parte de um ou mais agentes participativos. Sendo assim, é inequívoco que o processo de concepção das políticas públicas permite o estabelecimento de múltiplas relações de poder e influência entre agentes antagônicos distintos:

As políticas públicas traduzem, no seu processo de elaboração e implantação e, sobretudo, em seus resultados, formas de exercício do poder político, envolvendo a distribuição e redistribuição de poder, o papel do conflito social nos processos de decisão, a repartição de custos e benefícios sociais. Como o poder é uma relação social que envolve vários atores com projetos e interesses diferenciados e até contraditórios, há necessidade de mediações sociais e institucionais, para que se possa obter um mínimo de consenso e, assim, as políticas públicas possam ser legitimadas e obter eficácia. (TEIXEIRA, 2002, p. 2).

Segundo relata Santos (2009), a concepção da política pública nasce atrelada à ideia de intervenção do poder estatal. Dessa maneira, o planejamento institucional das ações desenvolvidas à posteriori fica dependente e sob a responsabilidade dos órgãos legalmente instituídos, ou seja, agentes selecionados para compor a burocracia do setor público. Neste momento específico, a elaboração da política pública acaba adquirindo conteúdo eminentemente técnico, o que não impede que a sua estrutura seja questionada por outros agentes tecnicamente capacitados ou, no limite, pelas entidades representativas do setor privado e da sociedade civil (agentes políticos do próprio Estado, órgãos sindicais, movimentos sociais, associações de grupos empresariais-produtivos, etc.). É o que ocorre, por exemplo, quando a política pública perde o seu traço universalista, pois

39 Ver: SECCHI, Leonardo. Políticas Públicas: Conceitos, Esquemas de Análise, Casos Práticos. São Paulo: Cengage Learning, 2010.

ao ser desfigurada completamente (em relação ao seu propósito mitigador inicial), desencadeia uma série de embates entre os agentes destacados, tanto no que se refere ao contexto político quanto no social.

Corroborando com essa mesma perspectiva, Viana (2006) destaca que a constituição das políticas públicas só pode ser compreendida a partir da visão da totalidade das relações sociais estabelecidas e, neste contexto, temos o papel do Estado atuando como o agente regulador, intervindo – mediante as pressões externas – na estrutura institucional e no processo de contrabalanceamento das demandas existentes, sobretudo, em favor daquelas impostas pelo setor privado. Isso acontece, segundo relata o autor, porquê

[...] a determinação fundamental das políticas públicas são os interesses gerais do capital e as necessidades da acumulação capitalista. A elaboração das políticas públicas não são produtos apenas da acumulação capitalista, mas também dos conflitos no interior do bloco dominante, a pressão popular, os lobbies extra-parlamentares, etc. Os conflitos no interior do bloco dominante fazem parte das múltiplas determinações do fenômeno. O bloco dominante é composto por setores (classes, frações de classes, grupos de interesse, partidos) que dominam o Estado capitalista. Tais conflitos são provocados por interesses opostos, tal como a busca de autonomização de determinados setores da burocracia estatal, entre frações do capital, entre a ação estatal e interesses imediatos de determinadas frações da burguesia. Este conflito é perpassado e reproduzido em outras instâncias, tal como nas disputas partidárias, de grupos de interesse. (VIANA, 2006, p. 1).

Portanto, se ao elaborar uma política pública o Estado leva em consideração, prioritariamente, os interesses políticos de um único agente representativo (as forças capitalistas), em que medida os demais agentes teriam a capacidade de intervir e redirecionar o planejamento da estrutura e das futuras ações institucionais? Na opinião de Teixeira (2002), a medida em que as políticas públicas são instituídas para atender demandas específicas, principalmente de setores marginalizados da sociedade, considerados mais vulneráveis, o estabelecimento de processos de mobilização social por parte dos próprios agentes beneficiários pode representar uma importante ferramenta de pressionamento para a elaboração de uma política pública mais justa e equitativa. A mobilização, neste sentido, pode representar não apenas uma ferramenta decisiva, mas, sobretudo, a única ou a mais viável politicamente, principalmente se considerarmos que a influência isolada de determinados grupos sociais costuma ter menor peso na tomada de decisões por parte do Estado.

No caso da reforma agrária, que resulta da trama de situações estabelecidas entre o poder público estatal, as forças conservadoras do capital agrário e os movimentos sociais do campo, também não observamos mudanças radicais no quadro de relações coparticipavas do processo de formulação da política pública. Resguardados, portanto, os momentos pontuais em que ocorreu o estabelecimento de diálogo mais contínuo40 com os movimentos sociais para o planejamento da estrutura institucional, a política de reforma agrária sempre esteve marcada pela agenda de retrocessos quando, a referência às demandas das classes sociais do campo menos favorecidas sempre esteve condicionada aos interesses de setores rurais elitistas. Mais que isso, afirmamos que inexistiu, ao menos do ponto de vista das estratégias de mitigação das distorções socioespaciais do meio rural, a elaboração da política pública efetiva, pois a maioria das ações levadas a cabo pelo Estado, a partir das diretrizes traçadas, não foram capazes de suprir as demandas existentes, nem tampouco, corrigir os problemas decorrentes da intervenção histórica dos agentes hegemônicos no território.

Conforme cita Fernandes (2013), a elaboração da política de reforma agrária é o resultado da correlação de forças entre instituições que representam interesses de classes e, portanto, defendem proposições distintas para o modelo de reprodução do meio rural. Assim, se nas últimas décadas os movimentos camponeses influenciaram a formulação das políticas de intervenção social (como de acesso à terra, habitação, saúde, educação, infraestrutura, dentre outras), o faz disputando espaços permanentemente com as grandes corporações que, em diferentes tempos e escalas, sustentam a elaboração de políticas de integração dos espaços rurais ao sistema capitalista de produção agrícola.

Assim, dependendo da maneira como se institui essa trama de relações sociais, a formulação da política de reforma agrária pode apresentar conteúdo emancipatório ou de subordinação. Para Fernandes (2013), o ponto de partida disso é a compreensão de que o uso do território por camponeses e capitalistas apresenta dinâmicas opostas de desenvolvimento41, daí a necessidade desses agentes influenciarem a estruturação das políticas públicas segundo a sua lógica particular, individual:

40 Conforme destaca Fernandes (2003), ainda que a reforma agrária durante o Governo Lula tenha preservado os interesses do desenvolvimento agrícola no campo, nesse contexto temporal específico, a política pública foi formulada a partir da contribuição de especialistas, técnicos da área e representantes dos movimentos sociais do campo, o que até então não havia ocorrido em governos anteriores.

41 Na opinião do autor, apesar do território ser uno, o significado deste para cada um dos agentes aludidos é substancialmente diferenciado. Conforme nos cita Santos (2000), para os atores hegemonizados o território representa muito mais um espaço de abrigo, enquanto para os hegemônicos este mesmo território significa a possibilidade de recurso, de lucro.

Os territórios camponeses necessitam de políticas de desenvolvimento a partir da lógica do trabalho familiar, cooperativo ou associado, para a produção de diversas culturas para os mercados locais, regionais e nacional e para exportação. [...] A ação do agronegócio em territórios camponeses rompe a territorialidade camponesa e cria a subordinação, expressa pela territorialidade do agronegócio. As políticas dos territórios camponeses não podem, portanto, ser elaboradas a partir da lógica do agronegócio. As políticas públicas com esses princípios devem ser elaboradas preferencialmente pelos movimentos camponeses, sindicatos e suas confederações. Políticas emancipatórias são formuladas pelo protagonismo e pela participação. Parte da coerência entre as relações sociais e a produção territorial. Políticas de subordinação são elaboradas por representantes ou ideólogos de uma classe para a outra classe, como forma de manter o controle, de possibilitar a manutenção de uma condição de existência. (FERNANDES, 2013, p. 56).

A partir desses apontamentos, é possível reafirmarmos que a composição institucional da política de reforma agrária nasce apresentando um conteúdo paradoxal, pois ao definir o programa e suas diretrizes, o Estado acaba referendando os interesses dos setores mais reacionários do campo. Enquanto agente regulador, tem ainda a capacidade de limitar a elaboração da política pública coparticipativa, pois mesmo havendo pressões dos movimentos representativos dos trabalhadores rurais, tais pressões, em muitos casos, não têm o efeito imediato esperado. Dessa maneira, a política de reforma agrária é elaborada sem atender as demandas daqueles para a qual foi instituída, ao contrário, acaba sucumbindo às imposições de classes dominantes para a formulação de um texto estruturador que, em sua essência, tenha a capacidade de suprimir formas mais justas e igualitárias de desenvolvimento socioespacial no campo.

Se as entidades representativas dos trabalhadores rurais não tem tido a oportunidade de participar incisivamente do “planejamento institucional” das políticas para o campo, não podemos negar que as mais variadas formas de luta e organização social se constituem enquanto mecanismo indutor para a formulação e execução da política de reforma agrária. Por meio das manifestações e ocupações de terra, os trabalhadores rurais mantêm-se ativos e, de alguma forma, acabam influenciando a produção e geração das políticas territoriais. As ocupações de terra, por exemplo, “possuem os elementos de um projeto de política pública popular, ou seja, uma política pública elaborada sem a intervenção direta do Estado, muito embora este esteja envolvido em todas as suas etapas, através dos diálogos, negociações e da repressão” (FERNANDES, 2015, p. 396). Diante disso, consideramos que são formas de luta que

representam a contra-resposta dos movimentos sociais organizados ao processo unilateral e contraditório em que as políticas públicas sociais são concebidas institucionalmente. Assim,

Estes fatos são expressões incontestáveis do debate paradigmático, das disputas territoriais e dos diferentes modelos de desenvolvimento defendidos pelas classes. Através do paradigma do capitalismo agrário é possível ignorar as classes sociais e as conflitualidades das disputas por políticas de desenvolvimento mas, é impossível negá-las. Estas disputas estão marcadas cotidianamente pela luta de classes que se manifesta pelas ocupações de terra, protestos, reivindicações e proposições de políticas públicas pelos movimentos camponeses. [...] Elaborar uma proposta de política pública e contribuir para construir um modelo de desenvolvimento para a agricultura camponesa continua sendo o grande desafio destes movimentos. (FERNANDES, 2015, p. 385).

Desse modo, levando em consideração que a sobreposição de agentes, contextos e estruturas torna-se fundamental para compreendermos como ocorre a elaboração da política pública, é necessário, contudo, ir além e evidenciar em que medida a reforma agrária contribui para o processo de reordenamento do espaço rural. Assim, no tópico 4.2 discutimos a política de reforma agrária enquanto mecanismo de normatização da trama territorial no campo.

4.2 Estado, política pública e meio rural: considerações sobre a normatização do