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Coriat e Jerusalinsky (1996) denominam como instrumentais, as ferramentas das quais os aspectos estruturais se valem para efetuar os intercâmbios com o meio. Percebe-se a importância dos aspectos instrumentais para o desenvolvimento dos aspectos estruturais. Brandão (1997, p. 43) evidencia que os aspectos instrumentais são o conjunto de ferramentas naturais do bebê que servem de “recurso para a produção de ações que abrangem o reconhecimento de seu próprio corpo e do corpo do outro, passando pelas atividades simbólicas, e que são o ponto de contato entre o bebê e sua mãe”.

Essas ferramentas facilitadoras no processo de estruturação do bebê são: a linguagem, a psicomotricidade, a aprendizagem e os hábitos. Peruzzolo (2016) os amplia, considerando ainda a noção de atividades diárias (AVDs) inserida em um cotidiano.

Segundo Peruzzollo (2016), no início da vida, o bebê apresenta seus aspectos estruturais em constituição e maturação e ainda não possui habilidade instrumental para dar

conta da passagem do que lhe é necessário para o que é da dimensão do desejo. Por isso, é necessário que aquele que exerce a função materna, enquanto Outro Primordial, lhe empreste seu aparato instrumental e seu desejo ao filho.

Em relação ao processo de aquisição da linguagem, Souza e Flores (2013) salientam que para o bebê se apropriar da linguagem, em um sentido Benvenisteano, é preciso que alguém suponha um sujeito que tenha algo a dizer, e sustente um lugar de fala ao bebê. Isso se dará por meio de processos de homologia e interpretância que articulam ao campo da linguagem o que, ao início, são expressões corporais do bebê (KRUEL, 2015).

Cabe ressaltar que o termo apropriar-se revela a capacidade de um locutor ocupar o lugar de eu perante um tu a cada ato enunciativo atualizando seu conhecimento linguístico (BENVENISTE, 1995). Como o bebê ao início não possui conhecimento linguístico, ele ocupa esse lugar a partir da suposição materna de um sujeito que tem algo a dizer, mas esse dito está na interpretação materna. No exercício dessa interpretação, atribuída às suas manifestações, é que ele acessará as relações de forma e sentido da língua, tomando-a enquanto objeto de conhecimento. Durante tais interpretações a mãe ou sua substituta o coloca no espaço discursivo de eu, diante dela ou de outras pessoas, que serão seus alocutários. A linguagem não teria apenas uma função instrumental, como também uma função estruturante, pois por meio dela se manifesta a suposição de um sujeito do discurso, do qual fala Benveniste (KRUEL, 2015), que está ancorada na suposição de um sujeito psíquico no bebê por parte do outro (PERUZZOLLO, 2016).

Em relação à psicomotricidade assinala-se que a mesma surgiu a partir da necessidade medida, como especialidade para tratar de distúrbios motores sem origem neurológica (LEVIN, 1995). Autores como Henry Wallon (1879-1962), buscaram teorizar a respeito da relação dialética entre as manifestações psíquicas e orgânicas. Wallon (2007) defendia que a criança é um ser social e sente necessidade de contato corporal desde a mais tenra idade. Para tal, coloca seu tônus postural a serviço da relação que estabelece com sua mãe. O diálogo tônico é condição central na construção da inteligência, pois coloca a criança na busca da imitação precoce, forma de relação mais arcaica entre a criança e sua mãe, tal como salienta Muratori (2014). Peruzzolo (2016) afirma que é possível a partir dos conceitos de esquema corporal e imagem corporal, em uma perspectiva atravessada pela psicanálise, supor uma hipótese de funcionamento psicomotor na escuta em transferência na clinica interdisciplinar de bebês.

Em relação às AVDs, Peruzzolo (2016, p. 57) esclarece seu cunho instrumental, na medida em que refere-se a uma atividade humana, “provocada e executada por um humano a partir de uma ação espontânea, criativa e transformadora que põe em prática o desejo de fazer algo para si, para o outro/outros e para ambos”, promovendo assim seu econtro com a cultura que está inserido, bem como sua história e seu contexto social. A autora, considerando seu foco teórico, propõe assumir o termo cotidiano em lugar de AVDs, pois no cotidiano as atividades do bebê e sua família ilustram o potencial do sujeito de colocar em ato seu desejo, compondo no seu dia a dia uma rotina ou um ato inédito.

Peruzzolo (2016) complementa, assinalando que é por meio do cotidiano que a mulher experimenta a maternidade, sua função enquanto mãe, ampliando sua consciência de si e de seu próprio filho. Sendo também no cotidiano que a mãe se depara com as diferentes formas de cuidado e verificação das necessidades particulares de seu pequeno, elaborando ações espontâneas, criativas e transformadoras que colocam em prática seu desejo de exercer a maternidade e o desejo por aquele filho.

Percebe-se que, por meio do cuidado materno que se dá no cotidiano, os aspectos instrumentais do pequeno bebê vão diferenciando-se gradativamente rumo à compreensão e expressão da linguagem, ao processo de aprendizagem que se dá no brincar, permitindo a evolução da experimentação sensório-motora para a capacidade de simbolizar, e da organização do gesto como um complexo em que o motor e psíquico se fundem a serviço do desejo. O bebê não apenas sofre a maturação de suas funções motoras, mas as coloca a serviço de uma relação com aqueles que exercem as funções parentais. Ele anda na direção dos pais, ele fala para os pais, ele escuta seus pais, porque ele se faz ouvir, se faz ver, enfim, assume uma posição de desejo frente ao investimento simbólico daqueles que exercem as funções parentais. Gradativamente a criança assume uma posição desejante, posição de sujeito no discurso, e constrói uma teoria a respeito do mundo e de si mesmo. Logo, limitações biológicas, cognitivas e/ou psíquicas que obstaculizem o estabelecimento de tais instrumentos pelo bebê, denunciam problemas de desenvolvimento que poderão ter consequência negativas ao sujeito, sobretudo nos três primeiros anos de vida, tempo lógico de indiferenciação entre aspectos estruturais e instrumentais.

Entende-se o desenvolvimento, tal como Coriat e Jerusalinsky (1996), envolvendo além da maturação biológica e a constituição psíquica e cognitiva, a aquisição de habilidades instrumentais no campo da linguagem, da psicomotricidade, da aprendizagem, dos hábitos inseridos no cotidiano, por meio do brincar e dos processos práticos de socialização. Por isso,

a importância de se analisar a complexa interação entre aspectos biológicos e aspectos ambientais na construção muito singular de cada sujeito e conhecer o que as pesquisas identificam como fatores de risco ao desenvolvimento infantil, em especial risco ao processo de constituição psíquica.