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1.8 O Interesse da Crítica Acadêmica pela Produção do Diário Minha vida de menina, de

1.8.4 Cristal Recchia: Perfis femininos

O diário de Helena Morley, ou seu “caderno” como ela prefere chamar, traz em suas páginas mais do que a vida íntima de uma menina provinciana, uma vez que é composto também por pequenas crônicas da vida social Diamantina. As memórias autobiográficas de Helena pintam um generoso quadro do processo de formação da mulher brasileira. (RECCHIA , 2008, p. 43).

Em 2008, Cristal Recchia defende a dissertação de Mestrado, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários da Faculdade de Ciências e Letras, campus de Araraquara, na Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, intitulada Perspectivas femininas em Helena Morley e Lygia Fagundes Telles: Minha vida de

menina e As meninas. Nessa pesquisa, Recchia efetua um estudo comparatista da construção do “eu” feminino de personagens inseridas em diferentes contextos históricos, como a Proclamação da República, a Abolição da Escravatura e a Ditadura Militar. Para tanto,

apropria-se de dois textos da literatura brasileira: o primeiro, Minha vida de menina (1942), de Helena Morley, e As meninas (1973), de Lygia Fagundes Telles.

A estudiosa ressalta que tem como objetivo analisar a construção do “eu” feminino nas obras em questão, além de examinar a escrita de autoria feminina e a escrita feminina. Para tanto, mobiliza os estudos da literatura de autoria feminina, como o de Lúcia Castello Branco, que se aproxima da linha francesa, ou seja, preocupa-se com a definição da identidade feminina, e os de Elódia Xavier, aproximada da linha anglo-americana, voltando-se para a condição da mulher na sociedade. Daí a necessidade de observar o conteúdo dos textos, somado à expressão linguística. Nesse sentido, o estudo de Elaine Showalter é imprescindível para a pesquisa de Cristal Recchia. Além disso, apropria-se dos textos de Roberto Schwarz, Alexandre Eulálio, Cristina Ferreira Pinto, Débora Ferreira, estende-se aos pressupostos da teoria da narrativa de Gérard Genette e, quanto aos aspectos temporais, vale-se dos estudos de Benedito Nunes, acerca da narrativa.

Após a exposição da fundamentação teórica, Recchia realiza fortuna crítica referente às duas escritoras. Em seguida, já no terceiro capítulo, observa questões sobre diários e mulheres, abordando a publicação, autoria e análise da produção morleiana. Em outro capítulo, denominado “As meninas”, examina o texto de Lygia Fagundes Telles. Já, no quinto capítulo, realiza a análise comparativa do diário de Morley e o romance de Lygia Fagundes Telles, sobretudo no que diz respeito às marcas de passagem temporal. No último capítulo, denominado “Relações entre o corpo feminino e o tempo histórico”, subdividido em duas partes, “O corpo feminino adolescente de Helena Morley” e “As meninas: o corpo erotizado”, a estudiosa realiza uma análise comparativa da representação do corpo feminino nos dois textos em questão, relacionando-os ao tempo histórico em que as personagens protagonistas se encontram.

Assim, o primeiro capítulo aborda a escrita feminina e a de autoria feminina e, o segundo, intitulado “Fortuna crítica”, está subdividido em duas partes: “A crítica sobre Helena Morley” e “A crítica sobre Lygia Fagundes Telles”. No que tange ao diário de Helena, Recchia assinala, inicialmente, os admiradores de Minha vida de menina. Dentre eles, se destacam: George Bernanos, Gilberto Freyre, Raquel de Queiroz, Paulo Mendes Campos, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, Rubem Braga, Fernando Sabino e Carlos Drummond de Andrade, também citados por Vera Brant.

A partir da organização de Recchia, pudemos observar que há diferentes olhares voltados para o texto em questão, conforme a atividade intelectual de cada um. Gilberto Freyre percebe o diário de Morley como uma “[...] história natural da vida da família

brasileira” (RECCHIA, 2008, p. 28); já Raquel de Queiroz vê o diário como um retrato de Diamantina, escrito a bico de pena, “[...] um caso único da literatura brasileira.”(QUEIROZ apud RECCHIA, 2008, p. 28). A estudiosa transcreve um trecho de texto de Rubem Braga (1958) sobre o diário, cujo teor vale retomarmos:

A sensibilidade especial dessa menina, aliada a um jeito natural para escrever, é que permitiu esse milagre de nos trazer até hoje, e para sempre, viva, essa Diamantina de mais de 60 anos atrás. E isso não é arte? E qualquer escritor pode aprender muito aqui e muito tem a invejar com o assunto. (RECCHIA apud BRAGA apud BRANT, 2007, p. 34).

Já Georges Bernanos, exilado no Brasil, justamente na época do lançamento do livro, considera a obra de um valor imensurável no contexto intelectual do país, acrescido da tradução do diário, na França, momento em que escreveu uma carta à autora (30/05/1945). O texto epistolar foi anexado à edição francesa. Ei-lo:

Prezada Senhora:

Muito me emocionou a gentileza de enviardes a mim o vosso livro, pois na verdade acredito que já sabeis quanto o admiro e amo.

Escrevestes um desses livros raros em todas as literaturas, livros que nada devem à experiência, ao talento, mas tudo devem ao ingenium, ao gênio, pois não se deve ter medo dessa palavra tantas vezes desviada do seu significado, ao gênio considerado em sua própria fonte, ao gênio da adolescência. É que aí as recordações de uma simples menina de Minas apresentam o mesmo problema que os fulgurantes poemas de Rimbaud. Por mais prodigiosamente diferentes que pareçam aos imbecis, sabemos que essas recordações pertencem à mesma parte misteriosa - mágica - da vida e da arte. É provável que ignoreis o valor do que nos destes. Eu, que o sinto tão profundamente, não saberia defini-lo. Conseguis que nós vejamos e amemos tudo o que vistes e amastes naqueles dias distantes, e cada vez que fecho o vosso livro convenço-me de que o espírito dessa narrativa me escapa. Mas que importa?

É bem emocionante que se diga que a menina que fostes, bem como o pequeno universo em que ela viveu, não morrerão nunca. Peço-vos que aceiteis as minhas homenagens. G. Bernanos. (apud RECCHIA, 2008, p. 29).

Como se vê, a carta de George Bernanos é repleta de admiração pela produção de (Alice ou Helena). No entanto, a estudiosa observa que tal empolgação decorre das afinidades cristãs e religiosas do escritor francês, que comunga da temática presente no texto de Morley, pois Helena apresenta um painel da religiosidade mineira. Em seguida, Recchia discorre sobre a visão de Guimarães Rosa sobre o texto Minha vida de menina. Conforme o escritor, o diário é um dos mais importantes livros da literatura brasileira.

Em sua leitura interpretativa do diário de Morley, Recchia, inicialmente, tece considerações sobre diários e mulheres e se apropria de diversos teóricos, como Foisil, Hébrard, Rocha, dentre outros. Em seguida, discorre sobre a publicação e autoria de Minha

vida de menina. Traça, então, o panorama histórico das diferentes edições e traduções. A estudiosa assinala a importância do diário, sobretudo no tocante à crônica da vida social de Diamantina, com suas diferentes classes sociais, como, também, “[...] um generoso quadro do processo de formação da mulher brasileira” (RECCHIA, 2008, p.43), porque a protagonista exibe uma personalidade forte e questionadora para o tempo em que vive.

Além disso, a pesquisadora apresenta três hipóteses sobre a origem do diário de Helena Morley. Primeiro, observa que Roberto Schwarz questiona as datas apresentadas no diário; segundo, que a autora poderia ter escrito o texto na vida adulta, como sugere Alexandre Eulálio, ponto de vista contestado por Guimarães Rosa; ou, uma terceira hipótese, que ela teria revisado e melhorado o texto, adequando-o às tendências modernistas. Posteriormente, Alexandre Eulálio observa a leveza do texto e a eficácia da preparação para o prelo dos velhos cadernos de memória; já a pesquisadora afirma: “Um fato que podemos destacar, neste sentido, é que tudo melhora na vida de Helena de uma hora para outra, e a menina pobre passa a ter uma vida melhor coincidentemente perto do desfecho da obra, final que pode sugerir a mão de um editor” (RECCHIA, 2008, p.46).

Elizabeth Bishop, por sua vez, também questionou a autenticidade da autoria do diário, porém não se manifestou da forma como fizeram outros estudiosos. De um lado, salientou o efeito que pode provocar na interação entre texto e leitor. De outro, se ateve à participação autoritária de Mário Brant, esposo de Alice, no processo de tradução para o inglês e o cuidado com o original, dentre outras questões, como a escolha do pseudônimo para a autoria da obra. Recchia entrou em contato com Sarita, filha de Alice, numa conversa telefônica, e ficou sabendo também que fora o esposo quem “[...] colocou as datas nas entradas do diário, e muitas vezes o fez aleatoriamente, ou através de pesquisa no caso de dias santos” (RECCHIA, 2008, p.48). Dessa forma, observa a coincidência das datas inicial e final do diário: “[...] pode ter sido resultado de um processo de construção editorial” (RECCHIA, 2008, p.48).

A partir das hipóteses levantadas, Roberto Schwarz não fecha a questão em pauta e Recchia, por sua vez, também a mantém em aberto, questionando as implicações e o incômodo da crítica sobre a autoria: “Será que por ter sido escrito por uma mulher supostamente na adolescência? São perguntas ainda sem respostas?” (RECCHIA, 2008, p.48). Sugere, então, a opinião de outros estudiosos e acredita que o diário pode ter “[...] sofrido alterações, sem contudo estar distante da escrita adolescente” (RECCHIA, 2008, p.49).

Outro aspecto marcante que Recchia levanta reporta-se à comparação entre as cartas de Alice, já na idade adulta, direcionadas a Vera Brant, as quais foram por esta publicadas.

Por conseguinte, a estudiosa tece comparações entre a escrita do diário e os textos epistolares, notando proximidade entre a carta e o diário. Assim, declara que o fato “[...] leva-nos à certeza de que o diário pode até ter sofrido alterações, para ficar mais estilisticamente redondo, porém, a vivência, as lembranças e a graça do texto pertencem à pena de Alice Brant” (RECCHIA, 2008, p. 51). Por conseguinte, a única forma de amenizar a questão seria compactuar com a narradora e participar do evento literário.

Além dessas implicações, Recchia observa como se dá a configuração temporal em

Minha vida de menina. Para essa leitura, fundamenta-se nos pressupostos teóricos de Benedito Nunes e Isabel Allegro de Magalhães, dentre outros. Percebe que o tempo nos registros do diário acontece de forma lenta, gradativa e linear dos dias em Diamantina. Tal lentidão reflete a decadência das minas de ouro e diamante, oferecendo um retrato da vida privada e política da cidade mineira, propiciando uma visão macro da condição histórica do país. Paralelos ao aspecto temporal, os registros permitem revelar a condição psicológica da protagonista, sobretudo o olhar de uma menina para o tempo em que vive, visto que traz em “[...] sua trama uma visão da mulher brasileira sob uma ótica feminina” (RECCHIA, 2008, p. 58). Sendo assim, revela a inteligência feminina e a sua visão crítica, porém muitas vezes silenciadas.

No capítulo intitulado “Relações entre o corpo feminino e o tempo histórico”, Recchia apresenta uma análise comparativa da representação do corpo feminino, relacionando-a ao tempo histórico. Quanto a Helena Morley, sublinha que esta “[...] responde-nos com seu corpo de adolescente, entre mulher e menina, entre o desejo e a negação dos seus sentidos imposta pela igreja” (RECCHIA, 2008, p. 72). Sendo assim, há passagens, embora em número reduzido, nas quais Helena se vê fisicamente, reconhece sua feminilidade, beleza e sexualidade, às vezes provocando inveja e desejo aos olhares alheios, femininos e masculinos. Além disso, suas vestes lhe proporcionam momentos de ascensão social e econômica. Entretanto, apesar de sua posição crítica, Helena é movida pela educação cristã.

Por fim, Cristal Recchia constata que o aspecto temporal permite a visão de mundo pelo olhar da protagonista, oferecendo ao leitor um panorama social e cultural do momento em que se passa a trajetória vivenciada pela personagem, a partir da ótica feminina. Além disso, tendo analisado a personagem mineira e as personagens de Lygia Fagundes Telles, contribui especialmente para a compreensão da mulher brasileira.

Enfim, não esgotamos os trabalhos sobre a fortuna crítica literária do diário intitulado

Minha vida de menina, de Helena Morley, mas, partindo dos textos que selecionamos, tentamos reconstruir as principais linhas interpretativas acerca da produção morleiana. Assim,

no fim da década de 50, especificamente em 1959, inicia-se a recepção crítica sobre a produção de Helena Morley, como pudemos observar por meio do material coligido, ainda que timidamente, visto que, até esse momento, os estudiosos se limitavam a fazer sobre ela somente breves referências, prefácios e comentários.

Gradativamente, desde a década de 90 até nossos dias, Helena Morley ganha um espaço maior, seja em revistas, em jornais ou coletâneas de artigos. Os textos estudados, de forma geral, trazem implicações críticas divergentes, que algumas vezes dialogam, outras se distanciam.

2 ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA: O DIÁRIO DE HELENA MORLEY (ANÁLISE INTERPRETATIVA DE MINHA VIDA DE MENINA)

O diário é uma série de vestígios. Ele pressupõe a intenção de balizar o tempo através de uma seqüência de referências. O vestígio único terá uma função diferente: não a de acompanhar o fluxo do tempo, mas a de fixá-lo em um momento-origem. O vestígio único será não um diário, mas um ‘memorial’ [...] O diário é uma rede de tempo, de malhas mais ou menos cerradas... (LEJEUNE, 2008, p.260)

Após a leitura dos estudos críticos, envolvendo ensaios, dissertações, teses e verbetes, passemos à leitura dos estudos voltados para o gênero em questão e à nossa própria leitura crítica do diário de Helena Morley.