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O processo eleitoral escancarou as resistências do PT ao trabalho da Comissão e revelou para mim os limites profundos do Movimento Negro no DF.

Na verdade, no interior do partido, o que incomodava mesmo era o dinamismo que imprimíamos a nossa gestão à frente da Comissão, que mobilizava, avançava pelas cidades- satélites e já era uma referência nacional.

A campanha constituinte foi a primeira disputa eleitoral do Distrito Federal. Nós da Comissão do Negro localizamos em Chico Vigilante, negro, maranhense, presidente da CUT no DF, integrante da corrente majoritária (o que significava acesso a recursos privilegiados), a melhor escolha para levar as bandeiras da questão racial, de uma perspectiva negra. Sua corrente o chamava de “Lula do Cerrado” e visivelmente isso o agradava muito. Antes de começar a campanha, era dada como certa sua eleição.

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Em todos os momentos, vinculávamos a solidariedade à luta contra o apartheid à denúncia e ao combate do apartheid à brasileira:21/03/85 –Participação no ato público realizado na Praça do Povo pelo Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial; 15/08/85 – Participação no ato público contra o apartheid realizado em frente à embaixada da África do Sul, promovido juntamente com outras entidades do DF; 29/09/85 –Participação em debate sobre o apartheid, promovido juntamente com o Diretório Municipal de Taguatinga, no Teatro da Praça

–EIT; /10/85 Distribuição de postal pelo rompimento total de relações com a África do Sul, para ser enviado ao ministro de Relações Exteriores, Olavo Setúbal; 21/03/86 –Debate na OAB sobre os meios de comunicação e a política do apartheid. Além de representantes da Comissão na mesa, tivemos a presença do correspondente da agência espanhola EFE e do editor de política internacional do “Correio Braziliense”; 19/06/86 – Telegrama de repúdio ao estado de emergência, enviado ao embaixador da África do Sul no Brasil; 25/06/86 – Pichações nos muros do DF pelo total rompimento com o regime racista da África do Sul; 17/07/86 – Palestra na sede do PT- DF sobre a luta de libertação nacional do povo sul-africano. O palestrante foi o professor de História da África da UnB, J. F. Sombra Saraiva; 22/08/86 – Participação em ato público contra o apartheid realizado em frente à embaixada da África do Sul, promoção conjunta com demais entidades do DF.

Marcamos uma reunião e Chico foi curto e grosso ao descartar a possibilidade de empunhar as bandeiras do Movimento Negro. Antes de ser negro, ele era sindicalista. E a avaliação dos “entendidos” em eleição que o cercavam era a de que a denúncia do racismo dividiria os eleitores e acabaria por tirar votos de quem já se considerava eleito.

Era evidente que as oportunidades de agitação e propaganda de algumas ideias caras ao Movimento Negro que se abriam, no processo eleitoral, em que todos os candidatos teriam acesso a rádio e televisão, não podiam ser descartadas assim.

Após duas reuniões (24 e 25/04/1986) a Comissão do Negro avaliou como positiva uma candidatura que contribuísse tanto para a mobilização política dos negros do DF, como internamente estimulasse a criação de outras comissões nos diretórios das cidades-satélites, intensificando assim o envolvimento do conjunto do partido com a questão racial. Meu nome foi o escolhido pela Comissão, mas outros nomes da Comissão apareciam também nas listas dos núcleos de base, com menos chances ainda que as minhas.

Durante a Convenção que indicou os candidatos a realidade se apresentou sem disfarces. Arlete Sampaio, dirigente da corrente “O Trabalho” e também integrante da Executiva

Regional, sentou-se a meu lado para sussurrar que havia sinais claros de que a maioria das tendências vetava meu nome e que seria melhor retirar a candidatura.

Não só não a retirei como, na hora das defesas das candidaturas, inscrevi-me para defender meu próprio nome (aliás, fui o único na Convenção a passar pelo constrangimento de defender a própria candidatura). O resultado, diante dos prognósticos, foi mesmo surpreendente e acabei bem votado.

O Partido dos Trabalhadores no DF atraiu, no seu início, um grande número de pessoas, regra geral servidores públicos, que relutavam em se filiar às correntes em disputa. Como eu não pertencia a nenhuma tendência partidária (sempre aleguei que meu vínculo era com o Movimento Negro), minha candidatura acabou atraindo muitos desses “independentes”, o que explica em parte a votação que obtive.

Sem nenhum planejamento prévio, sem captação de recursos, me vi candidato a deputado federal! Havia ao menos três outros candidatos negros no partido, mas apenas minha candidatura iria priorizar a luta contra o racismo.

As reuniões para discutir programas de rádio e televisão entravam pela madrugada e produziam disputas acirradas. No nosso caso, principalmente, tratava-se de manter, de defender um ponto de vista que rigorosamente implicava questionamento aberto ao modo como os demais apreendiam a mesma realidade.

O assédio e os constrangimentos visavam não apenas nossas intervenções de palanque e a elaboração dos programas de TV, mas viravam murmúrios aqui e ali, desqualificações de toda ordem. Curiosa era a posição de alguns membros da Comissão do Negro subordinados a tendências: devidamente centralizados, como se dizia então, estavam impedidos de apoiar nossa candidatura e tiraram férias da luta contra o racismo, bem na hora em que saíamos para a conquista do espaço público.

Assumimos a responsabilidade de fazer no DF, ao longo da campanha, o que outros ativistas também realizavam em diversos estados como candidatos: expressar os interesses e as reivindicações do Movimento Negro. Não era mais um debate acadêmico, mas a questão racial buscava uma prática política, rompendo barreiras impostas pelos meios de comunicação. Dentro de nossos limites, ousamos um bocado, ampliando o alcance que era muito reduzido para as mensagens do Movimento Negro.

Tive a sorte de também contar com apoiadores na Universidade de Brasília, brancos, colegas de mestrado e professores simpatizantes ou filiados ao PT. Recebi tanto doações em dinheiro (que me ajudaram a pagar o aluguel da sala do comitê e imprimir material), quanto o layout de meu principal material de campanha, uma máscara nigeriana, de grande impacto, que mais tarde seria copiada por comissões do negro em outros estados.

Guardei, no entanto, é preciso registrar, a observação de um estudante nigeriano, que conheci na universidade, Akinyemi O. Adegbola, mais tarde colaborador do “Raça & Classe”. Akin, como ele era conhecido, me disse que eu deveria alternar a máscara com meu próprio rosto, para mobilizar, segundo ele, aquelas pessoas que tinham a mesma aparência que eu, mas não se assumiam negras.

Ouvi um monte de comentários durante a campanha sobre minha aparência. E passei a trazer na carteira de cédulas uma foto de minha mãe, indagando sobre as razões pelas quais, sendo filho de mãe negra, não deveria me assumir como tal? Quem afinal decidia isso?

Entrávamos de casa em casa (nosso alvo prioritário eram as famílias negras) e era sempre emocionante para mim a roda que fazíamos de apoiadores e familiares, para conversarmos sobre a opressão cotidiana do racismo e as oportunidades que se abriam no processo constituinte.

Aprendi a falar e a ouvir e me fortalecia nessas visitas. Sentia que reforçava uma convicção íntima, a qual lentamente se afirmara, de que estava ali fazendo o que por si só justificava minha própria existência.