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Florestan Fernandes deixava as pessoas a sua volta completamente à vontade, no gabinete e fora dele. Suas delicadezas incluíam o pessoal da limpeza, geralmente invisíveis para os demais parlamentares, e os adversários ideológicos. Ele se curvava diante das mulheres, todas, sempre galante.

Não me deixava contribuir para o PT com parte do meu salário, como era de praxe nos gabinetes. Ele dizia aos cobradores do partido que eu não era mais filiado ao PT e que já contribuía para o movimento negro.

Nunca reprimiu a leitura, ao contrário, a estimulava com um ou outro comentário. E todos o chamavam de “Professor Florestan”.

“Você não precisa pedir autorização para isso, pegue as passagens e vá”. Era assim que ele respondia, quando havia alguma urgência, como quando aconteceu o assassinato de dois filiados ao MNU no Rio de Janeiro, e era preciso viajar imediatamente.

Não participava do troca-troca das emendas parlamentares, que repudiava com veemência, e defendia um congresso unicameral, sem revisões e controles. Era também firme defensor do parlamentarismo. Mesmo abatido pela doença, seguidas vezes o levamos às pressas para o Serviço Médico, era o primeiro a chegar às reuniões da Comissão de Educação.

Do gabinete seguia para a “Folha de S. Paulo” o texto de sua coluna semanal, via fax. Ele o escrevia à mão e repassava para que o inseríssemos na lauda da Folha, de que tínhamos cópias no gabinete. Era impressionante sua precisão e controle dos limites editoriais e na maioria das vezes ele cobria exatamente as 23 linhas da lauda. Quando isso não acontecia, ele pedia para que cortássemos o excesso e voltássemos com o texto enxuto, para uma última revisão. Ele não gostava nunca de “cortar” o próprio texto.

Almoçávamos juntos no restaurante natural da Câmara e sempre penso que escapei de riscos mais graves à saúde, no período, por ter parado de fumar e me submetido à dieta rigorosa do professor Florestan. Nas conversas durante o almoço ele preferia falar do passado mais ou menos remoto: a infância dura, os esforços para dar continuidade aos estudos, as mudanças por que passou a cidade de São Paulo, seu interesse pelo cinema.

Era capaz de perceber os mais leves sinais de preocupação na fisionomia dos que estavam a sua volta e, em seguida, chamava o funcionário a sua sala e perguntava-lhe o que estava acontecendo, oferecendo-se de imediato para ajudar. Fazia isso sempre de modo delicado e afetuoso, voz baixa, porta fechada.

Seu distanciamento do Partido dos Trabalhadores vinha se acelerando após a realização do I Congresso (1991) e era visível para todo mundo a forma como a bancada o deixava de lado. O pretexto público eram suas debilidades de saúde, mas a razão principal eram suas críticas, e a principal delas era que “O PT não pode se eximir da obrigação fundamental de congregar as verdadeiras forças sociais inconformistas e de esquerda”47. Era tudo que o PT não queria ouvir naquele momento em que fazia sua guinada em direção ao centro e o descarte das forças de esquerda que o acompanhavam desde a fundação.

Durante a tentativa de reforma da Constituição liderada por forças conservadoras e rejeitada pelo PT, surgiu a oportunidade de o conflito se tornar mais explícito. Florestan decidira acolher a recomendação da liderança da bancada, no sentido de não participação na pretendida reforma. Os parlamentares petistas, portanto, foram orientados a não apresentar qualquer emenda à Constituição.

Florestan, que já havia recebido sugestões de associações de docentes, com as quais tinha diálogo intenso, prontificou-se, seguindo a orientação da Liderança na Câmara, a não encaminhá-las. Com uma exceção, no entanto. Tratava-se de uma proposta de emenda à Constituição, criando um capítulo dedicado aos negros.

Em carta dirigida ao líder da bancada, José Fortunati (PT-RS), Florestan justificou sua desobediência, que não queria que fosse vista simplesmente como uma “atitude de rebelião”. Ele iria justificá-la “em termos de objeção de consciência”.48

É um documento extraordinário, sob múltiplos aspectos. Um intelectual branco explicita as razões que o prendem ao movimento negro. Primeiro, refere-se a sua trajetória de

47

Fernandes, Florestan. O PT em movimento – Contribuição ao I Congresso do Partido dos Trabalhadores. São Paulo: Cortez Editora; Autores Associados, 1991. p. 80.

48

Carta à liderança do PT. Brasília, 14 de dezembro de 1993. Em Fernandes, Florestan. Consciência negra

etransformação da realidade. Brasília: Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados, 1994,p.15.[Série Separata de Discursos, Pareceres e Projetos, nº59/94.]

pesquisador acadêmico, onde as reflexões sobre a população negra, no escravismo e no período pós-abolição, ocupam lugar de destaque.

Em seguida, chama a atenção, mais uma vez, para a centralidade da emancipação das minorias étnicas para “a construção de uma sociedade democrática autêntica”:

Como socialista, como militante de movimentos de protesto social, como sociólogo e professor, coloquei-me na vanguarda dos que combatiam pelo protesto negro. A “questão do negro” não é, apenas, uma “questão social”. Ela é simultaneamente racial e social. Além disso, é a pior herança da sociedade de castas e estamentos. Ela trouxe para o presente todas as formas de repressão e opressão existentes em nosso país. É o teste à existência da democracia no Brasil. Enquanto não houver liberdade com igualdade do elemento negro, a ideia de uma “democracia racial” representa um mito arraigado entre os brancos, ricos ou pobres. Por isso, devemos repelir esse tipo de racismo, que indica objetivamente que formamos uma sociedade hipócrita e autocrática.

Sinto vergonha dessa realidade e penso ser meu dever lutar contra ela com todo o vigor. A democracia não pode excluir “os de baixo” e, especialmente, preservar a “vergonha de ter preconceito”, mantendo-o e reproduzindo-o dissimuladamente. Prefiro participar da fraternidade dos companheiros negros e combater por uma democracia plena, na qual a liberdade com a igualdade seja válida como objetivo universal.

Agradeço a atenção que me for dispensada e aguardo da Bancada do PT apoio para a emenda.49

Após o envio da carta, não chegou ao gabinete nenhuma manifestação da Liderança, exceto telefonemas de funcionários subalternos, após a apresentação da emenda, querendo saber de mim se a assinatura que constava na emenda era mesmo do deputado Florestan Fernandes.

A peça que Florestan propunha ao debate do Congresso incluía um capítulo IX (Dosnegros) ao título que trata da ordem social e busca proteger a herança cultural dos negros, queinclui a religião e a participação nos acontecimentos históricos, assegurar a posse de territórios, a participação no mercado de trabalho, proteção dos efeitos desintegradores determinados pelo racismo, e medidas especiais para favorecer a escolarização.

Sobre medidas especiais, é importante aqui recordarmos que durante o processo constituinte, Florestan já havia encaminhado ao relator da Subcomissão da Educação, Cultura e Esportes, João Calmon, Projeto de Dispositivos Constitucionais, com um conjunto de medidas educacionais, que associava a “educação escolarizada e a cidadania plena”. Entre essas importantes sugestões, quero destacar a que trata de ações afirmativas, sem usar ainda essa expressão:

Os indígenas, os negros e mulatos, as populações rústicas, os favelados, as crianças sem lar e todos os que são afetados por condições de maior privação econômica, social e educacional serão beneficiados por programas especiais, em conformidade com a lei, que confiram vantagens relativas (...) com o objetivo de neutralizar os fatores que os impedem de conseguir o aproveitamento igualitário das oportunidades educacionais50.

Na proposta de emenda à Constituição, de 1993, Florestan afirmara que “A oferta de ensino gratuito não é suficiente para integrar e reter estratos da população negra nas escolas” e essa “contradição” seria corrigida através de bolsas de estudo.

Não houve nenhuma manifestação sobre o conteúdo da emenda, nem dentro nem fora do partido. Em novembro de 1994, quase um ano depois, Florestan ocupou a tribuna da Câmara para, de improviso, falar sobre o Dia da Consciência Negra. Consciência que ele entendia como diferenciada, porque “traduz a disposição de ser ele próprio [o negro] e não o branco o autor de sua auto-emancipação coletiva”. E acrescentava: “Os negros não podem esperar de uma sociedade como a nossa que ela se abra para seus problemas fundamentais51.”

Ao agradecer ao presidente da sessão pela dilatação do prazo, que lhe permitiu concluir o pronunciamento, disse, emocionado: “palavras que disse aqui com todo o empenho de meu ser e da minha vontade”.

Estávamos chegando ao final do mandato e eu insistia com Florestan para que tornasse público o episódio, divulgando os documentos. Depois de hesitar, ele acabou concordando52 e

50

Fernandes, Florestan. O processo constituinte. Brasília: Centro de Documentação e Informação da Câmara dos Deputados, 1988, p. 120. [Série Separatas de Discursos, Pareceres e Projetos, 26.] 51

Fernandes, Florestan. Consciência negra e transformação da realidade.p.8.

52

Para minha alegria, Florestan abriu a introdução da separata fazendo alusão a minha insistência e a seu compromisso com o Movimento Negro: “O presente folheto originou-se de uma iniciativa do Prof. Edson Lopes Cardoso, chefe de gabinete e meu principal colaborador. Vacilei em aceitar a ideia. Pensando melhor, logo constatei que ele tinha razão. Em suas páginas, encontra-se uma das razões da atividade parlamentar que prometi

foram feitas dez mil cópias de uma separata, da qual consta uma introdução, o pronunciamento de novembro, o texto da emenda e a importante carta ao líder Fortunati, com a alegação de razões de consciência para não acompanhar o partido53.

Não fico com o partido, fico com o movimento negro. Isso dito por quem atribuía ao partido grande papel transformador era claramente uma dura crítica à legenda que, em sua visão, se dissipava “nos fins institucionalizados e regulados pela ordem, no plano da representação e das eleições ritualizadas” 54.

Uma coisa era a teorização sobre os papéis decisivos de um partido revolucionário em uma realidade em transformação, outra coisa muito diferente era a legenda real e concreta, que se conformava “com as estreitas possibilidades liberais e social-democráticas da transformação da ordem” 55.

Na contribuição que encaminhara ao I Congresso do Partido dos Trabalhadores, em 1991, Florestan já tinha chamado a atenção do PT para a necessidade de se debruçar sobre o conteúdo, reformista ou revolucionário, dos movimentos sociais destacando o Movimento Negro56:

O significado revolucionário explícito e larval da raça, como categoria social, contém implicações e desdobramentos insondáveis. Pensar a revolução como possível no Brasil, sem pôr lado a lado classe e raça, equivale a desperdiçar um arsenal nuclear que nunca funcionará como um todo dentro da ordem. O partido precisa realizar uma rotação para se desprender do horizonte cultural burguês e do seu senso comum, feito de estigmatizações e preconceitos, para encarar de frente o Brasil real e suas exigências históricas irreprimíveis.57

ao MNU e a outros setores da comunidade negra de São Paulo, das quais tive forte apoio nas duas eleições a que concorri”. Consciência Negra e transformação da realidade. p.5.

53

Chegou ao gabinete correspondência de Clóvis Moura, sociólogo negro com vasta e importante bibliografia sobre o tema, solidarizando-se com Florestan Fernandes. A única manifestação de que me recordo.

54

Fernandes, Florestan. O PT em movimento–Contribuição ao I Congresso do Partido dos Trabalhadores. pp.76- 77.

55

Idem, ibidem.

56

Tratei dessa contribuição de Florestan Fernandes ao I Congresso do PT em artigo. Ver: Cardoso, Edson Lopes.

“O desafio de controlar a própria explosão”. Em: Pantoja, Selma (Org.). Entre Áfricas e Brasis. Brasília: Paralelo 15; São Paulo: Marco Zero, 2001. pp. 179-190. Mais tarde, ampliei minhas reflexões na palestra ”Algumas observações sobre visões conflitivas de movimento negro”, proferida no evento “Respostas ao racismo – produção acadêmica e compromisso político em tempos de ações afirmativas”. Promoção: Pós-graduandos em História, Cecut e IFCH – Unicamp. Data: 3 de dezembro de 2009. Local: Auditório do IFCH – Unicamp, Campinas. Este texto, inédito, está na Parte II deste trabalho.

57

A questão levantada por Florestan era, em certa medida, a mesma que discutíamos no MNU. Só que nosso entendimento era o de que nós mesmos deveríamos controlar o poder transformador das contradições raciais e não o partido.

Duas palavras logo me atraíram no fragmento da tese de Florestan: “insondáveis” e “irreprimíveis”. Eu sei que é fundo, mas não sei quanto é fundo; e, seja lá como for, não podem ser contidas ou dominadas.

As implicações, os desdobramentos, as exigências apresentavam-se numa tal dimensão que o partido, para quem o conhecia por dentro, estava destinado a passar ao largo dessas possibilidades que poderiam impulsionar uma nova ordem de justiça e solidariedade.

Não era um equívoco apenas do Partido dos Trabalhadores, é preciso frisar isso. À esquerda brasileira, mesmo àquela anterior ao surgimento do PT, parece ter sempre faltado uma percepção mais aguda de nossas reais condições históricas. Fixar a atenção no que chamam de “determinação econômica”, de que tudo o mais é puro reflexo, sempre foi a atitude dominante58.

Mas o fato é que se perdeu aí uma inédita oportunidade de diálogo. O Partido dos Trabalhadores recusou-se a realizar a rotação sugerida por Florestan. O PT em ascensão contará com seus próprios negros, com graus variados de ligação com o movimento social, e as inserções institucionais criarão novas formas de subordinação e dependência.

As prefeituras, no início, depois os governos estaduais e federal, com suas assessorias, subsecretarias e, eventualmente, secretarias, assegurarão o que Florestan gostava de chamar de “acefalização dos dominados”, esvaziando o movimento negro de alguns de seus principais quadros.