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CAPÍTULO II – O ESTILO DE COPINHA

2. Análises

2.1 Copinha e Herbie Mann: Diálogos com o jazz

2.1.4 Improvisação

Como vimos anteriormente, a improvisação é uma prática que aparece em diversos contextos e épocas tanto na música erudita, quanto na música popular. Embora Herbie Mann e Copinha tenham algumas aproximações, como o fato de ambos estarem inseridos no contexto da música popular brasileira e norte-americana, se torna um desafio realizar a comparação entre ambos, já que possuem trajetórias muito distintas e musicalmente não “falam” o mesmo idioma musical. Por essas diferenças, torna-se difícil determinar quais são os elementos musicais idiomáticos de cada gênero e quais são os frutos de escolhas pessoais de cada intérprete.

Para nos auxiliar na comparação dos improvisos dos dois flautistas, iremos utilizar a obra do arranjador e pesquisador George Russel (2001), que observa dois caminhos básicos dentro da improvisação idiomática: abordagem vertical e abordagem horizontal. A característica fundamental de uma construção vertical está baseada em arpejos e tem como principal preocupação a definição das sequências harmônicas; na horizontalidade, a construção da melodia não define claramente cada acorde e sim utiliza-se de escalas relacionadas ao centro tonal, ou seja, a mais de um acorde. Vale frisar que as abordagens podem coexistir em um mesmo improviso e as vezes é tênue a distinção entre uma e outra,

sendo ambígua a definição. O objetivo neste tipo de análise é verificar se há alguma predominância entre elas nos improvisos em questão.

Estes conceitos foram utilizados por Paula Valente em sua pesquisa onde analisa improvisos de Pixinguinha e K-Ximbinho e que de alguma forma se assemelha a presente análise. Valente encontra nos improvisos de Pixinguinha “importante influência das raízes do choro, das bandas militares, dos grupos regionais”, enquanto que em K- Ximbinho, “além da linguagem do choro, uma forte influência do jazz-norte americano” (VALENTE, 2011). Uma das características nos improvisos que define isso é, em Pixinguinha, a abordagem vertical, em K-Ximbinho, a abordagem horizontal, como conclui Valente:

“observamos em Pixinguinha a grande utilização desse procedimento vertical se comparado a K-Ximbinho, que normalmente não prioriza a definição de cada acorde. Este tem uma preocupação com um fraseado mais amplo, executa trabalho sobre motivos melódicos e rítmicos alterados de diversos modos, além de utilizar o tema diversas vezes com material de composição. Por isso, notamos uma preferência pela abordagem horizontal nos improvisos de K- Ximbinho. ” (pg 112)

Através destas afirmações, podemos relacionar a construção horizontal a um procedimento mais afim ao improviso dentro do jazz, enquanto que a construção melódica baseada em arpejos dos acordes associada ao improviso no choro. Apesar de não podermos afirmar isto como uma regra, já que análise contemplou apenas dois instrumentistas, vamos verificar como se dão estes aspectos no confronto entre um flautista “jazzista” e um “chorão”.

No exemplo a seguir, analisamos os primeiros 16 compassos do improviso de Herbie Mann na música “Deve ser amor” sob a perspectiva que propõe Russel:

Figura 15: Improviso de Herbie Mann em “Deve ser amor”

Assinalamos com o traço pontilhado as melodias construídas a partir de uma abordagem vertical e com o traço contínuo as que apresentam uma abordagem horizontal. Podemos perceber que, embora apareçam as duas formas, o que predomina são frases nas quais identificamos mais a escala do que o acorde em si. A primeira frase começa com um arpejo de Am7 (notas lá, dó, mi e sol) sobre o acorde de Am7 (II grau), o que caracteriza a A. V., porém, apesar da mudança de acorde para o V grau, Mann continua utilizando o mesmo arpejo. Este procedimento de usar uma escala relacionada ao centro tonal em questão e não aos acordes individualmente é repetido nos compassos 6-7-8, 10- 11-12, 14-15-16, ou seja, em todos os momentos onde aparece a progressão II-V-I de Sol Maior, a tonalidade da música.

Outro aspecto que revela um pensamento horizontal é a existência de motivos melódicos que se repetem, como no exemplo assinalado em vermelho (compassos 9 e 10). Um motivo melódico é apresentado e repetido literalmente em seguida, apesar da mudança harmônica (no compasso 9 está sobre G7M e E7b9, no compasso 10 sobre Am7).

Figura 16: Improviso de Copinha em “Chega de saudade”

Copinha inicia este trecho com o tema original da canção “Chega de Saudade”. Apenas no compasso 9 inicia de fato o improviso de Copinha e a partir de então nota-se uma tendência maior à verticalidade. Em praticamente todo o improviso utiliza notas além das contidas nos arpejos dos acordes, porém quase sempre elas gravitam em torno das notas estruturais dos arpejos dos acordes correspondentes. Como resultado sonoro, temos uma melodia que define claramente a identidade harmônica da progressão dos acordes. As notas auxiliares são o que neste trabalho chamamos de inflexões melódicas, conceito

que Almada (2006) aplica para análise da construção das melodias no choro. São usadas tanto em composições do gênero, quanto em improvisos.

Em dois momentos Copinha se distancia desta abordagem e apresenta melodias que não estão relacionadas com as notas estruturais dos acordes, como no compasso 13, onde executa um cromatismo descendente entre Mi bemol e Si bemol (quando o acorde é Bb), e nos compassos 22-23-24, onde antecipa o arpejo de D7, quando a harmonia ainda está em Am7(b5).

O chorus de improviso é finalizado com uma variação da melodia muito próxima à original, utilizando novamente a abordagem vertical, já que os últimos dois acordes são arpejados quase que literalmente na melodia (Bdim e A7).

No improviso de “Lamentos” encontramos algumas diferenças neste aspecto da abordagem melódica:

Nos quatro primeiros compassos de improviso Copinha utiliza-se de apenas uma escala para contemplar dois acordes distintos, D6 (notas ré, fá#, lá e si) e Ddim.(ré, fá, láb e si). Inclusive reitera um mesmo motivo melódico tocado sobre o acorde de D6 (compasso 3) no Ddim (compasso 4). No compasso 6 executa uma melodia que a princípio arpeja o acorde, mas que é desenvolvida a partir da escala de ré maior.

Nestes 14 compassos, nota-se que a abordagem horizontal predomina sobre a vertical, porém podemos perceber que Copinha não abandona completamente a estrutura melódica baseada em arpejos, como no compasso 10 onde antecipa o arpejo de Fá# maior, quando ainda soa o acorde de Em.

O único trecho em que aparece a abordagem vertical é no compasso 9, onde salienta notas fundamentais do arpejo de B7 (si, ré# e fa#), acrescentado a elas algumas inflexões melódicas. Assim como em “Chega de Saudade”, a variação melódica do tema, indica a finalização do improviso.

Em nenhum dos improvisos foi encontrado o uso recorrente de extensões dos acordes. Copinha utiliza muitos ornamentos como bordaduras (B), grupetos (GR), cromatismos (CR) que expandem a sonoridade dos acordes, porém sempre se apoiando em notas estruturais destes. Ver figura 18, exemplo de trecho de Chega de Saudade:

Figura 18 – Bordaduras e cromatismo em Copinha/ Chega de Saudade

No improviso de “Deve ser amor”, Herbie Mann utiliza em poucos momentos tensões do acorde. Alguns dos poucos exemplos que encontramos e que ocorre mais de uma vez é o uso da sétima menor em acorde maior, assinaladas nos compassos 13 e 29 (fig. 5), e a décima terceira bemol em acorde dominante, assinaladas nos compassos 9 e 25 (fig.6):

Figura 19 – b7 em acorde Xmaj7 – Herbie Man/Deve ser amor

Figura 20 – b7 em acorde Xmaj7 – Herbie Man/Deve ser amor

Rítmica

A rítmica é também um ponto importante na diferenciação entre os dois flautistas. Herbie Mann apresenta um improviso mais virtuosístico, com uma rítmica constante, mantendo uma sequência de colcheias e tercinas de colcheia (típicos do be bop) em praticamente todo o improviso. Também neste sentido rítmico não dialoga com a melodia da música, já que esta é construída a partir de notas longas que atravessam os compassos. Isto faz com que haja uma separação brusca entre tema e improviso, diferenciando com ênfase estes dois momentos da execução. Abaixo, a comparação entre as melodias de tema e improviso:

Copinha apresenta rítmicas um pouco mais variadas do que Mann. Isso acontece, segundo pudemos observar, pelo fato de haver um maior diálogo com o tema da música. Nota-se que quando Copinha se aproxima da melodia original a rítmica da melodia é mais variada, quando apresenta material melódico novo, distanciando-se do tema, usa uma rítmica mais constantes com semicolcheias (procedimento parecido ao de Herbie Mann em todos os chorus de improviso). Diferente de Mann, Copinha não separa tão categoricamente os momentos de tema e improviso, intercalando frases da melodia original, variações da mesma e improvisos. No exemplo a seguir buscamos destacar estes eventos, em amarelo estão as variações do tema, em lilás, os improvisos25:

Figura 22 - Comparação entre tema e improviso – Copinha em “Chega de Saudade”

25 Neste exemplo não colocamos o chorus completo por questão de espaço, a transcrição completa está em

Em relação a este assunto, podemos dizer que há uma ligação forte com os estilos aos quais cada intérprete possui maior afinidade. Isso é observado, por exemplo, quando Copinha usa tercinas de colcheias (fórmula de compasso 4/4), as quais são muito utilizadas nas variações rítmicas/melódicas dentro do choro e dão um caráter mais “dolente”/”choroso” à interpretação. Neste caso, as tercinas anunciam o fim do improviso e a volta ao tema, justamente por evocarem a musicalidade dos choros antigos - é como se a volta ao tema fosse também a volta a uma forma de tocar mais “chorona”. O glissando no compasso 89 também corrobora esta estética:

Figura 23 – Tercinas e glissando na volta ao tema. Copinha/ Chega de Saudade

Mann em nenhum momento executa tercinas de semínimas (fórmula de compasso 2/2), e sim tercinas de colcheia. Esta mudança rítmica ao invés de dar a sensação de atraso no tempo – como as tercinas no choro - traz mais velocidade às melodias, dando mais virtuosismo a execução. São característica da linguagem jazzística e muito comum nos improvisos, como podemos encontrar em Charlie Parker, por exemplo. Aqui destacamos parte do improviso do saxofonista em “Moose the mooche”, contido no livro Omnibook (GOLDSEN, 1978):

Figura 24 – Exemplo de tercinas no jazz em “Moose the Mooche” (Charlie Parker)

Figura 25 – Exemplo de tercinas em “Deve ser amor” (Herbie Mann)

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