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Fiz o castelo de achar um diamante grande e ficar rica, e a coisa foi crescendo tanto pelo caminho que quando cheguei a Boa Vista eu estava milionária. [...] ele também riu e me disse: “Desde que isso te distrai, vá continuando a fazê-los, não faz mal. [...] nunca pense muito em dinheiro, que não dá felicidade a ninguém (MORLEY, 1998, p.184, 15out95).

Para conhecer Helena, é importante observá-la na dinâmica das relações sociais, pois as pessoas se mostram no movimento das ações recíprocas, como num jogo de imagens e espelhos. Há uma revelação de suas identidades, daí a possibilidade de o leitor infiltrar-se em suas idiossincrasias, subjetividade e contradições. Portanto, para que possamos compreender essa menina que viveu no século XIX, é fundamental que Helena seja vista com as demais personagens que participam dos seus relatos. Por isso, reservamos um espaço para perceber as mulheres que desfilam no seu mundo, por ela própria registradas. Não se trata de Ofélia, Dulcineia, Marcela, Carolina, Capitolina, Aurélia ou tantas Helenas que povoaram histórias: trata-se de mulheres que possivelmente viveram em Diamantina, que mantêm o anonimato, mas fizeram história no lugar em que habitaram. Isso posto, passaremos a conhecer essas outras mulheres, pelo viés de Helena.

O diário permite pensar, como já assinalamos em outros momentos, que Helena rompe com paradigmas secularizados, pois apresenta uma dinâmica peculiar e uma índole avessa ao comportamento padrão das mulheres daquele lugar e tempo. Já observamos anteriormente a presença da avó materna e da tia inglesa, ambas com grande influência para a menina; todavia, com a mãe há uma luta constante e Helena se mantém numa atitude irrevogável. Além dessas mulheres, há outras inúmeras que povoam o diário: castas, simples, orgulhosas, abnegadas, devotas, beatas, submissas, ordeiras, bordadeiras, doceiras, tecelãs, sem voz, apáticas, ladras, loucas, andarilhas, humilhadas, mutiladas, ex-escravas. Há uma série de

nomes que desfilam no diário de Helena10.

Já em 1895, Helena comenta sobre diversas mulheres que vivem em Diamantina, algumas já conhecidas do leitor, outras não. Podemos observar que há um número significativo de mulheres que viviam lá, descritas e nomeadas no diário de Helena Morley. Algumas desempenham um papel fundamental na história particular de Helena, outras apenas passam, mas possibilitam compreender o perfil das mulheres na História, visto que descrevem a realidade periférica no final do século XIX. Isso acrescido da história da família, porque vemos o olhar que se volta não só para a constituição familiar de dona Teodora, mas o leitor toma consciência de outros modelos familiares, embora marcado por características padronizadas. “No século XIX, recuperou-se uma imagem mais nítida das mulheres através de diários, fotos, cartas, testamentos, relatórios médicos e policiais, jornais e pinturas” (PRIORE, 2008, p. 8). Isso possibilitou uma visibilidade maior do perfil feminino, permitindo-nos “[...] estudar o cotidiano das mulheres e as práticas femininas nele envolvidas, os documentos nos possibilitam aceder às representações que se fizeram, noutros tempos sobre as mulheres” (PRIORE, 2008, p. 8).

Nesse sentido, a estudiosa assinala a importância de se apropriar da vasta documentação citada, com o intuito de entender a mulher na sua diversidade psicológica, histórica e geográfica, abrangendo diferentes características femininas: “[...] castas, as fiéis, as obedientes, as boas esposas e mães. Mas quem foram aquelas odiadas e perseguidas? As feiticeiras, as lésbicas, as rebeldes, as anarquistas, as prostitutas, as loucas” (PRIORE, 2008, p. 8). Na Belle Époque, por exemplo, período compreendido entre os anos de 1890 a 1920, a situação da mulher correspondia a uma vida regrada e disciplinada, preocupada com a organização do lar, uma vez que a burguesia tentava imitar os modelos parisienses, com a inculcação de valores e hábitos ditos civilizados.

Além disso, instaurava-se o regime capitalista numa sociedade que se desfazia da escravidão dos negros. Conforme Gilberto Freyre, no texto Vida social no Brasil nos meados

do século XIX, publicado em 1964, a mulher tipicamente brasileira, dona de casa, era “[...] antes mulher ativa e ociosa. Diligente e não indolente. O que não significa que houvesse sinhás indolentes, enlanguecidas pelo fato de haver tanto escravo a serviço da gente rica ou nobre” (FREIRE, 2008, p. 85). Já a organização das famílias populares era díspar; às vezes, chefiadas por mulheres que traziam em si uma outra ordem cultural, nem sempre, então, por

10 Fizemos um levantamento dos nomes que desfilam no diário e constatamos que Helena registra

aproximadamente 200 nomes de mulheres. Algumas apresentam grau de parentesco próximo da menina; outras pessoas amigas, conhecidas ou vizinhas.

motivos apenas econômicos. Mesmo assim, a mulher da classe popular era controlada pelo complexo judiciário e por policiais.

Conforme o capítulo “Mulheres pobres e violência no Brasil urbano”, parte do livro

Histórias das mulheres no Brasil, Rachel Soihet ensina que a violência era uma das formas educativas, distante de preocupação intelectual ou de natureza moral. Disso resulta uma outra condição de opressão e cabe “[...] considerar não só a violência estrutural que incidia sobre as mulheres, mas também aquelas formas específicas decorrentes de sua condição de gênero; esses aspectos se cruzam na maioria das situações” (SOIHET, 2008, p. 363)11. Enquanto as mulheres ricas frequentavam os grandes salões, casas de chá ou teatros, as mulheres do povo frequentavam a praça e a rua, a extensão da casa. Todavia, não raro, eram afastadas das praças e dos largos, chafarizes e fontes, para que a burguesia pudesse desfilar para mostrar o estilo afrancesado, com o intuito de atrair olhares de estrangeiros.

Contudo, a rua era também o espaço de sobrevivência e de trabalho para muitas mulheres pobres. Assim, deve-se observar que “[...] para muitos a rua assumia ares de lar onde comiam, dormiam e extraíam o seu sustento” (SOIHET, 2008, p. 366). No tocante à relação entre os gêneros, Soihet afirma: “Apesar da existência de muitas semelhanças entre mulheres de classes sociais diferentes, aquelas das camadas populares possuíam características próprias, padrões específicos, ligados às suas condições concretas de existência” (SOIHET, 2008, p. 367). As mulheres pobres participavam do mundo do trabalho, mas numa situação subalterna e também “[...] não se adaptavam às características dadas como universais ao sexo feminino: submissão, recato, delicadeza, fragilidade” (SOIHET, 2008, p. 367).

As mulheres populares saíam à rua para trabalhar, embora a remuneração fosse pequena, por conta do estereótipo atribuído à sua condição supostamente inferior, mas elas procediam com liberdade, inclusive sexual. Tal liberdade confirma a “[...] idéia de que o controle intenso da sexualidade feminina estava vinculado ao regime de propriedade privada” (SOIHET, 2008, p. 368). Nesse sentido, no século XIX, o casamento estava ligado aos bens patrimoniais e o alto custo das despesas da igreja afastava os pobres de legitimarem a união.

11 Vale lembrar Nísia Floresta Brasileira Augusta, pseudônimo adotado por Dionísia de Faria Rocha, que publica Direitos das mulheres e injustiça dos homens (1832), baseado nas ideias de Wollstonecraft, e discute o preconceito da sociedade patriarcal em relação ao sexo feminino, reivindicando acesso à cultura e à educação, meios com que a mulher poderia assegurar sua participação efetiva na sociedade. Posteriormente, a republicana abolicionista carioca publica Conselhos à minha filha (1842), em que retoma a discussão. Em Porto Alegre, no ano de 1845, Ana Eurídice Eufrosina de Barandas lança o livro Ramalhete de flores

escolhidas no jardim da imaginação, no qual aborda as ideias levantadas por Nísia e afirma a necessidade da participação política e social da mulher.

Dessa forma, a vida familiar legitimada era destinada às mulheres ricas; já as mulheres pobres, brancas, negras ou mestiças não tinham a mesma proteção e viviam à mercê de situações torpes e vis da sociedade, sujeitas a diferentes formas de violência e exploração; isso as distanciava dos valores de castidade. Nesse contexto, obviamente, seus padrões morais diferiam, parcialmente, dos das mulheres abastadas, pela realidade concreta em que se viam. No entanto, o casamento para elas se “[...] afigurava um valor [...] Isso parece denotar a influência da cultura dominante sobre as camadas populares” (SOIHET, 2008, p. 369).

Então, o diário de Helena propicia a visão da mulher diamantinense e, sobretudo, nos leva a pensar na constituição do sujeito feminino da protagonista em pauta. Nesse contexto, percebemos a complexidade de compreender o sujeito, visto pela diversidade das experiências vivenciadas por aquelas mulheres, naquele determinado momento da História. Trata-se, portanto, de desvelar e descobrir o íntimo e a essência de Morley, num jogo de tensões e contradições. Nesta pesquisa, traremos à tona apenas as personagens mais próximas do contexto familiar de Helena, pois analisá-las na íntegra já mereceria outro trabalho, pois a nossa preocupação, no momento, estende-se especialmente à memorialista. Passemos à leitura das tias de Helena, e como ela as percebe.

A tia Aurélia, por exemplo, faz “[...] tanta coisa boa, porque sabe que todos vão admirar os filhos dela e ficar com inveja. Mamãe é uma que daria a vida para nós sermos como os filhos de tia Aurélia, que só vivem estudando” (MORLEY, 1998, p.28, 23fev93), mas, como já assinalamos em outro momento, o mesmo não pode acontecer, porque Alexandre não vive com a família, porque precisa ficar na lavra. Então, “Nós, com meu pai vivendo fora, na lavra, e mamãe querendo ir sempre atrás dele; teremos mesmo de ser como somos” (MORLEY, 1998, p.28, 23fev93). Helena também não esconde o seu lado interesseiro, porque apenas acompanha a família de tia Aurélia aos passeios, sobretudo porque esta leva uma quantidade imensa de comida, como pastéis, craquinéis e tudo o que ela faz para ser vendido. Além disso, a tia é “[...] muito boa doceira, igual a Siá Generosa. Se não fosse isso eu não iria. De que serve a gente passear com eles? Não se pode andar pelo rio abaixo, descalça. Não se pode subir nas árvores. Não se pode procurar gabirobas longe. Não se pode fazer nada” (MORLEY, 1998, p.49, 22abr93).

Apesar do interesse pela comida, Helena não troca sua liberdade pela educação rígida que as primas recebem, percebendo que não vivem de fato. Estilisticamente, reitera a negatividade da experiência. A isso prefere os passeios realizados com os pais, pois estes lhe permitem a caça, a brincadeira no rio. E diz:

Tenho pena das minhas primas com aquele pai tão metódico, como elas dizem. Na casa delas tudo é na hora; tudo é na regra, até palavras, modos, tudo. Engraçado é que as primas vivem horrorizadas de meu pai e mamãe não nos darem educação, como elas dizem, e não fazem um passeio sem nós duas: eu e Luisinha. Mas quando chega de tarde; estou mais cansada do que se estivesse trabalhando o dia inteiro de tanto fingir de educada perto delas.

Não sei se minhas primas têm pena de mim como eu tenho delas. Com certeza. Eu penso que Deus castiga gente educada. (MORLEY, 1998, p.49, 22abr93).

Helena observa que tia Aurélia “[...] vive fazendo inveja às outras” (MORLEY, 1998, p.6, 17jun93). Se alguém faz uma coisa, ela faz outra melhor, como no caso da apresentação teatral realizada pelos filhos, considerando-se que, uma semana antes, o filho de tia Agostinha apresentara uma peça. Então, Aurélia preparou outra melhor. Ainda, Helena observa que festas na casa da tia são muito boas, mas por “[...] causa das coisas boas que ela faz e enche o mesão de todo o tamanho” (MORLEY, 1998, p. 64, 25jun93). Também não compreende por que os tios inibem a participação dos filhos nas brincadeiras (pular fogueira, assar batata) e os fazem irem estudar antes do término da festa. O tio diz: “Pular fogueira, só para Helena que é doida” (MORLEY, 1998, p.64, 26jun93).

Há uma passagem em que Helena conversa com a avó sobre o relacionamento entre as tias e os pais, e a avó diz: “[...] hoje está tudo anarquizado e tudo está diferente. Eu lhe disse: ‘Graças a Deus, vovó. Deus me livre se fosse ainda como no seu tempo’” (MORLEY, 1998, p.77, 23ago93).

Tia Aurélia conta que, sendo ela a mais corajosa, disse às outras que ia entrar na sala para pedir a vovô um vestido de escócia branca para o Natal. As irmãs não acreditaram. Ela então quis mostrar coragem e entrou na sala para pedir a vovó; mas começou a tremer tanto que lhe aconteceu uma coisa horrível. Vovô então ficou com pena e mandou buscar os cortes para todas elas. (MORLEY, 1998, p.77, 23ago93).

Evidencia-se nesse fragmento como a família no século XIX estava firmada sobre os pilares do patriarcalismo. Essa forma de organização familiar repercutia no destino da mulher e prescrevia-lhe comportamentos e a maneira de ser e agir diante da figura paterna, estendendo-se à relação marital; por isso há o constrangimento da tia. Percebemos também o conflito na relação e o desejo de mudança e enfrentamento. Interessante observar que em uma das festas de aniversário de tia Aurélia, após diversas brincadeiras, os primos contavam histórias, cada um inventava ou relatava um fato acontecido. Quando chegou a vez de Helena, esta narrou a história real de tia Aurélia, e os filhos protestaram porque se tratava da história da mãe. Helena conta como se deu o relacionamento com tio Conrado. Para tanto, inicia-a empregando a locução Era uma vez, que determina a ficção, pois revela um tempo mítico,

presente nos contos e fábulas, embora, no caso, se tratasse de um evento real. Vale registrarmos a história contada por Helena, na íntegra, porque há nela questões importantes:

Era uma vez um homem que vivia minerando e um dia achou um caldeirão virgem, tirou muito diamante e ficou rico. Ele morava na fazenda e teve oito filhas, sete muito obedientes, uma muito ruinzinha. Esta, desde pequenina, era muito cheia de vontades e ninguém a governava, nem mesmo a mãe e o pai. Se não queria ir à escola, sumia para o campo e era uma luta para pegá-la. Quando era trancada no quarto só faltava jogar a porta no chão para abrirem. Pancada? Quem lhe batia? Esta menina foi crescendo assim diferente de todas. Era também mais inteligente do que as outras. Quando chegou a idade de casar, o pai lhe falava nos noivos que apareciam e ela dizia: “Não caso porque não quero”. A mãe dizia: “Esta vai me dar trabalho: ninguém sabe o que ela quer”. Para as outras o pai escolhia o noivo e elas aceitavam; esta não. Passado algum tempo ela começou a mudar de gênio e ficar triste. A mãe ficou preocupada de vê-la tão quieta, sempre calada, e sem saber por quê. Nessa ocasião morreu um irmão delas no Rio de Janeiro de febre amarela, e ela sofreu tanto que a mãe ficou pensando que ia perder dois filhos em vez de um. Trancou-se no quarto com a janela fechada só chorando, sem aceitar comida de jeito nenhum. Na fazenda eles até esqueceram a morte do outro para só pensarem nela. Foi um custo para ela se consolar e sair. (MORLEY, 1998, p.163, 17jun94).

Depois, a moça retornou às atividades diárias – continua a história –, o pai faleceu e

aconteceu a mesma coisa. A mãe e as irmãs deixaram de viver o luto pela morte do pai e passaram a cuidar da moça, que vivia no quarto escuro, chorava e não comia. Um dia, apareceu na fazenda um primo que viera pedi-la em casamento:

[...] a mãe foi lhe dizer, só por dizer. Não acreditava que ela aceitasse, tão infeliz estava, coitada! A mãe entrou no quarto e vendo a moça virada para a parede, tão triste lhe disse: ‘Minha filha, eu vim lhe falar só por descarga de consciência, não quero forçá-la, mas fulano está aí, veio pedi-la em casamento e quer ouvir de você a resposta’. Ela deu um pulo da cama perguntando: ‘É verdade?’ Levantou-se, lavou o rosto, foi para a sala e não se lembrou mais de chorar a morte do pai. A tristeza dela era paixão recolhida pelo primo. (MORLEY, 1998, p.164, 17jun94).

Trata-se, porém, não apenas da história de tia Aurélia, mas da família em si, assim como da história das mulheres diamantinenses. As moças viviam num regime patriarcal, a filha não tinha opção de escolha a não ser assumir a posição determinada pelo pai. Ela se rebela e se esconde no quarto, evitando, desse modo, a opção indicada por ele; nesse caso, a situação lhe foi favorável, pois conseguiu reduzir o jugo da supremacia masculina. Por fim, descobriu-se que a moça já escolhera antecipadamente o seu par, todavia, não podia manifestar o seu desejo amoroso. Esta história evidencia muito bem a relação oitocentista entre pais e filhos, entre homens e mulheres. Vê-se que a situação foi aliviada com a morte do pai. Ou seja, desaparece a figura paterna, para a mulher poder escolher.

Outro dado relevante é o relacionamento entre Aurélia e Helena. Podemos observar a aversão que há entre elas em quase todos os registros. Desse modo, não seria possível que a menina sentisse inveja de fato pela autoridade e inteligência da tia? Ou a tia é que inveja as atitudes da sobrinha? Até que ponto essa aversão é real? Como se criam o imaginário e as fantasias de Helena sobre a tia? De um lado, esta rompe com padrões de comportamento e, de outro, a sobrinha repete parcialmente a condição da tia, porém de modo diferenciado, porque Helena apresenta uma preocupação não apenas individual, mas coletiva. Observa as pessoas de Diamantina, das casas e das ruas e, depois, volta-se para si mesma.

Escreve o psicanalista Calligaris:

Em geral, o adolescente é ótimo intérprete do desejo dos adultos. Mas o próprio sucesso de suas interpretações produz fatalmente o desencontro entre adultos e adolescentes. Pois se estabelece um fantástico qüiproquó: o adolescente acaba eventualmente atuando, realizando um ideal que é mesmo algum desejo não era reprimido pelo adulto. Mas acontece que esse desejo não era reprimido pelo adulto por acaso. Se reprimiu é porque queria esquecê-lo. Por consequência, só pode negar a paternidade desse desejo e se aproveitar da situação para reprimi-lo ainda mais no adolescente. (CALLIGARIS, 2009, p.27).

Helena observa as diferentes atitudes da tia: a insistência para com Carolina a fim de colocar as filhas no colégio das Irmãs; o relato de que a tia deu uma surra na negra Isabel (primeiro deu-lhe um tapa e, como esta não reagiu, bateu-lhe com o cabo de vassoura, conseguindo o que desejava – expulsá-la de sua casa); durante a doença de dona Teodora, ela foi a única que não permaneceu o tempo todo com a mãe, porque era cumpridora dos deveres domésticos. “Tia Aurélia também está aqui, mas vai a casa às dez horas dar almoço a tio Conrado, às quatro dar jantar e às nove horas o chá. Ela mora aqui perto” (MORLEY, 1998, p.285, 26ago95). Por isso, todos “[...] da família comentam como tio Conrado pôs tia Aurélia cumpridora dos deveres e ordeira assim, pois ela era a mais pirracenta e geniosa da família” (MORLEY, 1998, p.285, 26ago95). Aurélia realizou um ensaio na mudança dos papéis femininos, mas cedeu para o marido:

Minhas tias contam a história do casamento delas. As únicas que casaram por seu gosto, conhecendo os maridos, foram mamãe e tia Aurélia, porque casaram depois da morte de vovô. Para as outras vovô escolhia o marido que ele queria. Só Dindinha escapou de casar com um fazendeiro burro, por milagre. Elas ficavam espiando pelo buraco da fechadura e diziam uma à outra: “Eu penso que aquele assim assim é o meu”.

Sempre vovô ajustava o casamento de duas ao mesmo tempo. Dava uma festa no Natal e contratava o casamento de duas. Elas levavam um ano todo fazendo o enxoval e casavam no outro Natal. Nesse ano já ficavam noivas outras duas”. (MORLEY, 1998, p.331, 26dez95).

Sendo assim, a figura paterna detém o poder centralizador nas tomadas de decisões, cabendo às filhas obedecer, e sem questionar, pois o pai contratava o casamento e dava-se a consolidação deste como a posse de uma propriedade privada. Dessa maneira, Helena conhece uma condição vivenciada pelas mulheres da família e, por conseguinte, problematiza-a e observa que entre ela e o pai a relação se dá de outra maneira, diferentemente também das filhas de tia Aurélia.

Tia Agostinha, outra filha de dona Teodora, também comemora o aniversário em casa, no Jogo da Bola. Os mais jovens se separam dos mais velhos, mas, nessa ocasião, Helena gosta de aproximar-se deles, ou melhor, das mulheres, e ouvir sobre o que falam: toucinhos, rapadura e feijão, pois falar da “[...] vida alheia é pecado que vovó e minhas tias não fazem. Elas não se lembram que existem outras pessoas em Diamantina fora da família” (MORLEY, 1998, p.53, 11mai93). Desse modo, Helena atua como cientista social, como afirma Roberto Schwarz. Dentre as tias maternas, diz ela: “[...] só há duas pessoas que gostam de mim, vovó e tia Agostinha. Pelo lado do meu pai eu sou querida de todos os tios; [...] Dindinha e Iaiá já estão mostrando pela cara a alegria de ficarem livres de nós” (MORLEY, 1998, p.89, 23set93). Esse fato deu-se quando os filhos de Carolina passaram uns dias na casa da avó,