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1 CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O ESTUDO

3.2 Aspectos relacionados ao nosso sistema disciplinar de ensino

Do ponto de vista historiográfico, o processo de institucionalização de uma determinada disciplina é, de certa forma, recente, pois remete aos séculos XVIII e XIX na Europa, onde as demandas sociais, profissionais, culturais e econômicas suscitaram um processo de especialização das instituições em decorrência dos interesses de investigação dos estudiosos sobre culturas escolares, o que levou ao surgimento de disciplinas, inicialmente na

área das ciências naturais e depois nas áreas das ciências sociais. Neste sentido, as relações entre esses conhecimentos e o seu processo de aprofundamento em determinada área proporcionaram a constituição de novas disciplinas com campos de disciplinares distintos.

Observemos, portanto, que neste processo é preciso entender, inicialmente, os aspectos epistemológicos de como estes campos de conhecimentos são organizados por determinada grupo de estudiosos até se constituírem como uma disciplina. Este tipo de estudo sobre como uma determinada área de conhecimento se constitui é denominado processo de disciplinarização, um conceito estabelecido por Hofstetter e Schneuwly (2017) para estudar o complexo processo de formação do sistema disciplinar e seus componentes, as disciplinas. Os saberes específicos atribuídos a uma determinada área de conhecimentos serão considerados e validados através de um processo composto por pesquisa e ensino até que possam ser reconhecidos como um novo campo disciplinar, fruto da influência das escolas de pensadores por um lado, quanto das organizações institucionais, por outro lado, ocasionando, assim, a objetivação de um conjunto de saberes que passam a ser tomados como saber disciplinar ou saber objetivado.

Assim, tal campo disciplinar, uma vez efetividado, passará por um processo contínuo de rearranjos, subdivisões e múltiplas formas de abordagens, que poderão possibilitar por um lado o estabelecimento de um processo de interdisciplinaridade, no sentido de estabelecer diálogos disciplinares para conectar saberes capazes de dar conta sobre determinado conhecimento, e assim conseguir reordenar-se com diversas subáreas de conhecimento. Podemos citar, por exemplo, no caso da Matemática. Um determinado problema pode apresentar ao longo de sua resolução saberes associados à aritmética, álgebra e/ou geometria. Deste modo, o ensino dessa parte da Matemática envolve saberes relacionados aos conteúdos e aos modos de tratar desses conteúdos, em processos de mobilização de saberes que promovam o alcance do objetivo estabelecido previamente no processo disciplinar: a aprendizagem do aluno a partir do que é ensinado pelo professor.

No caso do processo de disciplinarização da matemática, a tese de Oliveira (2015) apresentou um estudo sobre a classificação das disciplinas que na Europa dos séculos XVI e XVII eram consideradas como matemáticas (ou do campo de comhecimentos específicos ou que necessitavam de uma aplicação direta). Explorando suas especificidades e diferenças, que

de acordo com os estudos das obras de Adriaan van Roomen3 poderiam se dividir em três grupos: as matemáticas puras (logística, prima mathesis, aritmética e geometria), matemáticas mistas (astronomia, cronologia, cosmografia, geografia, topografia, música e outras) e as matemáticas mecânicas (sphaeropoeia, manganaria, mechanopoetica, organopoetica e thaumatopoetica).

Neste sentido, apontou que o desenvolvimento da matemática entre os séculos XVI e começo do século XX, levou ao que consideramos como um distanciamento da matemática com outras áreas de conhecimento, por necessidades próprias e inerentes aos estudos de seus aspectos mais abstratos. Tais estudos puderam ser explorados, gerando novas teorias, campos específicos de conhecimento e que, com o passar do tempo, tiveram aplicações em outras áreas do conhecimento científico (OLIVEIRA, 2015).

Durante este período, diversos estudiosos da matemática buscaram o rigor matemático no desenvolvimento de seus trabalhos e pesquisas. Um dos precursores desse movimento foi Carl Friedrich Gaus (1777 – 1855) que tinha como lema ‘pauca sed matura’, ou seja, só poderia publicar uma determinada obra depois que estivesse amadurecida até a perfeição. Neste cenário, todo um conjunto de pesquisadores passaram a contribuir e defender a necessidade desse distanciamento com o objetivo de desenvolver uma matemática original, mais abstrata e livre de questões que não necessitavam de uma aplicação em outras áreas naquele momento (termo que hoje muitos atribuem como matemática pura).

Houve a necessidade de organizar e sistematizar nas universidades uma matemática acadêmica voltada para os aspectos mencionados, assim como uma matemática escolar ou básica que pudesse contribuir com a formação de jovens com um certo grau de instrução, aptos ao trabalho numa sociedade que passava por um período de revolução industrial, acarretando na necessidade de reorganizar o conjunto de disciplinas que eram consideradas como matemáticas, em disciplinas que pudessem ser ensinadas na forma conhecida como cadeiras ou cátedras. Esta tendência perdurou em alguns países até a primeira metade do século XX. Professores de disciplinas como aritmética, geometria e álgebra, tinham que se submeter a processos avaliativos específicos para mostrar suas habilidades no conteúdo específico antes de serem contratados (D’AMBROSIO, 2008).

3 Adriaan van Roomen (1561-1615) foi um médico e professor da região de Flandres, estudioso da matemática que publicou dois livros em que atribuía um conjunto de dezoito disciplinas denominadas de “matemáticas”.

Junto com a necessidade de ensinar matemática nas escolas básicas surgiu a necessidade de formar professores habilitados a lecionar matemática nos seus diferentes níveis de ensino. No caso do Brasil, Saviani (2013) mostra que durante o período do Brasil Império e República Velha existia poucos grupos escolares com oferta de ensino primário, concentrado nas principais cidades do país e que poucos eram os cursos secundaristas. Havia também oferta de cursos com disciplinas avulsas por professores que lecionavam em suas residências ou em alguns casos em cursos específicos para a inserção no mercado de trabalho na área do comércio ou para iniciação ao serviço público.

Durante esse processo de organização das disciplinas escolares voltadas para o ensino básico na Suíca, Lussi Borer (2017); Hofstetter e Schneuwly (2017) ressaltam que as Ciências da Educação foram fortemente influenciadas pelo processo de disciplinarização, preocupadas com os aspectos didático-metodológicos a serem utilizados para a formação dos alunos, inseridos nas escolas normais e nas instituições acadêmicas. Desse fato surgem pistas que nos levam a compreender que as didáticas das disciplinas surgiram da necessidade de construção de práticas de ensino específicas para cada disciplina e que foram exitosas, transformando-se, em determinado momento, em um campo disciplinar com espaço para a pesquisa, para o ensino, e possibilitando a geração e adaptação de novos saberes a serem incorporados à formação profissional do professor.

O que se mostra relevante deste movimento de organização das disciplinas escolares deve-se ao fato de já existir uma preocupação com os aspectos de apropriação dos conteúdos ligados aos saberes a ensinar pelos professores, em alguma medida, como os aspectos relativos aos saberes para ensinar por esses professores. Muitos estudos sobre psicologia cognitiva foram desenvolvidos por estudiosos interessados em entender como e de que forma as pessoas poderiam ser estimuladas a aprender, quais fatores seriam necessários ativar para que a aprendizagem ocorresse. Assim, o método do condicionamento foi muito explorado, com um modelo de instrução baseado no chamado reforço positivo e negativo.

Estes e outros estudos relativos aos métodos pedagógicos de ensino contribuíram com a seleção do conteúdo a ser ensinado, com sua ordenação num determinado modelo organizacional, segundo os quais os conceitos mais simples são explorados de forma introdutória para que, de forma gradual, os mais abstratos possam ser explorados na medida em que conteúdos mais difíceis de compreensão possam ir sendo introduzidos. A intensidade de como deveriam ser vistos, a forma como deveriam ser trabalhados pelos professores foram (e ainda são) determinantes no processo de elaboração dos manuais e escolha dos livros

didáticos, com o intuito de alcançar os objetivos estabelecidos para a educação em cada período, nível ou fase de desenvolvimento.

De acordo com Valente (2017b), diante da importância de compreender o processo epistemológico de como os saberes matemáticos a ensinar e os saberes matemáticos para ensinar precisam ser integrados a formação do professor de forma indissociável, uma vez que são necessários para a profissionalização dos futuros professores nos cursos de Licenciatura em Matemática.

É necessário, portanto, entender como os saberes docentes se referem ao conteúdo específico que devem compor a matemática a ensinar e que os aspectos relativos à metodologia, didática, experiência e das relações pessoais devem compor o processo formativo da matemática para ensinar. Foi nesse processo que professores e pesquisadores, preocupados com o ensino-aprendizagem em matemática, passaram a relacionar saberes entre a matemática e os campos ligados às Ciências da Educação, construindo, assim, uma área de conhecimento que dialoga com estes dois campos.

No caso da matemática, este novo campo científico e profissional, a Educação Matemática, passou a atuar nesse espaço de intersecção entre essas duas áreas, contribuindo com estudos que têm como foco os processos de ensino-aprendizagem em matemática. Dentro desse cenário, as discussões sobre a formação dos saberes necessários para a formação do professor de matemática são recentes. Nas últimas décadas é que tais estudos passam a compor o objeto direto de estudo de muitos pesquisadores (VALENTE, 2017b).

Para este autor, os estudos acerca dos saberes necessários à prática docente, ganham importância nas últimas décadas. Com efeito, os estudos sobre o saber profissional do professor se originam dos saberes de sua formação. De acordo com Maciel e Valente (2018, p. 167), tem-se que

[...] os saberes a ensinar como saberes originalmente produzidos pelas disciplinas universitárias, pelos diferentes campos científicos considerados importantes para a formação dos professores; e, de outra parte, os saberes para ensinar, que são tratados como uma especificidade da docência, ligam-se àqueles saberes próprios para o exercício da profissão docente.

É importante destacar, neste sentido, que ambos os saberes contribuem de forma imprescindível na formação dos professores, evidenciando que para o exercício da docência a posse dos saberes para ensinar precisa de uma conexão com os saberes a ensinar em matemática ou em qualquer outra área do conhecimento. Não se trata de uma discussão sobre qual saber tem maior importância no processo formativo do professor, mas sim sobre o fato

de que nesta formação ambos os saberes devem compor a formação do professor, de forma sistêmica e indissociável.

Conforme mencionamos anteriormente, no processo de disciplinarização se evidencia como as disciplinas escolares se constituíram entre os séculos XIX e XX e como em consequência desse reordenamento da escola, o Estado assumiu a responsabilidade pela instrução pública. Assim, as universidades passaram a constituir cursos de formação de professores para atuarem na Educação Básica e deste processo emergiram disciplinas específicas sobre cada campo de saber constitutivos de uma determinada área para compor um “todo”. No caso da matemática, disciplinas como aritmética, geometria plana, aritmética, álgebra, análise e trigonometria têm um espaço de centralidade na formação dos futuros professores de matemática.

O exemplo do que acabamos de mencionar aparece destacado em um capítulo do livro A matemática na Educação Secundária de autoria de Euclides Roxo, publicado em 1937, pela Companhia Editora nacional. No capítulo VII do referido livro, o autor discorre sobre a conexão entre as várias partes da matemática e entre esta e as outras disciplinas do curso secundário. Menciona aspectos relacionados ao antigo preconceito de separação da matemática em partes distintas e a necessidade de uma unidade da matemática considerando seu processo evolutivo estabelecido historicamente, no qual aritmética, álgebra e geometria não se mostram separadas nem organizadas cronologicamente. Para melhor argumentar o autor mostra vantagens e desvantagens de se fazer uma fusão dessas partes da matemática e discute sobre a trigonometria como disciplina independente na área de matemática, considerando os diversos ramos da matemática que se agregam ao conhecimento trigonométrico.

Podemos considerar, que por um lado a preocupação de Roxo (1937) com essas conexões, advinha possivelmente das discussões que estavam sendo postas nos principais centros intelectuais da Europa e Estados Unidos, a julgar pelas referências bibliográficas utilizadas e mencionadas por ele. Por outro lado, fica, também, evidente a preocupação com os aspectos didático-pedagógico da formação dos professores. Daí surgem disciplinas eminentemente preocupadas com aspectos como a prática de ensino, o método pedagógico e a abordagem didática dos professores.

Este fatiamento das disciplinas transcorre todo o século XX, fazendo com que surjam especialidades dentro do campo de conhecimento ou com que surjam campos de conhecimento e pesquisa que entrelaçam duas ou mais áreas de conhecimento. O pesquisador

e professor Dr. Nilson José Machado mostra em suas publicações, seminários e palestras preocupação com a banalização da ideia de disciplina e, consequentemente, com o processo de formação do professor, no sentido da falta de entendimento do “todo” da disciplina em que atua ou irá atuar como professor (MACHADO; 2016).

A propósito, relembramos que durante a Idade Média, embora tenha se iniciado na Idade Clássica, na Europa, as chamadas disciplinas básicas que compunham a instrução faziam parte do Trivium4 (gramática, retórica e lógica). Eram disciplinas básicas da formação geral, denominadas Artes Liberais. Isto significava que todo aquele jovem estudante inicial no campo dos saberes tinha que demonstrar o domínio destas três disciplinas.

É importante destacar que o processo de disciplinarização é consequência desse movimento de ampliação dos estudos sobre qualquer área de conhecimento, mas que a formação dos professores deve ser vista com uma compreensão do todo, presente no Projeto Pedagógico do Curso e pelos professores formadores.

Nesta relação, entre o processo de disciplinarização como algo inerente nos espaços de formação acadêmica e a necessidade de ter uma noção de totalidade da disciplina em que irá atuar e como tal, precisa receber uma formação sobre os saberes para ensinar, nos quais conhecimentos das Ciências da Educação, a disciplina em que irá atuar – no nosso caso a matemática e os conhecimentos sobre a Educação Matemática – estejam integrados e em harmonia, ao longo de todo o curso, conforme podemos identificar na resolução 02/2015 que trata das Diretrizes Curriculares Nacionais para a formação inicial dos cursos superiores de Licenciatura (BRASIL, 2015).