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A escolha do estudo das comunidades quilombolas tem relação direta com a necessidade de trazer à tona a discussão em torno da questão das políticas públicas de segurança alimentar e nutricional em contextos específicos. No processo de criação dos marcos legais das políticas de promoção da igualdade racial, definem-se algumas prerrogativas relacionadas à realização do direito humano à alimentação. Nessa perspectiva, destacamos o decreto 4.886, de 20 de novembro de 2003, que institui a Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial. Em suas diretrizes constata-se o:

Estabelecimento de parcerias entre a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, os Ministérios e os demais órgãos federais, visando garantir a inserção da perspectiva da promoção da igualdade racial em todas as políticas governamentais, tais como, saúde, educação, desenvolvimento agrário, segurança alimentar, segurança pública, trabalho, emprego e renda, previdência social, direitos humanos, assistência social, dentre outras.25

Outro importante instrumento, utilizado principalmente pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e pela Fundação Cultural Palmares, é o decreto 4.887 de 20 de novembro de 2003, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras

25 Cf. Anexo do Decreto 4.886 de 20 de novembro de 2003, Política Nacional de Promoção da Igualdade Racial, item IV, diretrizes, incorporação da questão racial no âmbito da ação governamental.

ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos de que trata o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal.

Segundo a Instrução Normativa nº 16, de 24 de março de 2004, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária:

Art. 3º. Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida.

O Brasil é signatário da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 07 de junho de 1989, tratado internacional que foi aprovado pelo Decreto Legislativo nº 143, de 20 de junho de 2002.

A Convenção 169 da OIT tem importância para as comunidades quilombolas porque utiliza o termo “terras” incluindo o conceito de território “o que abrange a totalidade do habitat das regiões que os povos interessados ocupam ou utilizam de alguma outra forma” (Art.13, 2).

Nesse sentido, entendemos que a Convenção 169 da OIT é importante no processo de reivindicação do direito humano à alimentação adequada dos povos e comunidades tradicionais e na introdução do conceito de desenvolvimento sustentável como uma opção de desenvolvimento para o nosso país.

Com o intuito de compreendermos o conceito de povos e comunidades tradicionais, territórios tradicionais e desenvolvimento sustentável, baseamo-nos no artigo 3° do decreto 6.040 de 07 de fevereiro de 2007, que institui a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais.

Art. 3º. Para os fins deste Decreto e do seu Anexo compreende-se por:

I - Povos e Comunidades Tradicionais: grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição;

II - Territórios Tradicionais: os espaços necessários a reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos povos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que dispõem os e demais regulamentações; e III - Desenvolvimento Sustentável: o uso equilibrado dos recursos naturais, voltado para a melhoria da qualidade de vida da presente geração, garantindo as mesmas possibilidades para as gerações futuras.

O marco legal para a discussão do Direito Humano à Alimentação Adequada no Brasil é a Lei n° 11.346, de 15 de setembro de 2006 – a LOSAN (Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional) e a própria Constituição Brasileira, que, depois de aprovada a Emenda Constitucional n° 64, de 05 de fevereiro de 2010, incluiu em seu Artigo VI, a alimentação como um dos direitos sociais, fundamentais à pessoa humana. Esse marco legal é fruto de um trabalho de mobilização do CONSEA, em torno da necessidade de pautar a segurança alimentar e nutricional como prioridade do Estado Brasileiro.

Segundo a LOSAN (2006):

Art. 3º A segurança alimentar e nutricional consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras da saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis.

Importante trazer para a nossa análise a complexidade da situação de insegurança alimentar e nutricional:

[...] situações de insegurança alimentar e nutricional podem ser detectadas a partir de diferentes tipos de problemas, tais como fome, obesidade, doenças associadas à má alimentação, consumo de alimentos de qualidade duvidosa ou prejudicial à saúde, estrutura de produção de alimentos predatória em relação ao ambiente e bens essenciais com preços abusivos e imposição de padrões alimentares que não respeitem a diversidade cultural. (CONSEA, 2006, p. 4). Na pesquisa de campo realizada na Comunidade Quilombola Mumbuca foi possível auferir a situação de insegurança alimentar e nutricional no que tange ao consumo de alimentos de duvidosa qualidade. Esse dado indica um aumento do consumo de alimentos com alto teor de calorias e/ou um aumento no consumo de

alimentos de questionável qualidade, principalmente a ingestão de líquidos a base de pó solúvel, doces e balas que são doadas às crianças da comunidade pelos turistas que visitam o Povoado26. Há uma substituição progressiva de alimentos

naturais para alimentos industrializados.

Ao questionar as famílias sobre os efeitos da criação do Parque Estadual do Jalapão na produção de alimentos, muitos depoimentos apontam as dificuldades encontradas tanto para o cultivo da terra e quanto para a criação de gado: “Não pode mais fazer roça de toco, roça de brejo” (Morador 1); “Não pode tirar roça, não pode tirar um pau, não pode destruir”(Morador 26); “Antes colocava o gado em uma certa área e hoje é limitado. Não pode derrubar roça, tem que ser 10 metros longe do córrego e aí a terra já ta seca.” (Morador 4). Os moradores sentiram o impacto das ações que visam à preservação do Parque em confronto com o modo tradicional de vida da comunidade.

A fiscalização com o intuito de preservar o Parque Estadual do Jalapão, além de exagerada, tem impedido a comunidade de caçar animais que, segundo eles, eram fonte de alimento em tempos passados (a anta, por exemplo). Segundo depoimentos, a caça não era predatória porque respeitava o ciclo vital da natureza e, portanto, o equilíbrio ambiental.

Já a extração do capim dourado, incentivada pelo aumento do turismo local e pela falsa impressão de que é a única fonte de renda da comunidade, tem sido feita de forma predatória. É um produto que tem sido comprado por um baixo preço dentro da comunidade e vendido a preços abusivos por atravessadores. Essa prática não traz retorno monetário para a comunidade.

Segundo o documento - Princípios e Diretrizes de uma Política de Segurança Alimentar e Nutricional (2004):

Dois outros conceitos estão fortemente relacionados ao de SAN: o Direito Humano à Alimentação e a Soberania Alimentar. O direito à alimentação é parte dos direitos fundamentais da humanidade, que foram definidos por um pacto mundial, do qual o Brasil é signatário. Esses direitos referem-se a um conjunto de condições necessárias e essenciais para que todos os seres humanos, de forma igualitária e sem nenhum tipo de discriminação, existam, desenvolvam suas capacidades e participem plenamente e dignamente da vida em

26 Cf. Tabela 17 - Recreação e lazer das famílias da Comunidade Mumbuca no ano de 2003 e 2010.

sociedade. Cada país, por sua vez, tem o direito de definir suas próprias políticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos que garantam o direito à alimentação para toda a população (soberania alimentar), respeitando as múltiplas características culturais dos povos. (CONSEA, 2004, p.4).

O Brasil é signatário da Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, desde março de 1968, mas somente a partir da publicação da nova Constituição Federal em 1988, houve o reconhecimento de que as populações negras brasileiras devem ser livres, tratadas com dignidade, justiça e equidade. Sendo assim, quando pensamos no conceito do direito humano à alimentação e à soberania alimentar, sem nenhum tipo de discriminação entendemos que cabe ao Estado brasileiro impedir que uma pessoa oriunda da população negra sofra qualquer tipo de discriminação no acesso ao alimento saudável.

Nessa mesma linha de raciocínio, o princípio da soberania alimentar pressupõe que cada país tem o direito de definir suas próprias políticas e estratégias sustentáveis de produção, distribuição e consumo de alimentos que garantam o direito à alimentação para toda a população. É inadmissívelque as comunidades quilombolas estejam constantemente ameaçadas pelo emprego de venenos nas práticas agrícolas feitas pelos fazendeiros vizinhos (é o caso da produção da soja no Estado do Tocantins e do cultivo de eucaliptos no Estado do Espírito Santo); ou pela utilização de organismos geneticamente modificados (como a ameaça às sementes crioulas no Rio Grande do Sul).

Entendemos que a soberania alimentar brasileira, ligada à segurança alimentar e nutricional das comunidades quilombolas depende, dentre outros fatores, da execução das políticas que estão relacionadas ao artigo 68 do ADCT que estabelece que “Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos”, e aos artigos 215 e 216 da Constituição Brasileira, que tratam respectivamente, da proteção das manifestações culturais afro- brasileiras; e do patrimônio cultural brasileiro, que deve ser promovido e protegido pelo poder público, os bens de natureza material e imaterial.

No quadro abaixo, algumas ações previstas no orçamento plurianual 2008/2011:

QUADRO 1 - PROGRAMAS E AÇÕES DE SAN VOLTADAS PARA POPULAÇÃO AFRO- BRASILEIRA E PARA COMUNIDADES QUILOMBOLAS PREVISTAS NO ORÇAMENTO PLURIANUAL 2008/2011 MONITORADAS PELO CONSEA

Código do Programa

Denominação do

Programa Órgão Código da Ação Denominação Ação 2008 Unidade Executora

1427 Assistência Técnica e Extensão Rural na

Agricultura Familiar MDA 8358

Assistência Técnica e Extensão Rural para Comunidades

Quilombolas MDA

0172 Cultura Afro-Brasileira MinC 8053 Fomento a Projetos da Cultura Afro-Brasileira F.C. Palmares

0172 Cultura Afro-Brasileira MinC 6621 Comunidades Remanescentes de Etnodesenvolvimento das

Quilombo F.C. Palmares

0172 Cultura Afro-Brasileira MinC 6531 Promoção de Intercâmbios Culturais Afro-Brasileiros F.C. Palmares 0172 Cultura Afro-Brasileira MinC 8069 Pesquisas sobre Cultura e Patrimônio Afro-Brasileiro F.C. Palmares 0172 Cultura Afro-Brasileira MinC 2A86 Proteção aos Bens Culturais Afro-brasileiros F.C. Palmares

1141 Cultura Viva - Arte, Educação e

Cidadania MinC 2948

Capacitação para Ampliação do Acesso à Produção, Fruição e

Difusao Cultural MinC

1145 Comunidades Tradicionais MMA 6230 Gestão Ambiental em Terras Quilombolas SDS/MMA 1336 Brasil Quilombola SEPPIR 8936 Sustentável das Comunidades Apoio ao Desenvolvimento

Quilombolas MDA

1336 Brasil Quilombola SEPPIR 8957 Apoio ao Desenvolvimento da Educação nas Comunidades

Remanescentes de Quilombos FNDE/MEC 1336 Brasil Quilombola SEPPIR 1642 Titulação de Áreas Remanescentes Reconhecimento, Demarcação e

de Quilombos INCRA

1336 Brasil Quilombola SEPPIR 6440 Fomento ao Desenvolvimento Local para Comunidades Remanescentes

de Quilombos SEPPIR

1336 Brasil Quilombola SEPPIR 8215 Atenção à Saúde das Populações Quilombolas FNS/MS

1336 Brasil Quilombola SEPPIR 8589 Representativos das Comunidades Capacitação de Agentes

Remanescentes de Quilombos F.C. Palmares

Fonte: CONSEA, 2010. Orçamento de Segurança Alimentar e Nutricional pelo CONSEA (PPA 2008- 2011). Planilha produzida pelo CONSEA com dados fornecidos pela Secretaria de Orçamento Federal/Ministério do Planejamento - SIAFI/SIDOR/SIGPLAN - Ministério do Planejamento.

O quadro 1 prevê algumas ações e programas de SAN voltadas para as comunidades quilombolas e para a população afro-brasileira (termo utilizado pelo Ministério do Planejamento). Os dados da planilha foram retirados do site do CONSEA e constituem-se em dados parciais da planilha original fornecida pela Secretaria de Orçamento Federal/Ministério do Planejamento. Esses dados serão

utilizados na seção 4, quando serão discutidas as ações, programas e políticas públicas que estão sendo implementadas na Comunidade Mumbuca.