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Assepsia da Letra e infiltração significante

No documento UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO (páginas 176-182)

4 AMIGA LEITORA: FEMINILIDADE COMO MASCARADA EM

4.4 A escrita da leitora em “ Claudia Responde”

4.4.1 Assepsia da Letra e infiltração significante

Higienizada e livre do significante, abre-se a palavra-comunicação plena, recurso a serviço da comunicação por supostamente deixar o significante e tudo que nele se fia de fora da mensagem envolvida nessa relação de correspondência. Ao se tentar livrar a carta da significância, tenta-se também conter a fertilidade de sentidos, por isso as respostas deveriam ser diretas e conduzir à eliminação das dúvidas trazidas pelo remetente, que a seu modo também estruturava suas dúvidas de maneira objetiva.

Nota-se, por exemplo, esse expediente de estruturação da demanda pela via objetiva em uma carta veiculada na edição de “Claudia responde” de março de 1964; nesta, a leitora revela sua questão: “O problema em que me debato resume-se em uma palavra: insegurança” (Claudia, 1964, p. 15). A inicial objetividade da leitora, entretanto, não se sustenta ao longo da mensagem, pois continua: “[...] falta de coragem para defender as próprias opiniões, mutismo perto de pessoas com personalidade mais forte, nenhum espírito esportivo...” (Claudia, 1964, p. 15).

Na edição de agosto de 1964, lê-se o título “Como reter um marido em casa?” associado à carta de uma leitora preocupada com a ausência do marido: “Penso que sua falta em casa trará

consequências na formação de nossos filhos, porque é necessária a presença atuante do pai” (Claudia, 1964, p. 6). É interessante perceber que também a leitora/remetente revela um saber que transita em sua carta/demanda: um saber acerca que, embora seja construído a partir dos papéis sociais que são destinados ao feminino e ao masculino194, não se pode dizer que não denote algo de uma criação particular, o que, de saída, nos permite considerar que há um trânsito desses significantes que visam dar conta da feminilidade e que, portanto, as versões de feminino não são forjadas apenas por Claudia, pois há um saber em trânsito e isso se revela na correspondência entre revista e leitoras.

Analisar essa correspondência nos permite pensar que as versões de feminino que transitam por Claudia são compartilhadas e construídas não apenas pela equipe editorial, mas numa relação dialógica forjada pela dialética escrita/leitura. De objetivamente formulados, os títulos das cartas das leitoras foram se tornando mais subjetivos, já que havia um interesse em resumir em determinadas expressões o dilema vivido. Em um exemplar de 1966, há títulos como “Filho que rouba”, “Filho efeminado, Mêdo de casar” e “Mêdo da realidade”; em maio de 1966, figuram “O fim de um amor”, “Irmã quer educar”, “Timidez traz solidão” e “Filhos egoístas”.

A intrusão de um título, de um enunciado atrelado às cartas, nos faz pensar em tentativas de conter, pela via da linguagem, uma demanda de amor que se revela nessa escrita das leitoras, alçadas, pela carta que redigem, à posição de artífice da letra. Podemos inferir que nessa transposição do lugar de leitora para o lugar de quem escreve muito se desloca e se transforma, possibilitando um saber-fazer com essa letra de feminino, facultando que se burile e se jogue com os significantes da feminilidade. Pensar dessa forma nos faz recusar a ideia de uma comunicação de mão única que colocaria a revista como Outro absoluto a quem cabem os códigos da feminilidade; pensar assim faria da leitora passiva e do ato de leitura uma atividade mecânica centrada meramente na absorção de significados.

Não é senão a partir de Lacan que compreendemos que também o Outro é oco, vazio, e que nada em seu comportamento é confiável; assim, os significantes transitam e o sujeito pode fazer algo com seu desejo, pode infiltrar os enunciados. Transportando essa lição lacaniana para a nossa questão, parece-nos reducionista a ideia de que há uma versão forjada apenas pela revista, por seus editores e redatores que escrevem respostas em “Claudia responde”, ou mesmo por Carmen da Silva, pois entendemos que há um sujeito que, embora não seja portador de

194 O ambiente doméstico, âmbito a que muitas das donas de casa da década de 1960 se restringem, é frequentemente tema das cartas endereçadas à Claudia, assim como os desencontros com o marido, não raramente tomado como um hóspede do lar, e os conselhos relacionados aos cuidados com beleza e saúde.

nenhuma mensagem – haja vista que toda mensagem vem do Outro que responde a uma demanda embutida na carta remetida –, contribui com o que tem à mão para a versão de feminino. É por isso que a leitora nunca será necessariamente passiva ao que lê e uma escrita nunca será puramente ornamental; isso nos faz desconfiar imediatamente de toda escrita destinada ao entretenimento e, por sua vez, de toda leitura aprazível.

Vislumbramos assim uma possibilidade de analisar essa relação entre a leitora e o editor a partir dessa seção de cartas. Contudo, o título “Claudia responde” anuncia e tenta evidenciar que há uma relação de saber cujas personagens estão definidas de maneira clara: existe um destinatário dessa carta que sabe sobre tudo – Outro do código – e há quem lhe demanda uma resposta, uma leitora remetente – a demanda da leitora pode ser pensada também como a demanda da histérica, uma demanda de amor ao editor que se coloca ao modo de um “analista selvagem”.

Sob o título “Quando não há amor”, uma leitora, usando o pseudônimo de Mme. Bovary, apresenta seu drama à Claudia:

Casei-me há 13 anos. Desde o começo não concordo com meu marido pelo seu modo de querer impor-me toda a sua autoridade. Casei-me, talvez, por não querer ficar para “titia” [...] tenho a impressão que vivo num pesadelo... será

que haverá remédio para a minha ruína?... (Claudia, agosto de 1964, p. 9).

A resposta à carta da leitora vai na direção de uma interpretação que nos permite pensar a respeito na figura do editor; este emite respostas às cartas como um analista possível, questionando e interpretando os “dramas metapsíquicos” dos quais Carmen da Silva se ocupa em sua escrita – um analista que habitaria esse abstrato “consultório sentimental”:

Ninguém é déspota se não encontra outra pessoa disposta a assumir o papel de vítima [...]. Tendo-se casado friamente, você dá a ele a submissão para compensar o desamor, sujeição em vez de afeto, e com isso, ao mesmo tempo, se castiga a si mesma. E curioso que você tenha escolhido esse pseudônimo. Quanto há de Mme. Bovary em você? Quanto há de necessidade de ser

dominada e vigiada para não cair precisamente no “bovarismo”195? (Claudia,

agosto de 1964, p. 9).

Essa figura do redator que responde a partir da posição de Outro nos remete a uma interpretação, e assim podemos também refletir se há histericização do discurso da leitora na elaboração de uma demanda, uma demanda nitidamente feminina. Sabemos que, postos em uma balança, há dois saberes concernentes a dois discursos, e nisso imaginamos que haja um

195 De acordo com Kehl (1996, p. 102), o termo bovarismo, criado em 1902 pelo psiquiatra Jules de Gaultier, surgiu como uma solução para abarcar as insatisfações e frequentes frustrações relacionadas à subjetividade feminina, que diziam respeito, na verdade, à condição feminina.

discurso que remete a uma histericização de um desejo, e outro que se pretende um discurso que sobrevive ao teste da Verdade, aquele que se impõe para “manter as redes bem firmes e aguentar o complô da verdade” (LACAN, 2012, p. 115). Alude-se assim ao “semblante do discurso” (LACAN, 2012, p. 13).

Temos então uma leitora remetente de cartas, carregando consigo um discurso que a coloca em uma posição determinada; nesse ponto é possível fazer menção ao discurso que circula pelos boulevards modernos, afeito ao mascaramento, sustentado pelas mulheres forjadas pela escrita literária, um discurso comum às figuras ficcionais que aprendemos a associar à condição feminina, muito semelhante ao que se aprendeu a identificar com frequência – e muitas vezes inadvertidamente – à histérica.

Essa condição feminina equivale a uma posição específica diante da castração, por isso ressalte-se o condicional que esta representa e para o qual o feminino paga seu tributo. Nisso coincidem Madame Bovary, Sofia de Rousseau, Charlotte de Goethe. Enfim, poderíamos mencionar tantos outros nomes de mulher que a literatura criou para dizer de uma condição feminina que se eterniza por ser excessivo, afeito a arroubos, paixões e todas as desmesuras pulsionais, uma feminilidade quase sempre devastadora em seu excesso.

Não é por acaso que esses nomes próprios de mulher que a literatura forjou frequentemente servem de pseudônimos às mulheres contidas no conjunto de leitoras de

Claudia. Ao assumirem a posição de escritoras, as leitoras passam a lidar de forma diferente com a letra: já não são apenas leitoras, escrevem suas cartas com os significantes de feminilidade imiscuídos às dúvidas e as constantes demandas de aconselhamento endereçadas à “Claudia responde”, sob o subterfúgio do anonimato representado pelo uso ora de pseudônimos, ora da assinatura por iniciais.

Essa feminilidade mascarada pelo anonimato aparece em muitas cartas publicadas por “Claudia responde”; isso não nos parece um fato irrelevante para o que buscamos analisar aqui. Muitos desses pseudônimos não são necessariamente nomes de mulher que ficaram famosos e eternizados pela literatura, como é o caso de Madame Bovary ou Alice no país das maravilhas, mas revelam um saber que não se sabe. Lê-se uma carta assinada por “Indecisa”, há inclusive uma carta assinada por “Qualquer pseudônimo(Claudia, 1966, p. 7). Na edição veiculada em dezembro de 1966, aparecem ainda sugestivos pseudônimos, como “Garota Confusa” e “Lamparina”.

O que a carta assinada por pseudônimos significa? É uma pergunta a que dificilmente podemos responder sem fazer alusão à ideia de uma feminilidade nociva, por isso o providencial mascaramento pela via do pseudônimo ou mesmo pelo uso de somente uma letra ou algumas

letras, referências a um nome próprio feminino que não cessa de não se escrever. Isso é interessante porque faz referência aos desenvolvimentos lacanianos a respeito do feminino e, ao mesmo tempo, nos remete à dialética do escravo e do senhor.

O pedido frequente que a redação de Claudia fazia, sempre ao final da seção “Claudia responde”, para que as leitoras – mascaradas ou não pelo anonimato – lhe enviassem seus endereços196 não pode ser menosprezado, pois está em jogo um saber. Diante do recebimento de tantas cartas que traziam os chamados “assuntos delicados”, impublicáveis, desprovidas, no entanto, dos dados do endereço do remetente, havia o pedido expresso: “Mande-nos seus endereços!”; somente assim as respostas de Claudia chegariam às leitoras supostamente paralisadas por um “não saber fazer” com a feminilidade. Mas há, de fato, um não saber na remetente da carta? Responder a essa questão nos leva a compreender o motivo de tantas cartas sem endereço das remetentes.

Essas cartas de mulher portam significantes que ao se disponibilizarem para a escrita apontam para um limite a partir do qual nada mais poderia ser escrito ou nada mais que a linguagem poderia dizer. Isso nos faz crer que não há carta suficiente para comportar esses significantes que insistem em faltar, por isso é a falta o que se denomina suplemento feminino, como nos diz Lacan: “a mulher, a verdadeira, a mulherzinha, esconde-se justamente atrás dessa falta” (LACAN, 2012, p. 17). Por isso – acrescentamos –, as cartas nunca deixam de ser escritas e persistem mesmo que não sejam suficientes para dizer tudo. Por isso sempre se tenta dizê-lo e por isso a letra insiste.

Nesse ponto podemos fazer menção a um episódio interessante para ilustrar essa insistência da letra/carta. Trata-se de uma entrevista da atriz Elsa Martinelli, considerada um exemplo de mulher libertária e vanguardista na década de 1960. Desde a sua veiculação, em fevereiro de 1966197 até agosto do mesmo ano, a entrevista causou repercussão em “Claudia responde”, mostrando que a letra insistia em um escrever sobre a feminilidade – insistia num significante que diga sobre a feminilidade, pode-se pensar a partir da alusão constante a Elsa Martinelli, segundo Claudia, “a mulher ideal para uma conversa sobre a moral e a liberdade das mulheres hoje” (Claudia, 1966, p. 43).

196 “E aqui estamos de novo eu, com uma imensa vontade de responder às cartas, e vocês esqueceram-se de dar endereços. Assim, mande-nos com brevidade, se for possível” (Claudia, 1964,p. 15).

197 Junto ao sugestivo título “Elsa Martinelli sem meias palavras”, lê-se “Frágil é o homem” (Claudia, 1966, p. 43); A atriz é introduzida à leitora como “a mulher que sabe ser livre e independente, a ponto de nem encarar o homem de igual para igual, [...] olha para o outro sexo, não do alto de uma pirâmide, mas de um degrau acima” (Claudia, 1966, p. 43).

Em “Claudia responde” de abril de 1966, uma leitora escreve à redação: “Gostaria de dar meu parecer sobre a reportagem com Elsa Martinelli... Não sou conservadora, mas acho que todas as coisas precisam de uma norma. Se todas as mulheres pensassem como Elsa, o casamento seria inútil”. (Claudia, 1966, p. 4).

A repercussão à entrevista de Martinelli é tanta que nos permite questionar o que essa mulher ideal, com sua feminilidade considerada libertária – excessiva –, provoca nas leitoras que insistentemente escrevem cartas por vários meses para dizer algo que certamente é a ressonância de uma leitura aberta a equivocidades. O fluxo de cartas remetidas à redação de

Claudia justifica que a seção de “Claudia responde”de maio de 1966 seja totalmente dedicada às cartas sobre a polêmica entrevista e receba o título “Aprovada a coragem de Elza. Alguém contra?” (Claudia, 1966, p. 4)198.

Os efeitos da entrevista, se não podem ser considerados efeitos da escrita de uma mulher, podem ser tomados como efeitos de uma feminilidade que se revela e se denuncia pela fala que, por sua vez, é transposta em escrita pela jornalista que a edita. Há, como se nota, uma feminilidade nociva a ser transposta em letra, a qual se prestará à leitura com todas as implicações que isso acarreta: o sentido funcionando como mais-além de significado, fazendo da leitura algo completamente diferente de uma atividade apaziguadora.

Dessa forma, é compreensível que as cartas remetidas à redação de Claudia que tinham como objeto a entrevista da atriz variem bastante entre as leitoras: “adorei a sinceridade dela [...] 97% das mulheres de hoje são falsas”199 (Claudia, maio de 1966, p. 4); “estou do lado de Elza a respeito da feminilidade e dos homens. Realmente, a mulher para ser feminina não é preciso que use vestidos, sapatos de salto, maquilagem, que vá ao cabeleireiro” (Claudia, maio de 1966, p. 4). Há inclusive cartas de leitoras comentando as opiniões presentes em outras cartas remetidas à seção “Claudiaresponde”:

Com referência ao debate sobre Elza Martinelli, acho que a leitora Nair (Claudia, nº 56) tinha todo o direito de defender a atriz, porém, nunca de maneira como o fez. Ela afirmou categoricamente que 97% das mulheres de

198 Em agosto de 1966, “Claudia responde”recebe o título de “A coragem de Elza”. Nesta edição, o nome Elza aparece grafado com “Z”. Claudia sugere que o debate acerca da entrevista da atriz deve ser mantido: “O debate em torno da entrevista de Elza Martinelli está, então, pegando fogo. Ótimo. E que continue. Só tenho uma observação [...]. Claudia não faz propaganda da liberdade sexual. Claudia só faz propaganda da liberdade de se pensar – e dizer o que se pensa – sobre quaisquer temas, principalmente os mais cercados de tabus e meias palavras. Por isso, publicou a entrevista de Elza; por isso, publica as reações aos pontos de vista da atriz” (Claudia, 1966, p. 4).

199 Prossegue a leitora: “[...] Mentem e escondem tudo. Fazem exatamente o que julgaram que as outras fizeram de errado. Mas as outras são sinceras [...]. A mulher hoje precisa do homem apenas biologicamente ou como companheiro, não como ‘senhor proprietário’ ou o ‘tratador da fêmea-mulher’” (Claudia, maio de 1966, p. 4).

hoje são falsas? Não creio que esse dado seja fruto de alguma pesquisa. (Claudia, agosto de 1966).

Sem dúvida, menções a outras cartas sobre a entrevista de Martinelli poderiam ser feitas

aqui, mas a quantidade de fragmentos dessas mensagens endereçadas à “Claudia responde” é

menos importante do que a compreensão do que é subjacente ao episódio Elsa Martinelli: a não suficiência da carta/letra, a troca de argumentos entre leitoras-escritoras, o texto de fruição em que a entrevista se transforma apontam para esse excesso no dizer, para a falta de objetividade na escrita que nada mais anuncia do que a falta de funcionalidade do significante sobre a feminilidade. Por mais que “Claudia responde” edite-as colocando-lhes um título-tema, por mais que as leitoras tentem – os significantes voam nessa relação de suposta correspondência e as cartas valem mais pelo que visam aprisionar.

No documento UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PERNAMBUCO (páginas 176-182)