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CAPÍTULO II – O ESTILO DE COPINHA

2. Análises

2.1 Copinha e Herbie Mann: Diálogos com o jazz

2.1.3 Aspectos interpretativos

Timbre

O timbre na construção do estilo próprio de um intérprete é, sem dúvida, elemento dos mais importantes. Assim como o timbre de um cantor o faz ser reconhecido no instante em que começa a soar sua voz, um instrumentista também é reconhecido através do som que emite de seu instrumento, ainda mais se tratando de um instrumentista de sopro.

Pelo que pudemos constatar através de entrevistas dadas por Copinha, o timbre que emitia na flauta era seu diferencial em relação aos outros flautistas da época. Isso pode ter motivado Jobim a tê-lo escolhido para gravar todos os arranjos de flauta do disco “Chega de Saudade” de João Gilberto (1959). Como todas as músicas foram arranjadas por Jobim, o mais provável é que tenha sido o timbre (não o virtuosismo, ou sua qualidade como improvisador) o motivo desta preferência.

Descrever um timbre é quase como descrever uma cor, os adjetivos se encobrem de subjetividade e podem ser interpretados de várias maneiras. Mesmo assim, arriscamos definir o som de Copinha como opaco, airado, escuro. O que faz o som ser produzido desta maneira é uma emissão um pouco mais relaxada, resultando em uma coluna de ar menos direcionada ao orifício do bocal. Esse timbre é bastante similar a algumas referências que temos de flautistas norte-americanos como Herbie Mann, Frank Wess e Buddy Collete.

Como vimos no início do capítulo a história da flauta no jazz está intimamente ligada ao saxofone, já que eram os saxofonistas que a tocavam quando a flauta começou a aparecer nas big bands. Isso explica este timbre “escuro” por duas vias: a primeira é o fato de o saxofone no jazz (e nas músicas populares, de forma geral) também ter como

característica o timbre mais “fechado”, se comparado a saxofonistas que se dedicam ao repertório da música erudita. A tentativa de reprodução deste timbre na flauta, como busca estética, levaria a esta sonoridade que encontramos nos flautistas de jazz acima mencionados, o que acabou por tornar-se uma qualidade do instrumento dentro do gênero22. Outro ponto que destacamos é o fato de que, embora com digitações similares, saxofone e flauta têm embocaduras muito diferentes. O que se percebe em alguns flautistas que são também saxofonistas, é um menor controle do músculo superior do lábio - que na flauta exige muita precisão -, o que também pode resultar num som airado. Herbie Mann possuía um timbre ainda mais opaco que Copinha e ambos tocavam outros instrumentos de sopro além da flauta, o que, como já dito, pode ocasionar este tipo de sonoridade.

Para entender quais as propriedades físicas que explicam a opacidade do timbre, fizemos uma gravação tocando uma mesma nota, Si 3, com dois tipos de emissão diferentes: a primeira foi emitida de forma mais rígida, que resulta em uma nota mais brilhante, e a segunda com o músculo mais relaxado, que resulta no som airado mencionado acima.

Figura 8: Espectrograma da nota Si3, com dois tipos de emissão diferentes.

22 Existem alguns flautistas de jazz (conhecidos por serem exclusivamente flautistas) que trazem uma

sonoridade diferente, que é jazzística, mas também muito vinculada a técnica da flauta a música clássica. Podemos citar Hubert Laws e Dave Valentin como exemplos de flautistas que não se enquadram neste padrão de sonoridade.

Como pode-se perceber através do espectrograma, na primeira nota o segundo harmônico soa muito mais alto que na segunda, sendo comparável em volume à nota do primeiro (nota fundamental). Já a segunda nota, emitida com a embocadura mais relaxada, apresenta a nota fundamental muito mais forte do que todos os seus harmônicos, sendo que apenas os dois primeiros são captados na imagem. Com isso, podemos afirmar que as notas emitidas por Copinha e Herbie Mann possuem este timbre mais escuro, pois os harmônicos agudos soam muito baixos, enquanto que o som da nota fundamental é predominante.

Vibrato

O vibrato é outro aspecto importante da sonoridade, do estilo e da técnica de cada flautista. Pode ser descrito como uma oscilação na afinação e na intensidade da nota emitida. Existem algumas teorias em relação a forma de produção do vibrato na flauta transversal: enquanto alguns flautistas e professores dizem que deve ser feito com a garganta, outros defendem o uso do diafragma na execução desta técnica. Segundo o flautista Michel Debost, estudos mostram que o diafragma não possui nenhum papel na produção do vibrato, sendo assim, ele deve ser produzido na área da garganta (DEBOST, 2002)

Embora tenha nascido como um ornamento e usado apenas ocasionalmente em notas especificas, hoje em dia é usado por muitos flautistas (especialmente na música clássica) como parte integrante do som (RONAI, 2008). Como exemplo disto, a seguir apresentamos a imagem de um espectrograma de uma melodia tocada por James Galway, onde podemos constatar o uso do vibrato em todas as notas de maneira uniforme23:

23 Este espectrograma ilustra em gráfico o que seria uma frase musical tocada com o vibrato de maneira

intensa e regular. Um mesmo flautista pode realizar diferentes tipos de vibrato a depender do contexto, esta é apenas uma “fotografia” de um momento, assim como todos os espectrogramas que serão utilizados a seguir.

Figura 9: Espectrograma de notas emitidas por James Galway24.

Em relação aos flautistas aqui analisados, não nos cabe falar sobre a técnica utilizada por cada um ao executar o vibrato, pois através somente das gravações não seria possível evidenciá-la. O que nos interessa neste momento é destacar quais são os resultados sonoros gerados e quais as musicalidades envolvidas nele.

De forma geral, na música popular podemos perceber que o vibrato aparece como ornamento em notas específicas (normalmente as mais longas), ou seja, não é uma característica intrínseca à sonoridade de cada músico. A escolha de usá-lo ou não está associada sim ao estilo pessoal de cada intérprete, mas também fortemente relacionada à interpretação de determinada música ou estilo.

Através da análise auditiva, podemos perceber que tanto Herbie Mann quanto Copinha, fazem uso restrito desta técnica, cada um a seu modo. Com o auxílio do espectrograma melódico gerado pelo software Sonic Visualiser de uma nota emitida por Mann, podemos confirmar este fato, já que a imagem nos mostra notas com pouquíssimas variações de frequência (representada pelo eixo vertical) e quase nenhuma mudança em relação ao volume (representado pela graduação de cor):

24 Flautista irlandês, nascido em 1938. Seguindo os passos de Jean Pierre Rampal, tornou-se um dos

Figura 10: Espectrograma de notas emitidas por Herbie Mann

Figura 11: Espectrograma de notas emitidas por Copinha

No espectrograma gerado a partir de um trecho da gravação de Copinha, podemos perceber que, embora muito mais suave que o de James Galway, o som emitido pelo flautista brasileiro possui um vibrato significativo, apresentando variação de frequência, volume e constância nestas oscilações. Para contextualizar é importante dizer que este trecho foi tirado da gravação de “Lamentos”, versão esta que apresenta uma sonoridade distinta da original, ainda que a composição faça parte do repertório de choro.

Articulação

Sobre a articulação, Harnoncourt (1984, p. 49) diz que “é o nome dado ao processo técnico de falar, a maneira de proferir as diversas vogais e consoantes. Meyer (apud Harnoncourt, 1984) afirma que articular é:

“dividir, expor algo ponto por ponto; fazer com que as partes separadas de um todo apareçam claramente, sobretudo os sons e as sílabas das palavras. Na música, compreende-se por articulação o ligar e destacar das notas, o legato e o staccato, bem como a sua mistura, para a qual muitos empregam abusivamente o termo frasear”.

Usando os conceitos expostos acima como referência, consideramos que a articulação na música diz respeito a um processo técnico – que irá ser diferente para cada instrumento musical – e a uma linguagem, ou seja, é parte das características estilísticas de um gênero ou de um artista. Os critérios pelos quais são escolhidas e combinadas as articulações em cada frase executada se relacionam com o estilo, mas também com a personalidade e a técnica de cada intérprete.

Em relação a técnica de articulação na flauta transversal, novamente faremos um paralelo entre a fala e a música. Na flauta, segundo Debost (2002), podemos utilizar as consoantes: t para o ataque de língua simples; k para o duplo ataque de língua; d para o legato; g para o duplo ataque de língua suave; d para o duplo ataque de língua composto. Segundo Debost, até mesmo a consoante p pode ser útil para articulação suave sem o uso da língua, o importante é o resultado sonoro, e não a fidelidade a uma técnica.

Quanto tratamos de música popular, estas articulações podem ser um pouco diferentes, pois como já dito a articulação é mais que uma técnica instrumental, é recurso de linguagem, a técnica usada é decorrência de uma busca estética e não o contrário. Seguimos então com os tipos de articulação encontrados nos fonogramas analisados.

Em ambas as gravações encontramos predominantemente ataque de língua simples e legato feitos – aparentemente – com as consoantes t e d, respectivamente. Copinha em quase toda a execução utiliza uma articulação bem suave que em alguns momentos fica quase “invisível”, dando a sensação de notas ligadas, ou seja, sem articulação.

Quando Herbie Mann toca o tema de “Deve ser amor”, escuta-se uma articulação suave, porém no improviso ele utiliza uma articulação mais clara, um ataque de língua que aparentemente é produzido pela consoante t. Em algumas frases, para dar uma intenção mais rítmica, a articulação se sobrepõe à emissão sonora da nota, fazendo com que haja uma “falha”, ou seja, o ruído da articulação se sobressai a emissão da nota.

Ambos mesclam em uma mesma frase notas articuladas e ligadas dando a ela um sentido rítmico. Isso acontece, pois a nota articulada naturalmente se destaca em relação

à nota ligada, porém essas modulações rítmicas são bastante sutis, já que o acento não é reforçado pela coluna de ar.

Expandimos um pouco o conceito de articulação e incluímos dois recursos muito utilizado entre jazzistas que são a nota fantasma (ghost note) e o bend. Ambos procedimentos podem ser reproduzidos em diversos instrumentos e estilos da música popular, porém estão normalmente associados ao saxofone e ao jazz.

A nota fantasma se caracteriza por ser uma nota fraca, algumas vezes quase inaudível, que possui um caráter mais percussivo do que melódico (GOMES, 2013). Encontramos nas gravações dos dois flautistas nos seguintes trechos:

Figura 13: Exemplo de nota fantasma em Chega de Saudade – espectrograma e partitura.

O bend tem como resultado sonoro a variação da afinação da nota e nas gravações analisadas só encontramos na interpretação de Herbie Mann. No saxofone é produzido a partir da variação na pressão dos lábios ao tocar a nota (SAGAWA, 2014), já na flauta é pela alteração no ângulo da coluna de ar que pode ser feito com movimentos do queixo, da cabeça ou da própria flauta. Pode-se dizer que o bend executado na flauta é um pouco mais limitado que no saxofone, já que a variação de afinação que se consegue é muito menor, não sendo um recurso idiomático do instrumento. Herbie Mann utiliza em muitas passagens em conjunto com a apojatura, como vemos neste espectrograma as três notas assinaladas (as apojaturas estão circuladas em vermelho):

Figura 14: Exemplo de bend com apojatura em “Deve ser amor”

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