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Estado, política pública e meio rural: considerações sobre a normatização do

4. CONCEPÇÃO, IMPLEMENTAÇÃO E RESULTADOS: AS INTERFACES DA

4.2 Estado, política pública e meio rural: considerações sobre a normatização do

O processo de reconfiguração da trama territorial no espaço agrário pode ser definido como o resultado de conexões estabelecidas entre agentes e dinâmicas sociais variadas que, influenciadas pelo vetor tempo, encontram-se num permanente estado de mutação. São, portanto, dinâmicas que se constituem em virtude de forças internas (horizontais) e, sobretudo, externas (verticais), capazes de produzir, transformar ou mesmo suprimir a reconfiguração do território. Dessa trama de forças entre agentes distintos, o Estado figura como o responsável por legitimar determinadas lógicas de reprodução e, valendo-se do seu arcabouço normativo, regula todas as formas de disputa e conflito que envolvem, concomitantemente, a instituição das políticas públicas e o reordenamento da dinâmica territorial (GOMES, 2015).

Considerando isso, partimos do princípio de que a reforma agrária representa importante instrumento de regulação de práticas sociais específicas no campo. Assim,

num primeiro momento seria possível reafirmarmos que a política pública é legalmente implementada com o intuito de normatizar demandas de classes sociais não-elitistas, ou seja, ao menos sob a perspectiva prática, deveria possibilitar que os trabalhadores rurais pauperizados – a partir das reivindicações e anseios mais básicos – tivessem garantida a sua autonomia social, constituindo novos arranjos e ressignificando a sua existência no campo. Entretanto, isso nem sempre acaba acontecendo. O Estado, a quem compete definir as normas gerais de regulação territorial pela política pública, acaba contribuindo para a perpetuação da lógica contraditória de desenvolvimento do meio rural, e isso ocorre, segundo destaca Santos (2006), por que a dinâmica dos espaços permite a readaptação das normas criadas nos mais diversos níveis políticos, inclusive, as “normas do Estado”, que acabam sucumbindo as “imposições do território capitalista”42.

Neste sentido, em virtude da dinamicidade das relações estabelecidas no (e pelo) território, as normas impostas pelo poder soberano do Estado nem sempre determinam a materialização de processos específicos no campo. Assim, segundo destaca Antas Jr. (2005, p. 210), seria possível falar da existência de normas com “conteúdo híbrido”, ou seja, de políticas de regulação social no meio rural onde os demais agentes normativos também condicionam a sua efetividade, seja no contexto político ou no socioterritorial. Mesmo aquelas normas que a priori poderiam ser consideradas como de “conteúdo puro” – em que a sua implementação pelo poder estatal não encontra-se sob a influência direta de outras instâncias reguladoras –, se constituem enquanto mecanismos multi-compostos de regulação, pois o próprio Estado se coloca como agente representativo das corporações capitalistas da agricultura e, sendo assim, regula o território a partir de políticas que visam atender as necessidades desse agente hegemônico. Daí consiste a necessidade de percebermos que tais normas são resultantes da sobreposição de lógicas distintas e que, por consequência, acabam contribuindo para

[...] a ruptura do modelo de regulação predominantemente estatal e a rápida transição para o modelo que denominamos híbrido – nele estão presentes o Estado, as corporações hegemônicas e, com menor peso de influência nesse tripé regulatório, os movimentos sociais organizados mais as associações “relevantes” de consumidores (já que essa noção ainda é quase um mito, em se tratando da democracia brasileira). Não se trata aqui de subestimar a força dos movimentos sociais brasileiros,

42 Conforme destaca Antas Jr. (2005), ainda que o domínio das ações de regulação do território estejam sob a égide do Estado (território normado), não se pode desconsiderar que o próprio território, representado pela sobreposição de múltiplas relações de conflito e poder, também estabelece mecanismos de normatização (território como norma). É o que acontece, por exemplo, em processos de territorialização do capital agrícola, do agronegócio.

mas, antes, de sublinhar o modo como as duas instâncias de poder aludidas desmobilizam a maioria dos processos de emancipação social. [...] A manutenção dessa lógica está gerando uma hipertrofia do poder dos agentes corporativos hegemônicos, e as consequências são os desequilíbrios sociais e naturais de abrangência planetária, decorrentes dessa concentração desmesurada de poder. (ANTAS, JR., 2005, p. 209- 210).

Em que pese a capacidade dos movimentos sociais do campo para se articularem territorialmente e, com isso, estabelecer formas específicas de regulação, não podemos negar que a política de reforma agrária é implementada com base em normas restritas à esfera do poder público. Em linhas gerais, isso significa dizer que ainda que o território – na condição de instância normativa (território como norma) – se imponha a determinados preceitos legais definidos pelo Estado, a norma pública sempre acabará “suprimindo” as demais tentativas de regulação. Nisto, aliás, consiste a diferença principal entre o Estado e os demais agentes, pois o primeiro, ao intervir no território pelas políticas de regulação social, acaba valendo-se de seu aparato coercitivo e repressor (além do ideológico), fazendo com que as normas “instituídas externamente por outros agentes” acabem sobrepostas por processos de regulação territorial estatal.

Por outro lado, na medida em que diferentes agentes e instâncias interpõem processos de regulação socioterritorial no campo, isto é, de produção de normas, é inegável que a trama de conflitos e contradições tende a ganhar maior espessura. O interesse das classes não hegemônicas é frequentemente oposto ao das grandes empresas, por isso as diversas formas de regulação de uso dos espaços (do território) sempre privilegia este ou aquele agente. Por exemplo, a corporatização do território, com a destinação prioritária de recursos para atender as necessidades geográficas das grandes empresas, acaba por afetar os movimentos de luta coletiva (ou a população beneficiada pelas políticas públicas), já que desse modo a despesa pública ganha perfil largamente desfavorável à solução de problemas sociais e locais. Grosso modo, a utilização dos recursos também é definida pelas normas públicas que, nesse caso, resolvendo um aspecto do conflito distributivo, em favor da economia capitalista, agrava os demais (SANTOS, 2006).

Se a materialização da reforma agrária resulta da sobreposição de processos de regulação estabelecidos entre o Estado, os movimentos sociais do campo e o capital agrário, da mesma maneira, a ressignificação de seu conteúdo dependerá da coexistência de outras normas sociais (sobretudo, implementadas pelo poder público). São lugares

onde as normas devem possuir “um elevado grau de precisão para regular aspectos detalhados das relações sociais, da produção, do consumo, da circulação, proporcionando a manutenção de determinadas solidariedades sociais” (ANTAS, JR., 2005, p. 76). Nesses lugares em que se materializam as ações da reforma agrária, os trabalhadores rurais, agora na condição de beneficiários da política pública,

[...] passam a interagir com as novas exigências e normas de funcionamento colocadas pelo Estado, emergindo dessa interação (que pode contar com maior ou menor participação na sua definição e da qual podem participar os movimentos sociais) a nova realidade social dos assentamentos, que envolve a divisão dos lotes e distribuição da população no interior dos assentamentos, as possibilidades de locomoção, o trabalho no lote, as relações no interior dos projetos, o uso dos espaços coletivos existentes. Surgem daí cobranças e tensões recíprocas que fazem com que, de alguma forma, a mobilização existente anteriormente precise se manter (LEITE, et al., 2004, p. 111)

Corroborando com tais assertivas, Gomes (2015) conclui que, se num primeiro momento a criação dos assentamentos de reforma agrária encontra-se subordinada às ações afirmativas e às políticas de reordenamento territorial, promovidas pelo Estado, com base nos dispositivos constitucionais e na legislação vigente, o desenvolvimento articulado dessas áreas também ficará dependente do cumprimento ou da instituição de outras normas de regulamentação da vida política, econômica e social. Atrelado a isso, a capacidade de articulação da população rural demandante para impelir os órgãos competentes a cumprirem tais normas estabelecidas no texto regulador da política pública, também será determinante durante a trajetória de emancipação dos novos territórios constituídos por meio da luta coletiva. Apenas a criação das áreas de reforma agrária – mesmo representando importante mecanismo de efetivação de direitos sociais – não garante que a reestruturação das relações socioterritoriais no meio rural possa ocorrer. Tudo isso dependerá da materialização de processos de regulação e disputas de poder pelo território, estabelecidos interna e externamente à escala do lugar.

Assim, em virtude das discussões empreendidas, a partir do tópico 4.3 apresentamos em que medida a reforma agrária tem sido capaz de permitir a reestruturação das dinâmicas agrárias e sociais no estado do Rio Grande do Norte. Para tanto, estabelecemos correlações entre recortes temporais e espaciais distintos, como forma de analisar os impactos efetivos da política pública no contexto supracitado.

4.3 Os resultados efetivos da política de reforma agrária no espaço rural do Rio