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CAPÍTULO II – O ESTILO DE COPINHA

1. Contextualização histórica: entre a modernidade e a tradição

A motivação desta pesquisa foi entender quais elementos estilísticos fizeram com que Copinha se tornasse um dos flautistas mais requisitados e reconhecidos nas décadas de 1960 e 1970. Além do número de gravações das quais participou neste período, chama a atenção sua versatilidade – acompanhou artistas de diversos estilos - e a estima que teve entre músicos e público de sua geração.

Para isso, buscamos contemplar nas análises diversos aspectos que juntos delineiam o estilo pessoal do instrumentista. Para além das transcrições, que nos forneceram dados importantes ao estudo, a escuta minuciosa com o objetivo de identificar os elementos interpretativos específicos da técnica do instrumento também foi fundamental.

Um aspecto muito importante para entender a personalidade de Copinha como flautista é seu timbre. Não apenas aspectos físicos da emissão do som no instrumento, mas determinadas escolhas estéticas que fazem com que sua sonoridade seja facilmente reconhecida quando ouvida. Algumas dessas escolhas que notamos são o uso da região grave do instrumento, a articulação branda, vibrato pouco amplo e mais lento, entre outras características que lhe eram particulares.

“Modernidade”

Procurando entender quais as influências dessa sonoridade buscamos alguns pontos de partida que nos indicassem quais seriam suas possíveis referências. O primeiro ponto levantado é referente à bossa nova e uma das razões para tal menção é o fato de Copinha revelar que a retomada do instrumento - por ele e pela música brasileira - se dá a partir do surgimento deste movimento. Em entrevista, ele conta que foi no disco Chega de Saudade (João Gilberto, 1958), a pedido de Tom Jobim, que volta a tocar o instrumento profissionalmente:

“Tom Jobim um boa praça, um boa praça. Ele tocava no Beco lá no Rio, Beco das Garrafas. Depois frequentava muito o Copacabana. Eu trabalhava lá, o

João Gilberto trabalhava lá comigo, também. Uma noite ele chegou: ‘Copinha, vamos fazer um disco com João Gilberto? Vamos fazer uma orquestra diferente? ’ (...). Disse: ‘Vou por uma flauta’. Eu digo: ‘Não, flauta não’. Flauta estava por fora mesmo. E ele: ‘Mas eu gostaria de uma flauta. Quem poderia ser? ’ Digo: ‘Um Altamiro, o Poyares’. E ele me disse: ‘Mas eu queria uma maneira diferente’. Naquela conversa, resolvi buscar a flauta em casa, morava perto de Copacabana, trouxe a flauta, e ele disse: ‘Mas é isso mesmo que eu quero’. Aí ficou. E de lá pra cá a flauta voltou. Desde 57 até agora, ainda tem menino que estuda flauta. Voltou mesmo a flauta por causa da bossa nova”. (COPIA, 2000, pg. 67)

Os outros motivos também são conectados a Tom Jobim, pois na obra deste compositor, eixo fundamental da bossa nova, o uso da flauta é muito marcante por ser recorrente e ter protagonismo nos arranjos. Além disso, Tom também tocava flauta e em sua biografia é mencionado o fato de Copinha ser seu flautista preferido, o que nos faz supor que pudesse existir uma estreita afinidade estética entre o instrumentista e o compositor.

Dessa forma, buscamos através da escuta da discografia de Jobim encontrar pistas sobre suas possíveis referências para a busca desta sonoridade no que diz respeito à flauta. De fato, foi confirmada a presença constante do instrumento (flauta transversal soprano, principalmente, mas também flautim, flauta contralto e flauta baixo) tanto em arranjos, como em solos e improvisos. No caso de improvisos, nos primeiros discos, a linguagem é jazzistica, já que é tocado por músicos norte-americanos. Seja por uma escolha deliberada ou por serem os únicos músicos disponíveis – já que os discos foram gravados nos EUA -, o fato é que esta sonoridade de flauta ficou associada à estética da bossa nova.

Um dado que chama muito a atenção é que, especialmente nos primeiros discos13, a maioria dos músicos que tocam flauta têm como primeiro instrumento o saxofone (no jazz há uma predominância de saxofonistas, sendo que a flauta muitas vezes aparece como segundo instrumento destes músicos). Em geral, por ser a flauta um instrumento de embocadura livre, quando o flautista é também proficiente em outros instrumentos de sopro, a técnica da flauta, no que diz respeito à sonoridade, é alterada. O som é mais

13 Nos discos The Composer of Desafinado, plays (1964), Wave (1967), Stone Flower (1970), Tide (1970)

os flautistas são Leo Wright, Raymond Beckenstein, Romeo Penque, Jerome Richardson, Joe Farrel e Hubert Laws. Todos, com exceção do último citado, são também saxofonistas.

escuro/opaco, com menos harmônicos, a articulação com a língua pode ser menos precisa, entre outras características que foram notadas nestas gravações14. Dessa forma, há uma adequação da flauta em determinado gênero (no jazz ou bossa nova) por consequência de uma escolha estética, mas talvez também por uma questão técnica que pode gerar tal sonoridade.

Porém, além da presença da flauta com uma linguagem jazzística, em alguns discos - A Certain Mr. Jobim (Warner - 1965), Matita Perê (Philips - 1973), Urubu (Warner - 1976) - a sonoridade da flauta tradicional, ou seja, técnica clássica, também se apresenta em momentos orquestrais. Apesar de o timbre ser muito diferente desse que estamos chamando de “flauta-jazz”, o uso é parecido, já que se utiliza muito da região grave do instrumento, notas longas e articulação mais branda. No entanto, o som mais “cristalino”, com maior presença de harmônicos, confere características bem diferentes ao timbre. Dessa forma, talvez seja pertinente associar o uso da flauta na bossa nova - usando como referência a obra de Tom Jobim - não só à sonoridade do jazz, mas também ao da música erudita. Segundo alguns autores, a influência da música de compositores impressionistas na obra de Tom Jobim é notável15, como detecta por exemplo José Miguel Wisnik ao afirmar que “a bossa nova (...) revoluciona a música popular brasileira ao incorporar harmonias complexas de inspiração debussysta ou jazzista” (WISNIK, 2007, pág. 70). Apesar de não havermos encontrado nenhuma referência na literatura sobre a bossa nova que indique a influencia no que diz respeito à orquestração da música impressionista, podemos supor que exista uma relação. Em artigo sobre a influência da estética impressionista na obra de Jobim, Duarte (2010) aponta algumas citações de trechos de músicas de Debussy e Ravel usadas em composições de TJ, esta em especial nos chama a atenção:

“Outra melodia de Jobim que revela semelhança com uma obra impressionista está presente no interlúdio instrumental da canção ‘Matita Perê’, do álbum homônimo. Ela revela explícita semelhança com um trecho da ‘Pantomime’ do balé Daphnes et Chloe de Ravel. Além de o primeiro trecho das melodias coincidirem, o instrumento utilizado para executá-las é o mesmo: a flauta transversal”. (DUARTE, pg. 972, 2010)

14 Esta discussão será retomada e aprofundada no subcapítulo 2.2 15 POLETTO (2010), ROSADO (2007), SUZIGAN (2011).

Um outro “gênero” que surge irmanado à bossa nova e que também merece destaque nesta pesquisa, é o sambajazz16. Segundo Bastos e Piedade (2007), enquanto a BN se tornava conhecida internacionalmente, toda uma geração de instrumentistas influenciados pelo jazz se envolvia com o gênero no Brasil. Estes músicos formaram grupos que tinham em seu repertório de bossa nova e jazz instrumental. Segundo Saraiva (2007), a categoria sambajazz, embora maleável e abrangente, caracteriza-se pela mistura das musicalidades do jazz - sua harmonia e improvisação – e do samba – seu ritmo. Porém, à diferença da bossa nova que recebeu influência principalmente do cool jazz, a influência do sambajazz se deu maiormente via be bop.

Ainda que Copinha não tenha sido um músico com destaque nas gravações que hoje classificamos como pertencentes ao gênero, é importante ressaltar que, na relação de músicos e discos feita pela pesquisadora Joana Saraiva (2007) que se enquadram nesta categorização, ele aparece como único flautista. Ao lado de Copinha estão outros flautistas-saxofonistas, como Jorginho e J. T Meirelles. Os discos mais destacados em que gravou foram “Os gatos” (Polygram - 1964) e “Aquele som dos gatos” (Polygram - 1966) com o conjunto Os gatos – formado na década de 1960 por Durval Ferreira (violão), Neco (violão), Eumir Deodato (teclados), Paulo Moura (sax alto), Copinha (flauta), J. T. Meirelles (flauta), Edson Maciel (trombone), Norato (trombone), Mauricio Einhorn (gaita), Maurilio Santos (trompete) e Wilson das Neves (bateria) (o contrabaixista não é mencionado no encarte) – e o disco Coisas (1965), do maestro Moacir Santos.

O sambajazz e a bossa nova, embora de maneiras distintas, continham em si o embate entre as representações de tradição e modernidade, personificado entre o samba e o jazz. Daí a grande importância deste aspecto na biografia de Copinha, pois nos confirma que de fato ele ocupava uma posição única como flautista nesta época. Algo na sonoridade de sua flauta trazia a “modernidade” requisitada nestes estilos, ao mesmo tempo em que também estava associada à tradição das “raízes” da música popular brasileira. Ou seja, no epicentro do debate fervoroso entre musica estrangeira e música nacional, Copinha pareceu circular com bastante destreza e naturalidade.

16 A origem do sambajazz e sua relação com a bossa nova cria divergências entre autores. Para

“Tradição”

Além da flauta-jazz, o choro também é um ponto de partida para as investigações musicais desta pesquisa. A partir do início de meados dos anos 1960, quando começa a tocar no conjunto do sambista Paulinho da Viola, Copinha passa a ser reconhecido como flautista e como “chorão”, embora em sua vida profissional sua história no choro tenha começado apenas em 196117. Sua fama como músico “chorão” foi impulsionada pelo fato de ter havido na década de 1970 um revalorização do gênero e um de seus principais defensores ser Paulinho, quem guardava por Copinha enorme admiração. A “flauta brasileira”, presente desde os primórdios da música instrumental – representada por Joaquim Callado, Pixinguinha, Benedito Lacerda, Patáppio Silva, Dante Santoro, entre outros – também tinha sua representação em Copinha. Embora possuísse uma maneira “diferente” de tocar, possuía a legitimação dada pelos “chorões” da época.

Nos anos 1940, época de ouro do choro, Copinha esteve mais ligado às orquestras que acompanhavam crooners nos programas de rádios, boates e cassinos e aos conjuntos que tinham influência do jazz. Porém, o choro de alguma forma sempre esteve presente em sua vida, segundo conta, era o que tocava nas serestas que fazia com os irmãos ou o que os músicos tocavam quando se reuniam em encontros informais. Além disso, revelava profunda admiração por Pixinguinha, considerando-o o maior músico que conheceu, e por Benedito Lacerda, seu grande amigo, sendo que o primeiro disco que gravou como solista foi só com composições de Pixinguinha. Estes fatos revelam a familiaridade que tinha com o estilo, embora profissionalmente só vá assumir essa faceta nos anos 1960, no momento em que se dá a oportunidade.

É importante destacar esta “maneira diferente de tocar”, embora fosse considerado um “verdadeiro chorão”, por músicos, público e imprensa da época. O clarinetista Paulo Moura em entrevista a um jornal diz: “Ele mudou a orientação do estilo na flauta, na forma como tocou na bossa nova. Transformou para o lado universal sem ser jazzista, mas num caminho diferente do regional de um Benedito Lacerda, por exemplo”. Nesta mesma matéria, o saxofonista e flautista Mauro Senise comenta: “Ele tem um som

17 Em 1961 lançou seu primeiro disco como solista, apenas com composições e arranjos de Pixinguinha

próprio, não imita ninguém. Acho que ele criou uma escola mais ‘relax’, diferente da do Altamiro Carrilho, que é mais virtuose”. Também encontramos uma citação de Sergio Bittencourt – compositor, filho de Jacob do Bandolim -, quando Copinha lança seu disco só de Pixinguinha: “Na música popular, há duas escolas em matéria de flauta: a de Copinha e a de Altamiro”18. Nas análises a seguir, trataremos de apontar quais eram essas diferenças que particularizavam Copinha.

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