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Em 1997, eu editava o informativo Ìrohìn, na etapa anterior a sua transformação em tablóide, quando fui convidado pelo deputado Paulo Paim para retornar à Câmara dos Deputados. Após a Marcha Zumbi dos Palmares, de 1995, eu me concentrara em duas ideias: o acompanhamento legislativo e administrativo e a capacitação de entidades do Movimento

Negro para o novo momento de conquistas institucionais64. O convite de Paim era, sinal dos tempos pós-Marcha, para assessorá-lo na Terceira Secretaria da Mesa Diretora.

Como terceiro-secretário, Paim poderia dispor de meios para contratar assessores especializados e o que combinamos foi que eu me dedicaria exclusivamente à temática racial. Seria, portanto, assessor de relações raciais, a forma mais palatável, digamos assim, que encontramos para justificar a contratação. O que não impediu que, de todas as assessorias propostas por Paim, a única a encontrar resistências da Liderança do PT (o líder na ocasião era José Genoíno) foi a minha.

Em razão mesmo das resistências, fiz imprimir um cartão de apresentação com a indicação de meu cargo na Terceira Secretaria: assessor de relações raciais. E seu teor provocava perplexidades e indagações curiosas, algumas agressivas. Minha contribuição efetiva durante os dois anos que durou o mandato de Paim na Mesa da Câmara foi trabalhar no sentido da cotidianização do tema racial, de uma perspectiva negra, e abrir o leque de iniciativas legislativas, aproximando-as das pautas do Movimento Negro.

Em 1997, o calendário de datas comemorativas e de denúncias do Movimento Negro (MN) já havia conquistado espaço de registro na tribuna do Plenário: 21 de Março, 13 de Maio, Revolta dos Malês, 20 de Novembro. Mas faltavam pontos importantes da agenda política do MN e o registro das discriminações cotidianas, algumas delas, sua parte ínfima é verdade, com registro jornalístico.

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O editorial da primeira edição do Ìrohìn “Novos e mais complexos desafios” foi divulgado em sua capa e foi assinado por mim e mais Hédio Silva Júnior e Maria Aparecida Silva Bento (Ceert-SP) Sueli Carneiro (Geledés- SP), João Carlos Nogueira (NEN-SC) e Ivanir dos Santos (CEAP-RJ). Um trecho: “Assim é que o binômio lutas sociais/conquistas institucionais revela-se particularmente verdadeiro ao estágio atual da luta contra o racismo no Brasil. Tomados em conjunto, esses dados não apenas situam a capital administrativa do país como locus privilegiado da ação política, assim como colocam para o Movimento Negro o desafio de atuar no sentido de que as conquistas institucionais se traduzam em direitos efetivamente exercidos e em avanços econômicos e sociais para o nosso povo. Movidos por essa possibilidade, tomamos a iniciativa de potencializar um Escritório de Acompanhamento das Iniciativas Legislativas e Administrativas, em Brasília, com o propósito de divulgar amplamente informações, subsidiar a ação das entidades negras, desenvolver um programa de formação que capacite a militância para a intervenção no plano institucional e fomentar a produção sobre legislação e políticas públicas”. Ìrohìn. Brasília, ano I, nº 1 maio/junho de 1996. Conseguimos, nós do Ìrohìn, recursos junto à Fundação Ford, ao Ministério do Trabalho e à Fundação Cultural Palmares para realizar três etapas do Curso de Capacitação em Administração Pública da Comunidade Afro-brasileira (1998, 1999 e 2001). Ao todo foram 90 representantes de entidades negras de 21 estados e os conteúdos versavam sobre orçamento, teoria geral do Estado, direito constitucional, fiscal e tributário, e políticas públicas. Os cursos foram realizados na Escola Nacional de Administração Pública, onde os bolsistas ficavam hospedados durante três semanas. A coordenação geral foi de Regina Adami e contamos com a consultoria do CIASH (consultoria, Investigação e Assessoria nas Áreas Social e Humana). O pioneirismo da iniciativa foi registrado por LundeBraghini em reportagem que publicou no “Jornal de Brasília”, Militando com a política na pele. edição de 23/11/98, p.3.

Abdias do Nascimento havia feito, de 1983 a 1986, um mandato exemplar, incorporando o cotidiano opressivo da população negra a seus discursos e iniciativas. Paulo Paim era um combativo sindicalista, mas com formação muito distinta de Abdias. Paim acompanhava de perto a importância crescente do tema e sabia de seu significado para parte importante de seu eleitorado no Sul – isso justificava a contratação de um assessor. Masele era também muito sensível às resistências que se opunham a um tratamento prioritário à luta contra o racismo. Afinal, seu eleitorado não era constituído apenas de eleitores negros.

Creio que temia comprometer-se demasiadamente com o tema, ao ponto de prejudicar o diálogo com os brancos à frente de sindicatos e federações que o apoiavam. Ele sempre buscou compensar seu isolamento na bancada e no partido com uma intervenção de mídia extraordinária e um leque diversificado de temas de movimento social. O fato de priorizar os ganhos reais para o salário mínimo e as reivindicações de aposentados (bandeiras diretamente relacionadas com a população negra) de algum modo, em sua própria consciência, compensavam sua timidez e uma espécie de “morde e assopra” para fazer o enfrentamento ao racismo.

Dependendo, portanto, do tom do pronunciamento que eu fizesse, ele subia à tribuna, fazia um breve resumo, como quem lê uma ementa, e dava o pronunciamento por lido. Isso aconteceu muitas vezes. Mais tarde, no biênio 2002-2003, quando se elegeu senador pela primeira vez, voltei a assessorá-lo na Primeira Vice-Presidência do Senado e era a mesma dificuldade para a manifestação de uma consciência crítica, de uma perspectiva negra, que não tivesse tanta satisfação a dar. Não foi diferente com Ben-Hur Ferreira, outro parlamentar negro do PT que assessorei na Câmara.

No exercício do mandato, o político profissional negro move-se com tantos cuidados e cálculos que a temática racial, creio eu, lhes parece quase sempre regida por diretivas que se opõem a sua sobrevivência eleitoral.

Ao mesmo tempo em que precisam abordá-la, por demandas da conjuntura e por imposições a partir de dentro, precisam ter cautelas tanto com os intelectuais orgânicos do MN, como disse certa feita Benedita da Silva, quanto com os valores da cultura política predominante entre nós. Valores que somente podem ser contrastados, da perspectiva do político negro profissional, dentro de limites muito estritos.

Eles parecem saber bem em que terreno estão pisando. Há, de fato, um temor imposto de fora, que é tanto mais intimidador, quanto mais frágeis são as debilidades do MN. Sem nem ter o apoio de sua própria bancada, o político negro teme, no fundo, ser rotulado como um político que não trata das “grandes questões nacionais” e sim de grandes questões psicológicas, subjetivas.

Não é minha intenção que essas reflexões de algum modo possam sugerir que os anos de parlamento, especialmente na assessoria de Paulo Paim, foram pouco fecundos. Ao contrário, a aprovação da Lei 9. 459, de 1997, que inseriu no Código Penal a injúria racial, os projetos de lei (saúde, mercado de trabalho, meios de comunicação, que darão origem ao Estatuto da Igualdade Racial), os pronunciamentos, artigos e seminários contribuíram para impulsionar o tema dentro e fora do Congresso.

Paim sempre soube que não se alcançariam esses resultados sem a incorporação de uma cultura militante. E eu penso tê-la representado bem. A questão é que eu colocava as tarefas relacionadas ao enfrentamento ao racismo no plano das necessidades imprescindíveis e inegociáveis. E era preciso enfrentar o controle institucional, o controle partidário, o jogo do próprio parlamentar, concedendo e obtendo.

Em 1998, fiz um giro de palestras sobre racismo em cidades do interior do Rio Grande do Sul,65 começando nas proximidades de Porto Alegre e terminando em Santana do Livramento. Numa noite chuvosa de junho, no horário da novela, surpreendi-me com o público que lotava o Cube Farroupilha, um dos muitos clubes sociais negros do estado. Vejamos o registro feito por um jornal de Rivera, a cidade uruguaia vizinha:

Apoyado por elDiputado Paim, el sociólogo Cardoso vienedesarrollando uma serie de conferencias por todo Rio Grande do Sul, em las que da a conocerlos grandes hitos históricos protagonizados por losdescendientesdelAfrica Negra, así como elestudio comparado com otrasnaciones, como Estados Unidos y Sudafrica, donde el problema del racismo há asumido dimensiones trágicas y espectáculares, en vários momentos delactualsiglo XX.

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Divulgar a Lei 9.459, que criou a injúria racista, era a razão ostensiva da primeira série de conferências em municípios gaúchos. O pretexto, em 2003, na assessoria da Vice-presidência do Senado, num segundo giro, era a divulgação do projeto que criava o Estatuto da Igualdade Racial. Mas era preciso falar da recente sanção da Lei 10.639, que alterava a LDB, e, quando fosse o caso, como em Bagé, fazer referência ao estabelecimento de cota para negros nos concursos municipais (ver reportagem do Correio do Sul, edição de 02/10/03, p..3, “Audiência debate questão racial”) .Foram visitados , em duas semanas, 12 municípios gaúchos, com uma rede de apoio montada pelos Agentes de Pastoral Negros (APN’s).

Pero además de lagranerudición ideológica y científica de lãs exposiciones, Edson Cardoso, expresamentelodijo, tieneel propósito de incitar y motivar, a lãs propias comunidades negras de cada município y lugar que visita, a tomar consciência de que es necessário luchar decididamente contra el racismo dominante y lospreconceptos com los que ideologicamente, lasclases dominantes vienenejerciendosu hegemonia y opresión.66

Numa assessoria parlamentar, uma postura militante que busca mobilizar os negros para o enfrentamento ao racismo nem sempre é uma conduta apropriada aos objetivos predominantemente eleitorais. Eu buscava exercer o meu papel de intelectual público, deixando claro que a opressão política e econômica não podia ser justificada por uma presumida

“inferioridade cultural”, decorrente de inferioridade congênita. Era preciso travar a luta nas práticas reais do município, valorizando a rica memória de resistência do estado. Beneficiava o “mandato”, uma pregação dessa natureza? Claro que sim, mas o entendimento corriqueiro é de que a mensagem se dissipa e enfraquece.

Como se diz, produzimos também coisas boas. Mas a sensação geral para mim é a de um tipo especial de engano demagógico. Especial porque não havia a ausência total de compromisso, a assessoria estava lá, os discursos e os projetos e os eventos e tudo o mais. Mas estavam lá contanto que – ou seja, sob condição. Qualquer sinal de desagrado, real ou imaginário, dá-se por lido o pronunciamento como quem se livra de uma batata quente, abandona-se a mesa de seu próprio evento alegando-se compromisso inadiável, desmarca-se o combinado. Um tipo de medo, às vezes muito conveniente e oportunista, que tornava a dimensão política, a dimensão por onde se deve começar, ainda muito distante de nós.

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“El racismo brasileño, secuelas de 350 años de esclavitud y las alternativas de la resistência”. Norte – Diario Regional de laMañana. Viernes 12 de junio de 1998, p. 5. Ed.nº 11.499.

Capítulo IV

DIMENSÃO EDUCACIONAL DO MN

1. Agitação e propaganda

A partir de 1984, me senti à vontade para proferir palestras sobre racismo e desigualdades raciais em escolas, colégios e faculdades do Distrito Federal. À medida que estudava e acumulava experiências, fui reforçando convicções próprias e criando meu próprio jeito de me desincumbir de uma tarefa que sempre considerei de importância fundamental.

Habitualmente atento ao conteúdo dos meios de comunicação, o que incluía novelas, anúncios, cartazes, outdoors, o noticiário local e nacional, fontes inesgotáveis de situações de discriminação racial, eu trabalhava sempre com a moldura da mídia. Colhia e criticava um fato do dia ou recente, para estabelecer contatos imediatos com o público de palestras e oficinas.

Fui favorecido, sem dúvida, nessa tarefa pelo estímulo à leitura e interpretação que tive na minha graduação em Letras, na Universidade Federal da Bahia, nos idos de 70. E pelo exercício da atividade docente.

Rascunhava um roteiro, carregava livros, revistas, jornais e me entregava à magia da linguagem. Evitei também o uso de gráficos, tabelas, a monotonia das exposições acadêmicas. Do mesmo modo preferi sempre esquivar-me da leitura e do uso de projetores e telas. Para mim valia o “quanto mais emoção, mais verdade”, que eu havia lido numa quadrinha de um poeta alemão. Li palestras em raríssimas ocasiões, o que não quer dizer que não as preparasse com antecedência.

Poderia recorrer, e o fiz muitas vezes, à leitura de fragmentos, que ia encaixando como motes para serem glosados. A experiência foi me trazendo as cautelas necessárias e procurava de antemão responder a perguntas que ainda não tinham sido formuladas, mas certamente o seriam.

Há um rol dessas objeções marotas, bem conhecido entre a militância: a inexistência da raça, a miscigenação que impede identificar negros, os negros que discriminam negros, os

negros é que escravizaram os próprios negros, o problema do Brasil é a pobreza, o racismo ao contrário, a afrodescendência de todos os brasileiros, as cotas são uma forma de privilégio, em detrimento do mérito, etc.

Dediquei-me a essa atividade por mais de trinta anos e percorri um bom pedaço do país. Falei em canteiros de obras da Novacap, no DF, em comunidades quilombolas do Vale do São Francisco, para trabalhadores rurais em Rondônia, no Palácio do Planalto, numa praça em Itaquera (SP), no rádio e na TV, em palanques, em salas de aula, em auditórios, na Câmara e no Senado, em Câmaras de vereadores e Prefeituras, em universidades, em partidos, em seminários e congressos. Nunca recusei um convite para falar sobre racismo e desigualdades raciais, onde quer que fosse, e me impus a tarefa como um compromisso de cunho social e político.