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Considerando que a temática desta pesquisa é a vulnerabilidade social e a insegurança alimentar e nutricional da Comunidade Quilombola Mumbuca, no Estado do Tocantins, optamos por recorrer ao arcabouço teórico de Geertz (1978; 2000) para o desenvolvimento do trabalho etnográfico, com o intuito de descrever e analisar o processo de defesa do território da Comunidade expressa nos conflitos socioambientais enfrentados pela Comunidade Mumbuca, e compreender a Festa do Capim Dourado como um dos aspectos simbólicos que impõe significado à construção da identidade da comunidade.

Uma vez que o comportamento humano é visto como ação simbólica, a etnografia é, para Geertz (1978), uma “descrição densa” das estruturas conceituais que informam os atos dos nossos sujeitos.

Segundo o autor:

O que o etnógrafo enfrenta, de fato [...] é uma multiplicidade de estruturas conceptuais concretas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar. (GEERTZ, 1978, p. 20).

Por isso, o desafio é compreender, do ponto de vista da interpretação da cultura (GEERTZ, 1978), a organização social da Comunidade Mumbuca e o processo de construção da identidade quilombola (ALMEIDA, 2002).

As comunidades quilombolas estão envoltas em desconhecimento por parte da sociedade brasileira devido ao abandono do Estado. Houve um processo “natural” de desobrigação por parte do Estado desde a abolição da escravatura até a promulgação da Constituição brasileira de 1988. O art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) confere direitos territoriais aos remanescentes de quilombos que estejam ocupando suas terras, sendo-lhes garantida a titulação definitiva.

O Tocantins (região que pertencia ao estado de Goiás, também chamado de Norte do Goiás), é pouco conhecido pelos demais brasileiros por se tratar de um estado criado em 05 de outubro de 1988, por ocasião da promulgação da Constituição Brasileira. Devido ao Estado de Goiás pertencer à região Centro-Oeste do Brasil, poucas pessoas sabem que o Tocantins, ao ser criado, passou a compor a região Norte do Brasil.

As comunidades quilombolas vivem e sobrevivem nesta região, mas muitas vezes são ignoradas pela sociedade e pelo Estado, pela concepção de que a existência dessas comunidades é um sinal de entrave ao desenvolvimento, unicamente pautado no progresso e no crescimento econômico.

Pretendemos identificar, dentro da própria comunidade, formas para fortalecer a resistência e a luta das famílias quilombolas no que se refere à superação da situação de vulnerabilidade social e insegurança alimentar e nutricional, bem como a orientação das políticas públicas desenvolvidas para o enfrentamento dessa realidade nas esferas federal, estadual e municipal.

Em face disso, a complexidade do nosso trabalho reside no fato de que a segurança alimentar e nutricional é um tipo multidisciplinar e a adoção de políticas públicas nessa área é multissetorial.

Optamos por analisar programas e ações inseridos na política de segurança alimentar e nutricional, alocados em diversos ministérios, como MDS (Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à Fome; MDA (Ministério do Desenvolvimento Agrário), Ministério da Saúde, Ministério da Educação, SEPPIR (Secretaria Especial

de Promoção de Políticas de Igualdade Racial), INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) e FCP (Fundação Cultural Palmares).

Considerando que o público portador de direito são as pessoas e as comunidades quilombolas, centralizamos a nossa atenção no Programa Brasil Quilombola (PBQ), que é o principal programa do governo federal voltado para as comunidades quilombolas. O PBQ foi criado em 2004, com a finalidade de coordenar as ações governamentais que estão sendo desenvolvidas junto às comunidades quilombolas, com ênfase na participação social (a ideia é que os quilombolas, sujeitos do programa, participem e interajam na elaboração e implementação). O PBQ é coordenado pela SEPPIR e tem suas ações executadas por 23 órgãos da administração pública federal.

O procedimento adotado em nossa pesquisa foi o conhecimento do PBQ, da forma como foi idealizado pelo governo federal, com um olhar analítico para os programas e ações de segurança alimentar e nutricional voltados para população negra e para comunidades quilombolas, previstas no orçamento plurianual 2008/201130.

No Estado do Tocantins, o PBQ está sob a coordenação da Secretaria da Cidadania e Justiça (SECIJU) e suas ações estão sendo executadas basicamente por cinco secretarias estaduais (Secretaria da Cidadania e Justiça, Secretaria de Planejamento, Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social, Secretaria da Saúde e Secretaria da Educação e Cultura), por dois órgãos federais com representação no Estado (Incra, e Conab) e pelo Instituto do Desenvolvimento Rural do Estado do Tocantins (RURALTINS).

A análise dos resultados da avaliação das políticas públicas voltadas para a Comunidade Quilombola Mumbuca será apresentada na quarta seção31 deste

trabalho, para que possamos avaliar qual a cobertura do PBQ e o grau de vulnerabilidade da comunidade.

Vale ainda salientar que o Programa está vagamente construído na mentalidade dos técnicos do governo e as ações só estão sendo implementadas via projetos eventuais em uma ou outra comunidade quilombola do Estado. Isso se dá

30 Cf. o quadro1, p. 64 deste documento.

31 O objetivo da seção é fazer uma avaliação das políticas públicas de segurança alimentar e

porque não existe um plano, uma política ou um programa estadual específico para essas comunidades. Acreditamos que essa realidade é encontrada em todos os estados do Brasil.

As dificuldades que as comunidades quilombolas encontram para acessar programas e ações voltados à segurança alimentar e nutricional são muitas, mas a maior delas é o agravamento da desigualdade étnico-racial e social, que tornam esses grupos ainda mais invisíveis diante dos técnicos e dos gestores municipais. Outrossim, as comunidades não conhecem as políticas e programas os quais têm o direito de acessar e, quando conhecem, ficam à mercê de uma burocracia que as exclui do processo decisório.

Os projetos que estão em desenvolvimento na comunidade, em sua maioria, são pilotos e atendem aos editais que são lançados pelo governo federal. São iniciados, mas nem sempre chegam ao final, por isso a comunidade vive sempre uma expectativa não realizada. Muitas vezes os gestores nem sabem quais são os mecanismos que o município deveria utilizar para acessar os recursos disponibilizados pelo do governo federal.

No caso específico da Comunidade Mumbuca em que estamos desenvolvendo esse estudo, há uma situação ímpar: a comunidade pesquisada pertence ao Município de Mateiros; o recurso destinado aos programas e ações de segurança alimentar e nutricional deveriam estar alocados na Secretaria Municipal de Assistência Social, mas essa secretaria não existia institucionalmente (o prefeito a criou há apenas um ano). Sendo assim, essa secretaria ainda não está habilitada para fazer convênios, portanto, não recebe nenhum recurso específico para ser aplicado na comunidade quilombola.

Todas essas questões estão sendo levantadas no esforço de expressar que, diante da complexidade deste trabalho, o caminho é buscar uma interpretação multidimensional da realidade.

Segundo Morin (2010):

A complexidade parece ser negativa ou regressiva já que é a reintrodução da incerteza num conhecimento que havia partido triunfalmente à conquista da certeza absoluta. É preciso enterrar esse absoluto. Porém, o aspecto positivo, o aspecto progressivo que

a resposta ao desafio da complexidade pode ter, é o ponto de partida para um pensamento multidimensional. (MORIN, 2010, p. 188).

O ponto de partida é despertar para o real que se apresenta, é aceitar o desafio do conhecimento que se constitui em um universo de angústias e incertezas. Esse sentimento parece ser negativo ou regressivo porque o mundo mudou e o pensamento também tem que mudar. Concepções que até então pareciam absolutas devem ser questionadas, porque, para realidades complexas; o desafio é um pensamento também complexo.

O ponto positivo desse desafio é o emprego do método da complexidade que vai nos permitir pensar sobre os conceitos de forma a que nunca os tenhamos como concluídos: somos seres ao mesmo tempo físicos, biológicos, sociais, culturais, psíquicos e espirituais e o nosso pensamento precisa captar essas dimensões. Isso não significa que vamos dar todas as informações sobre o fenômeno que estamos conhecendo, mas temos que, no mínimo, respeitar suas diversas dimensões.

A estratégia deverá ser dialogar com o universo estudado e seguir um caminho na perspectiva de restabelecermos as articulações entre o que foi separado, na direção do saber total, não do saber completo absoluto.

Na situação da nossa pesquisa, temos que refletir sobre a vulnerabilidade social e a insegurança alimentar e nutricional, manifesta na Comunidade Quilombola Mumbuca, mas também devemos conceber esse fenômeno integrado a uma totalidade (uma comunidade tradicional inserida numa sociedade capitalista globalizada). O ponto positivo desse desafio é considerar a identidade desse grupo, sua noção de pertencimento, sem, contudo, perder de vista as relações múltiplas que o grupo estabelece no ambiente interno e externo.

Nesse sentido, é que o pensamento complexo, como possibilidade de entendimento, é dialógico e organizacional: a construção do conhecimento depende do vir-a-ser, depende da sociedade, da cultura, dos meios de que dispomos para adquirir esse conhecimento. Sendo assim, o conhecimento se auto organiza à medida que está se constituindo.

Buscaremos compreender o fenômeno que ora estamos dispostos a conhecer, sem deixar de incluir a sua relação profunda com o meio ambiente, sem perder a sua complexidade.

Essas questões serão tratadas detalhadamente nas próximas seções, nas quais haverá maior aprofundamento teórico-metodológico. A seção 2: “Território da comunidade: história, trabalho, produção e conflitos socioambientais” e a seção 3: “Mumbuca e o Capim Dourado: organização cultural e política” foram construídas a partir da pesquisa etnográfica. A seção 4: “Alimentação: a perspectiva da Comunidade Mumbuca e a presença/ausência do Estado no período de 2003 a 2010” é resultado da análise de dados da pesquisa quantitativa e qualitativa realizada nos domicílios da Comunidade Mumbuca.