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No domingo, 19 de outubro de 1986 (neste ano a eleição aconteceu no dia 15 de novembro), choveu torrencialmente em Brasília na parte da tarde. Mas com toda a chuva, saímos de Ceilândia, onde fazíamos campanha, para irmos até a sede do jornal “Correio Braziliense”, no Setor de Indústrias Gráficas. Teríamos que convencer seu redator-chefe, Renato Riella, de que tínhamos direito de responder a uma reportagem estampada na capa da edição do CB daquele domingo chuvoso.

Carlos Moura, assessor para assuntos da cultura negra do Ministério da Cultura (nessa época ainda não existia a Fundação Cultural Palmares), afirmou ao CB que não havia candidatos negros na disputa eleitoral no Distrito Federal. Por isso, ele recomendava que a população negra votasse em Lindberg Aziz Cury e Maerle Lima, candidatos brancos.

Riella acolheu minhas razões e na terça-feira fomos entrevistados por Raquel Ulhôa, da editoria de política. A entrevista foi divulgada no dia seguinte pelo CB28, com foto minha tendo ao fundo um cartaz da luta de libertação no sul da África (“Victorytopeople’swar”), que estava afixado numa parede do comitê. Não houve como evitar; a sala do comitê era de dimensões reduzidas e, desde a entrevista, enquanto o fotógrafo fazia seu trabalho, eu tinha certeza de que a foto escolhida (um combatente armado) seria aquela, que ajudava a compor um quadro de radicalismo.

A primeira pergunta da repórter era direta e aludia ao fato que havia motivado a oportunidade de expor as ideias de Movimento Negro (sobre segurança pública, comunicação,

educação, mercado de trabalho, segregação urbana) que eu propagava durante a campanha eleitoral: “O eixo de sua campanha é o combate ao racismo. Como é que você recebeu as declarações de Carlos Moura, de que não há candidatos, em Brasília, comprometidos com a questão?”.

Pude então falar sobre a legitimidade de minha candidatura, com uma naturalidade fingida que me surpreende hoje. Refutei enfaticamente as declarações de Moura (“uma prática política vil, torpe e mesquinha”) e marquei bem a diferença entre o movimento que ele fazia e o que eu representava na campanha:

Para mim, não existe movimento negro sem perspectiva de transformação da sociedade. Eu não posso ficar no discurso de denúncia do racismo, sem criticar o sistema político e econômico, que aprofunda as desigualdades raciais. Mas existem negros que combatem o racismo e fecham exatamente com os racistas que estão no poder. É o caso de Moura e Valdomiro (candidato do PSB), por exemplo. Como se pode combater o racismo e ser aliado dos racistas?

O que eu me presumia, então? Ser o verdadeiro negro? Representar com legitimidade a população negra? Direita e esquerda eram categorias de que eu me utilizava para desacreditar meus adversários. Mas, ainda inseguro, me escondia por trás da máscara nigeriana. Ao mesmo tempo em que me sentia mais legítimo do que outros negros envolvidos no processo eleitoral, eu temia a rejeição.

A entrevista escancara, a meus olhos de hoje, muitos equívocos e fragilidades minhas. Eu ainda acreditava, em outubro de 1986, que a proposta do PT era vir a se tornar um partido de massas; que o PT era um partido socialista; que “não havia distinção entre o PT e o Movimento Negro”!

No ano seguinte essas convicções desabariam todas e a própria atitude do PT, durante a campanha, contribuiria para que revisasse minhas posições e deixasse o partido. A revelação também de que setores do Movimento Negro do DF agiam para desqualificar e negar minha candidatura, indicando empresários brancos como alternativas confiáveis na primeira página dos jornais, teria grande efeito no meu crescimento.

O que de fato significava a cor da pele? Ser legitimamente um negro implicava apenas em um conjunto de marcas externas? Eu não pensava a realidade de um ângulo que deveria ser entendido como caracteristicamente negro? E minha família, minha trajetória pessoal? Eu seria

para sempre um negro com justificações e explicações? Quais os limites afinal da aparência? A institucionalização faria comigo o que fizera a Carlos Moura?

O PT não elegeu em 1986 nenhum candidato. Antes do último programa de TV, um enviado de Chico Vigilante propôs um formato em que os candidatos negros apareceriam juntos e ele falaria sobre a temática do racismo. Obviamente, recusei. O momento havia passado, tínhamos afirmado uma candidatura e encontrado um tom, um modo de dizer, não abriríamos mão da fala no último programa. Tivemos quinhentos e poucos votos, mas a pauta que era encabeçada pela criminalização do racismo, entre outros itens, chegou vitoriosa à nova Constituição.

Nossa candidatura, por falar abertamente de racismo na educação, no mercado de trabalho e na violência policial, sem rodeios no rádio e na TV, em entrevistas jornalísticas, tinha mexido com a cabeça de muita gente no DF.

Após as eleições de 1986, em janeiro de 1987, o partido fora convocado para avaliação eleitoral no mesmo dia em que já havíamos convocado um encontro regional da Comissão do Negro. Ficamos em anfiteatros diferentes, mas próximos, no Minhocão da UnB, e havia um número de participantes (97 pessoas) maior na atividade convocada pela Comissão, o que estimularia a ficção de que nosso objetivo era a criação de um partido paralelo.

Saí da campanha eleitoral bastante confuso com o comportamento de parte do PT e perplexo diante das atitudes do Movimento Negro do DF. O Documento da Comissão para o I Encontro Nacional do Negro do PT, elaborado integralmente por mim, e aprovado por unanimidade na reunião de 27 de fevereiro de 1987, refletirá em muitos trechos meu estado de ânimo pós-campanha eleitoral.

Dedicamos um item do documento para avaliar os obstáculos que tínhamos vencido na Executiva Nacional para a realização do I Encontro Nacional do Negro do PT, realizado em 20, 21 e 22 de março de 1987, na Universidade de Brasília29.

29

Documento elaborado pela Comissão do Negro do PT-DF, como contribuição aos debates do I Encontro Nacional para discutir “O PT e a Questão Racial”. Brasília, mimeo, 1987, 14p.