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“Há quem tome o cinema como lugar de revelação, de acesso a uma verdade por outros meios inatingível. Há quem assuma tal poder revelatório como uma simulação de acesso à verdade, engano que não resulta de acidente mas de estratégia. É preciso discutir essa questão ao especificar determinadas condições de leitura de imagens; [...]” (XAVIER)

A questão intertextual ocupa um espaço importante na crítica literária, como, também, se estende à cinematográfica. Em 1966, o termo migrou, a partir dos estudos literários de Júlia Kristeva, para caracterizar a produtividade textual decorrente do conceito de dialogismo tecido por Mikhail Bakhtin. Conforme Kristeva, “[...] todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto. Em lugar da noção de intersubjetividade, instala-se a intertextualidade e a linguagem poética lê-se de mão dupla” (KRISTEVA, 1974 p.64). De forma geral, a intertextualidade é um processo de incorporação de um texto que remete a outro texto, criando uma teia infinita que possibilita a continuidade e o prolongamento de rupturas e transformações profundas de um mundo ficcional a outro; como exemplo, Otelo, de William Shakespeare, que tem como fonte literária a novela Moura

de Veneza, de Giraldo Cinthi (1584), que gira em torno da traição e da inveja. Ou a adaptação de Uma janela indiscreta (1954), produção cinemática dirigida por Alfred Hitchcock, a partir do conto de Corner Woolrich (1942); ou Assédio, filme dirigido por Bernardo Bertolucci, baseado no conto de James Lasdun.

No texto intitulado “Intertextualidade”, que faz parte do livro O próprio e o alheio:

Ensaios de literatura comparada, Carvalhal (2003) assinala que “[...] configura-se como uma biblioteca interminável que, ao ser percorrida por um eterno viajante em qualquer direção,

comprovaria, no final dos séculos, que os mesmos volumes se repetem em igual desordem (CARVALHAL, 2003, p.71). Em outras palavras, o leitor se defronta com outros discursos que se cruzam no tempo e no espaço e se elaboram em vista de outros, vindo o discurso a não ser totalmente autônomo. Assim, a noção de intertextualidade revê o estatuto do leitor diante da produção artística e exige dele uma articulação maior para recuperar e compreender o sentido do texto. Para exemplificar essa relação, vejamos a tela As meninas, de Velázques, que entre outras qualidades, oferece uma reflexão sobre o papel do pintor e do fazer artístico. Na leitura de Michel Foucault, no livro A palavra e as coisas, o personagem (pintor) que faz parte da tela olha, ligeiramente, num ponto que extrapola a cena do quadro; ou seja, o espectador faz parte do espetáculo, pois se depara com o olhar contemplativo do pintor.

Tal tela tem sido reelaborada ao longo dos últimos trezentos e cinquenta e cinco anos por grandes artistas, como Manet, Goya e Picasso. Além dos artistas plásticos, a releitura ultrapassa os limites dos pincéis e chega às letras (literatura) de João Cabral de Melo Neto, que escreve o poema intitulado “A lição de pintura”: “Quadro nenhum está acabado,/ Disse certo pintor;/ Se pode sem fim continuá-lo,/ Primeiro, ao além de outro quadro/ Que, feito a partir de tal forma,/ Tem na tela, oculta, uma porta/ Que dá a um corredor/ Que leva a outra e a muitas outras”. O poeta dialoga com a obra plástica. Dessa maneira, no decorrer da história da arte, as noções de fonte e autoridade foram aniquiladas, ou, ao menos, sofreram sérias alterações. Essas mudanças tomam os conceitos de literatura, cânone literário e de arte. Então, compreender a relação entre os textos é um processo denso, pois eles oferecem, dialeticamente, estruturas textuais e extratextuais. Portanto, exigem investigação e se manifestam como local de conflito.

Para o leitor, a relação entre os textos é fascinante, principalmente pelo fato de haver um fio que se prolonga por séculos, que se fez por fios anteriores e não se finda. O escritor contemporâneo revitaliza o próprio texto, ao dialogar com textos de outros escritores. Nesse caso, a forma é uma instalação que anuncia coerência, justifica, privilegia a palavra como veículo de mediação, reagrupando o temporal com o atemporal. Assim, a leitura conjunta dos textos revela, além das relações diretas da intertextualidade, a convergência das preocupações quanto à criação literária e a importância da presença do leitor na constituição do texto ficcional. A intertextualidade é uma manifestação formal que reduz a distância entre o passado e o presente do leitor com o intuito de reescrever o passado dentro de um contexto novo.

O sucesso da interação só acontece quando há o preenchimento das lacunas e as representações são modificadas, instituindo-se a cooperação, de fato, do leitor, obrigando-o a

reavaliar, questionar e explorar sua imaginação. Além disso, Iser diz que, de alguma forma, a atividade do leitor é controlada pelo texto, isto é, a partir de um jogo de relações internas é que ocorre a reconstrução do contexto, necessária à compreensão da obra, fundamentando-se na estrutura do texto. Stam (2008) assinala que, a partir dos estudos bakthtinianos, “[...] abriu- se caminho para uma abordagem à arte ‘discursiva’ e não-originária” (STAM, 2008, p. 21, grifo do autor).

Bakthin propõe uma reavaliação do conceito de originalidade e assinala a ideia de uma

construção híbrida, uma vez que o enunciado, “[...] segundo índices gramaticais (sintáticos) e composicionais, pertence a um único falante, mas onde na realidade, estão confundidos dois enunciados, dois modos de falar, dois estilos, duas ‘linguagens’, duas perspectivas semânticas e axiológicas” (BAKTHIN, 2002, 110, grifo do autor). A literatura experimenta essa relação híbrida, pois não apresenta um discurso puro e original; o mesmo se dá com o cinema, sobretudo em relação à adaptação de obras literárias, pois resulta, então, de um processo dialógico marcado pela intertextualidade. Apropriando-se dos estudos de Genette, em

Palimpsestes (1982), Stam observa que o estudioso parte do “dialogismo” de Bakhtin e da “intertextualidade” de Kristeva e propõe uma tipologia das relações intertextuais, propondo o termo “transtextualidade”.

Este termo é abrangente e apresenta diversas categorias ou tipos de transtextualidade. Dentre elas, a hipertextualidade, que “[...] parece ser particularmente produtiva no que tange à adaptação. O termo se refere à relação entre um determinado texto, que Genette denomina hipertexto, e um outro anterior, o ‘hipotexto’ ” (STAM, 2008, p. 21-2, grifo do autor). Assim, o hipertexto, ou o texto adaptado, apresenta transformações, alterações e modificações. As adaptações fílmicas “[...] são hipertextos nascidos de hipotextos preexistentes, transformados por operações de seeção, ampliação, concretização e realização” (STAM, 2008, p. 22). Como exemplo, Stam assinala que, na literatura, “[...] os hipotextos da Eneida incluem Odisséia e a

Ilíada, enquanto os hipotextos de Ulisses, de Joyce, incluem a Odisséia e Hamlet” (STAM, 2008, p. 22, grifo do autor). Conforme Genette, a hipertextualidade mantém uma relação de derivação, ou seja, um texto deriva-se de outro e sofre uma transformação.

Isso posto, o filme apresenta uma diversidade de gênero, técnica e uma linguagem específica que também dialoga ou mantém relações com outras produções fílmicas, num processo intersemiótico que corresponde a uma nova produção. Nesse sentido, Stam analisa as adaptações sem a preocupação redutora de que a produção fílmica é fiel ou não ao livro. Disso resulta sua leitura e interpretação crítica sobre as adaptações. Dessa forma, vale assinalarmos que adotamos a mesma postura ao ler o texto fílmico Minha vida de menina,

dirigido por Helena Solberg, importando-nos olhar para a produção fílmica artística como independente do texto adaptado, pois esta pode mostrar, recriar, criticar e atualizá-la.

O cinema brasileiro, por sua vez, produziu diversas adaptações de livros, tais como:

Macunaíma, de Mário de Andrade, dirigido por Joaquim Pedro de Andrade; São Bernardo, de Graciliano Ramos, por Leon Hirszman, Toda nudez será castigada, de Nelson Rodrigues, por Arnaldo Jabor, além de textos de Jorge Amado, adaptados para o cinema por Bruno Barreto e Nelson Pereira, dentre outros. De certa forma, tais produções fílmicas não apresentam uma fidelidade absoluta, pois quem faz uma adaptação faz uma releitura, cria outro texto num outro momento histórico, ou seja, ressignifica a obra conforme a sua recepção crítica. Em 2007, a pesquisadora e historiadora Tânia Nunes Davi publicou o livro intitulado

Subterrâneos do autoritarismo em Memórias do cárcere (de Graciliano Ramos e Nelson Pereira dos Santos) e traz alguns trechos de depoimentos de Nelson Pereira dos Santos sobre a questão da adaptação, visto que o cineasta roteirizou o livro Memórias do cárcere, de Graciliano Ramos. Ele explica:

A adaptação não é uma cadeia, é uma referência que faz chegar a grandes descobertas. Permanecer com estas referências – a essência do livro e sua estrutura narrativa – é um grande estímulo que me leva a encontrar soluções que não desvirtuem nem ocultem o univeso do autor. Transformar o livro em filme significa recriar, em outra forma de expressão, o universo do autor. (SANTOS apud DAVI, 2007, p. 161).

Ainda:

O filme é mais uma adaptação do livro, embora ele conserve na essência um respeito pelo pensamento do autor, em relação às observações que fez de todos aqueles momentos de vida experimentados por ele, por seus companheiros de prisão. O filme reduz, sintetiza o livro, mas mesmo na síntese, na opção de um episódio (que independe do outro), haverá sempre esse respeito, a forma de contar e o conteúdo. (SANTOS apud DAVI, 2007, p. 161-2).

No que se refere ao método, Pereira dos Santos comenta que não há um método específico para a adaptação de uma obra literária para o cinema:

Nem sei como seria isso. Não tem nenhum método para fazer uma adaptação. Mas o princípio de fazer um filme é que se encontre um equivalente, não da linguagem, mas do que a linguagem escrita provocou no leitor, o que vai fazer com que a linguagem do cinema provoque no espectador o mesmo sentimento, o mesmo pensamento, esse é o princípio da adaptação. (SANTOS apud DAVI, 2007, p. 162).

Já no texto Literatura e cinema (2007), de José Domingos de Brito, há um depoimento de Pereira do Santos que fora publicado no texto “Cineastas latino-americanos - entrevistas e

filmes” (São Paulo: Estação da Liberdade, 1997), organizado por Maria do Rosário Caetano. Brito seleciona um fragmento que nos interessa. Ei-lo:

Eu como cineasta que não viveu os episódios de 1935/1936, senti-me livre para, baseado no livro, construir uma metáfora sobre a prisão. Em Memórias do cárcere (filme), só Graciliano, dona Heloísa, Sobral Pinto, Luis Carlos Prestes, Olga Benário – personagens históricos naquele tempo – têm seus próprios nomes. Os outros são fictícios. Ninguém deve ver meu filme como documentário da época. Inclusive, dona Beatriz Bandeira gostou muito do resultado geral e ressaltou seu caráter ficcional. (SANTOS apud BRITO, 2007, p. 128).

Notamos que o diálogo intertexutal permite a recriação e a reelaboração de outra produção artística. Carvalhal preconiza que a “[...] intertextualidade nos permite entender que ler um texto é lançá-lo num espaço interdiscursivo e na relação de vários códigos, que são constituídos pelo ‘diálogo entre textos e leitura’” (CARVALHAL, 2003, p.77, grifo do autor). Assim, uma obra de arte traz outras vozes em seu interior, apropriando-se de outros textos e estabelecendo uma relação dialógica.