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A proposta do encontro fora aprovada na reunião da Comissão do Negro do PT-DF, realizada em 28 de maio de 1986, e encaminhada por uma das representantes do DF (Arlete Sampaio) ao IV Encontro Nacional do Partido dos Trabalhadores, que ocorreu em São Paulo nos dias 30 e 31 de maio e 01 de junho de 1986. O IV Encontro aprovou a proposta da Comissão, apenas modificando as datas. Nós havíamos proposto 20, 21 e 22 de setembro de 1986 e as datas aprovadas foram 20, 21 e 22 de março de 1987.

As pressões da Executiva Nacional para controlar o evento tentarão evitar, primeiro, que fosse um encontro de negros para discutir e articular sua ação no partido, com uma perspectiva nacional. A sugestão da direção era de que diferentes grupos étnicos se debruçassem sobre a questão racial. O I Encontro Nacional “O PT e a Questão Racial” e o I Encontro Nacional do Negro do PT vão assim travar uma dura queda de braço.

Uma articulação nacional de negros gera tensão e não somente no PT. No inconsciente coletivo nacional, é o que diz minha experiência de reunião em diferentes espaços e cidades, a imagem de negros reunidos é uma espécie de arquétipo do pânico.

No mesmo período de 1987, a cúpula da CNBB escolhera o tema da campanha da fraternidade para o ano do centenário da abolição. A tensão criada com a base de agentes da Pastoral do Negro sobre os limites na condução da campanha se expressava na disputa, equivalente àquela travada no PT, sobre se a campanha devia ser “Ouvi o clamor desse povo”, ou “Ouvi o clamor desse povo negro”.

Na CNBB acabou prevalecendo a primeira alternativa, mas os murmúrios da base eram perceptíveis fora do mundo católico.

No PT, não foi diferente; a resistência, entretanto, da comissão organizadora, centralizada em Brasília, rejeitou a transformação do evento e fez preponderar o sentido de uma articulação de negros petistas. Respondi com maus modos a carta da Secretaria Nacional de Movimentos Populares, assinada por Luiza Erundina, mas subestimei o ranger de dentes de

vassalos negros, que se posicionavam ideologicamente em diferentes grupos e tendências e tinham pouco interesse em fortalecer o ativismo negro no interior do partido30.

Acrescente-se a isso o teor do documento apresentado pela Comissão do Negro do PT- DF. Nele expusemos com destemor nossas críticas ao “Plano de Ação Política e Organizativa” 31

, aprovado no mesmo IV Encontro Nacional do PT que acolhera, em São Paulo, a proposta de articulação negra levada de Brasília por Arlete Sampaio.

O Plano, com diretrizes para o período 1986/1987/1988, afirmava que os trabalhadores assalariados urbanos eram constituídos por ascendência de imigrantes estrangeiros. E nós comentávamos que a ausência no Plano das contradições raciais, da luta contra o racismo, da essencialidade mesmo da questão racial, decorria de uma leitura absolutamente equivocada da história do trabalho no país.

O mesmo equívoco encontrava-se nos documentos básicos do partido, que registravam o que chamávamos de “estranha dicotomia”: de um lado, os trabalhadores, de cuja luta surgira o PT; de outro, os negros, aos quais os trabalhadores manifestavam sua solidariedade.

As discussões do Encontro, entretanto, foram rasas e por “escolhas humanas”. As chamadas “possibilidades objetivas” favoreciam um debate que, a rigor, não aconteceu32. Tínhamos condições de criar uma articulação consistente num cenário de funcionamento da Assembleia Constituinte, com o protesto do Centenário da Abolição como pano de fundo. Não estava predeterminado que tudo evoluísse de modo subalterno e fragmentado, fortalecendo apenas o diálogo de alguns indivíduos com setores da cúpula partidária.

Não era um jogo nada fácil; havia limites ostensivos, mas estivemos, no Anfiteatro 12 da UnB, durante três dias, em condições de dialogar e assumir responsabilidades históricas. A

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Muitos anos depois, após as eleições de 2002, quando se articulava a criação da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir),fui convidado para evento no Rio de Janeiro. Ivanir dos Santos, do Ceap, coordenando a mesa ao lado de Benedita da Silva, afirmou que “já está na hora de reconhecermos que falhamos com Edson Cardoso, quando da organização do I Encontro do Negro do PT, em Brasília.” Era, finalmente, o reconhecimento público da “patrulha” de que fui vítima por ser capaz de mobilizar e ameaçar pôr fim ao conforto do gueto partidário.

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Documento elaborado pela Comissão do Negro do PT-DF, como contribuição aos debates do I Encontro Nacional para discutir “O PT e a Questão Racial”, p. 12.

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A crítica ao pensamento que considera “tudo o que aconteceu como a única coisa que poderia de fato ter acontecido”, foi muito bem desenvolvida por Guerreiro Ramos, no ensaio “A modernização em nova perspectiva: em busca do modelo de possibilidade”, em Heidemann, Francisco G. e Salm, José Francisco (Orgs.). Políticaspúblicas e desenvolvimento – bases epistemológicas e modelos de análise. Brasília: Editora Universidade deBrasília, 2ª ed., 2010.pp.41-79.

insistência partidária na centralidade da classe não parecia decorrer de uma efetiva análise da realidade brasileira, de sua plena vivência. Os apagamentos, as distorções e a estreiteza de visão eram evidentes não somente para mim.

Mas o que se assumiu com a recusa ao debate mais vertical foi uma configuração do real que não podia ser perturbada e ponto. A temática racial era algo estranho às possibilidades já definidas de organização e crescimento do partido e as reivindicações dos negros deveriam ser, portanto, apenas acomodadas entre as metas mais secundárias.

O fato é que, durante o I Encontro muitos negros petistas, de caricatos bajuladores da corrente majoritária a pretensiosos radicais de correntes autodenominadas revolucionárias, não pareciam dispostos a forçar mudanças em seus nichos por mais contrastantes que eles fossem.

Minhas dúvidas se tornaram mais intensas ao final do Encontro. Qual seria a saída, então, um partido negro? Todos formavam tendências no interior do partido, deveríamos constituir uma? Havia também o fato de que a campanha eleitoral fizera com que eu reconsiderasse minha visão da participação de não-negros – mas quais eram os limites?