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Maria Aurilene Vasconcelos: Artimanhas no discurso de Helena Morley

1.8 O Interesse da Crítica Acadêmica pela Produção do Diário Minha vida de menina, de

1.8.3 Maria Aurilene Vasconcelos: Artimanhas no discurso de Helena Morley

Helena Morley se desdobra para atender uma multiplicidade de ‘eus’ constantemente se movimentando e atuando dentro da narrativa. É importante destacar que cada face dessa diarista representa um fragmento, uma pincelada importante no esboço que fazemos dessa adolescente, uma peça que se encaixará com a finalidade de compor o retrato verbal da diarista. Cada parte tem sua devida importância na composição final, o todo só é todo após a junção desses fragmentos que ganhará dimensão e visibilidade [...] Só podemos dizer que as características de Helena são diversas, quando ela mesma nos encaminha e nos direciona para tal apreensão. (VASCONCELOS, 2004).

Maria Aurilene Vasconcelos é outra estudiosa preocupada com a leitura do diário de Helena Morley. Em 2004, na Universidade Federal do Ceará, apresenta a dissertação de Mestrado e, posteriormente, sob o mesmo título, publica o livro Artimanhas no discurso de

Helena Morley. A autora ressalta a importância do estudo da escrita da menina e procura verificar como a personagem se apresenta aos olhos do receptor. Para tanto, estabelece um diálogo entre História e Literatura, com o objetivo de realizar uma leitura crítica do texto em questão. Analisa o discurso multifacetado da personagem protagonista e a sua multidimensionalidade, tal como autorrepresentada em seu diário. Além disso, analisa comparativamente os diários de Anne Frank e Marie Bashkirtseff, fazendo uma abordagem teórica de textos memorialísticos, com o intuito de observar como se dá sua constituição: autobiografia, romance autobiográfico, memórias, autorretrato, poema-autobiográfico e biografia.

Como não tivemos acesso à dissertação, faremos uma leitura da publicação pela Editora 7 Sóis, que resultou do trabalho científico na Universidade Estadual do Ceará. Vasconcelos divide a pesquisa em três momentos: primeiro discorre sobre a literatura confessional e tece uma visão panorâmica dos gêneros em pauta, estabelecendo contrapontos entre diário íntimo e autobiografia. Em seguida, realiza uma leitura atenta de diários de adolescentes, dentre eles o de Helena Morley, Anne Frank e Marie Bashkirtseff. Por fim, pauta-se no discurso multifacetado de Helena Morley.

Vasconcelos abre a discussão a partir da abordagem dos textos memorialísticos: autobiografia, romance autobiográfico, memórias, autorretrato, poema-autobiográfico e biografia, com o intuito de observar como se dá a constituição de cada modalidade textual. A estudiosa pauta-se, sobretudo, nos estudos de Philippe Lejeune acerca da tipologia dos textos em questão e organiza uma visão panorâmica dos gêneros confessionais. Discorre sobre os conceitos de cada tipologia textual e estabelece contrapontos entre diário íntimo e autobiografia. No que se concerne ao gênero diário, Vasconcelos tece considerações mais detalhadas, sublinhando que o diário “[...] é o local onde se guardam as recordações, os fatos, as lembranças; é uma espécie de álbum de retratos familiares ou contemporâneos à narradora íntima” (VASCONCELOS, 2005, p. 57).

Tal retrato permite ao leitor visualizar o momento passado, e o autor do diário, por sua vez, quer registrar tudo o que está ao seu alcance. Em princípio, a escrita do diário não se destina à publicação, por isso não se preocupa com restrições de qualquer natureza. Isso permite liberdade no ato dos registros dos fatos, impressões, comentários, descrições e sentimentos. Philippe Lejeune assinala que a publicação de um diário exige alterações e

“retoques estéticos”. Inclusive, o que há de mais íntimo no diário nem sempre é publicado. Isso, de modo geral, gera discussões e polêmicas entre o eu que relata os fatos e o “eu que publica” (VASCONCELOS, 2005, p. 63).

No segundo capítulo, intitulado “Diários de adolescentes: Helena Morley, Anne Frank e Marie Bashkirtseff”, observa os pontos em comum e a especificidade em cada narrativa. Inicialmente, a pesquisadora explica a escolha dos diários, todos pertencentes a adolescentes do gênero feminino. Esclarece que a leitura comparada entre os diários visa a analisar os pontos em comum e, também, a mostrar que o diário “[...] não é uma simples cópia ou reprodução da realidade” (VASCONCELOS, 2005, p. 79), mas se refere a uma experiência pessoal re-criada a partir da linguagem. Isso “[...] significa dizer que o diário, embora tenha como modelo um referente extratextual, ou seja, as ações narradas são pertinentes à vida da diarista e seu entorno, não invalida como texto literário em virtude do caráter seletivo da linguagem” (VASCONCELOS, 2005, p. 79). Para tanto, divide o capítulo em três partes: “Adolescente/adolescência”, “O diário como experiência recriada – ‘Quem conta um conto aumenta um ponto’” e “O diário como espírito de uma época (contexto de produção)”.

Vasconcelos apropria-se de questões relativas à fase da adolescência, e sua explicação se fundamenta nos pressupostos teóricos da Psicologia, especificamente na vertente psicanalítica, assim como na obra História social da criança e da família, de Phillippe Áriès. Na primeira parte do segundo capítulo, Maria Aurilene registra as particularidades que envolvem a escrita das três adolescentes: retratam contextos sociais distintos e mostram diferentes realidades (Helena – Diamantina, interior mineiro – final do século XIX; Anne Frank registra a fuga dos nazistas num esconderijo secreto, na Holanda – 1942-1944; Marie Bashkietseff, na Rússia – final do século XIX); apesar disso, tais relatos não se distanciam, visto que as adolescentes narram os seus anseios e a visão que se tem do mundo. Elas rompem com os padrões estabelecidos pela sociedade e mostram-se emancipadas, mas as atitudes correspondem às características normais do adolescente em fase de transição. Helena, por sua vez, é uma adolescente inquieta, persuasiva e trapaceira.

A escrita do diário revela um novo eu e esse “[...] outro [que] se revela no papel encobre/descobre as faltas, castração de si mesmo, ou seja, do eu reprimido” (VASCONCELOS, 2005, p. 101). Com efeito, a diarista realiza uma autoanálise e projeta uma imagem para o leitor. Este pode percebê-la não como uma figura ingênua, mas extremamente perspicaz e inteligente. Além disso, a partir do momento em que o diário deixa de ser uma escrita privada e passa a pertencer a uma coletividade sofre alterações, revisões e acréscimos. Isso acontece com o diário de Helena Morley: uma vez publicados, quatro

décadas depois de escritos, os cadernos originais não foram apresentados ao público, visto que a família não os cedeu para leitura ou estudos da crítica genética. A estudiosa enfatiza que

[...] o diário de Helena foi organizado em cima de um texto já existente, não querendo com isso afirmar que houve alterações nos cadernos da adolescente, mesmo porque não podemos comprovar tal afirmação, em virtude dos manuscritos se encontrarem no poder da família da diarista. Portanto, não podemos fazer um estudo da gênese desse diário, pois, para isso, seria necessário proceder a uma análise comparativa entre os originais (manuscritos) e o livro Minha vida de menina. (VASCONCELOS, 2005, p. 101).

Com base no discurso autobiográfico, Helena traduz uma parte de si integrada à história que constitui a História, pois relata uma experiência individual conectada num determinado espaço e tempo, marcados por costumes, rituais religiosos e um modo peculiar de se viver, numa provinciana cidade do interior mineiro. Ela registra as relações entre proprietários, agregados e ex-escravos, entre a família unicelular e os demais parentes, a imagem da mulher, o papel da escola, o lugar do trabalho. Enfim, Helena descreve aspectos intrínsecos e particulares, estendendo-se aos habitantes da cidade de Diamantina. Aparentemente num discurso ingênuo, mas elaborando uma visão panorâmica da sociedade do final do século XIX. No entanto, não demonstra o desejo de ser reconhecida pela escrita, mas tem “[...] o desejo de sair daquela vida simples e regrada em que vivia, seja através do casamento, seja pelos méritos, como deixa claro nos seus devaneios” (VASCONCELOS, 2005, p. 154), e prima pela liberdade. Vasconcelos ressalta a importância da figura paterna em todos os diários analisados, sobretudo no texto de Helena.

No capítulo denominado “O discurso multifacetado da adolescente Helena Morley”, Vasconcelos analisa as faces dos “eus” representadas no decorrer dos relatos registrados no diário. Desse modo, pretende observar as diferentes máscaras de Helena, que se multiplicam diante de situações distintas, num contexto sociocultural diverso, sobretudo marcado pela anulação do papel da mulher. Às vezes, ela se comporta de maneira irônica, dissimulada ou irreverente; ou seja, age conforme os objetivos que pretende alcançar. Tais atitudes corroboram a formação de sua personalidade. Vasconcelos observa que Helena relata os fatos acontecidos com familiares e amigos, sendo que há poucas “[...] passagens que se referem à narrativa de si mesma. Talvez isso decorra do fato de as relações diárias terem como receptor o professor de Português da escola Normal” (VASCONCELOS, 2005, p. 167). Conforme a estudiosa, talvez seja a explicação para se resguardar, ou seja, nem tudo é revelado.

A pesquisadora mostra uma Helena que não é amada por todos; às vezes, é criticada pela maneira de ser e agir, já que não corresponde a expectativas e valores da época. Ela é

respondona, dissimulada, questionadora, não obedece às pessoas mais velhas, não ratifica crendices populares; é inquieta, ambiciosa, divertida, espirituosa e crítica. Enfim, mostra diversas Helenas, uma multiplicidade que permite, entretanto, a construção de uma unidade: “Temos, então, uma adolescente sagaz, com uma memória fabulosa e um senso de humor bastante aguçado. Em outros momentos encontramos uma Helena que não cala, dizendo o que pensa sem se importar com aquilo que as pessoas dirão a seu respeito” (VASCONCELOS, 2005, p. 217). Essa observação só é possível a partir da construção de um discurso multifacetado que perpassa ao longo dos relatos do diário.

Por fim, a estudiosa afirma que o livro de Helena a conquistou, envolvendo-a com seu discurso sedutor, “[...] com suas várias possibilidades de ser, despertando [ o leitor] para uma nova leitura” (VASCONCELOS, 2005, p. 223). A estudiosa traz pontuações importantes para o estudo do diário e reflexão dirigida sobre a escrita adolescente. Retoma outros questionamentos já discutidos por pesquisadores de outras instituições acadêmicas e permite ao receptor levantar outras hipóteses, como as poucas passagens que se referem a si mesma. Nesse caso, por que Helena diz muito do outro e pouco de si? Talvez pudéssemos questionar se o sujeito, ao falar do outro, não se volta para si mesmo? Ou, se vivemos com o outro, somos a soma dessas relações. Fica, então, as perguntas, para que possamos pensar no decorrer de nossa análise.