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Assim é que se brinca: genealogia da disciplina sobre o Carnaval de

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2 O CARNAVAL E A REPRESSÃO ATRAVÉS DOS DOMÍNIOS DE

2.3 ORDEM E DESORDEM NO CARNAVAL DE CHUMBO: subversão ou

2.4.1 Assim é que se brinca: genealogia da disciplina sobre o Carnaval de

Determinar meios pelos quais se manifesta a brincadeira do Carnaval é algo que percorre um longo caminho dentro da duração historiográfica da festa que passa, antes, por direções diferentes, tomadas tanto pelo poder instituído como pela capacidade de se reinventar presente na própria festa. Desta forma, ao perceber uma genealogia da disciplina no Carnaval de Chumbo, os olhares devem estar voltados para outros dois momentos na história do brinquedo em Pernambuco: durante o século XIX e na Era Vargas/Período Democrático. No entanto, o primeiro exemplo de tentativa de controle efetivo da festa, para a História nos é dado por Burke (2010, p. 271):

O ritual do charivari parece ter servido à função de controle social, no sentido em que era o meio utilizado por uma comunidade, aldeia ou paróquia urbana para expressar sua hostilidade a indivíduos que saíam da linha, e dessa forma desencorajar outras possíveis transgressões aos costumes. [...] Os rituais de execução pública também podiam ser vistos como forma de controle social, na medida em que havia um consenso da comunidade quanto à perversidade do crime.

Reservadas as diferenças na temporalidade, uma vez que o relato acima se refere a fins do século XVI, a forma como esses rituais serviram às autoridades ao longo da duração mostram duas possibilidades: de um lado, a da festa enquanto resistência de brincantes e

foliões; do outro, o brinquedo como forma de exercer o controle social por meio de uma política de pão e circo, promovendo tal momento para distrair os problemas existentes. Em ambas as situações, delineia-se um ponto comum – a utilização do patrimônio imaterial enquanto espaço de poder.

Rotulada pela imprensa como uma brincadeira de mau gosto, perigosa e, por vezes, problemática no sentido de desestruturar a ordem, a farsa de Momo passou por um longo processo de resistência no sentido de manter vivas suas tradições, mesmo que estas não agradassem as autoridades de sua época e a elite presente naquele momento. O fato é que, mesmo respeitando os espaços e estabelecendo uma espécie de consenso que contemplava a todos seus lugares de fala, as festas foram enxergadas como um processo que deveria ser cautelosamente visto enquanto problema social a ser resolvido.

Araújo (1996) nos dá uma dimensão de como a festa, no Recife, era vista ainda no século XIX como uma série de ritos que precisavam ser modificados e instituídos valores que contivessem o afastamento de ações consideradas extremadas e abusivas na festa. Segundo a autora, havia uma tendência reformista por parte dos governos e pelo clericato europeu em relação às manifestações culturais, uma vez que as festas poderiam (e normalmente o faziam) romper “a fronteira que separava a ordem da desordem” (ARAÚJO, 1996, p. 159). Percebemos, no entanto, que essa forma de observar as brincadeiras populares é mais antiga ainda – remete aos fins da Idade Média e durante a Idade Moderna, porém se reinventaram de acordo com as formas de governo e comportamento das sociedades nas quais se fizeram presentes.

Excessos de paixão, banhos de cerveja, pouca roupa, beijos roubados, uso de lança- perfume, maconha e psicotrópicos de natureza variada era a forma como os foliões inventavam o cotidiano de seus carnavais durante os Anos de Chumbo. Vendo desta forma a libertação de seus espíritos e a caracterização da alegria da festa de rua, muitos tipos sociais terminaram por forçar ações mais extremas das autoridades em relação ao que se fazer com os foliões mais agitados. O uso das Portarias Municipais atendia a uma meticulosa forma de penetração do Estado Ditatorial na festa, não pretendendo deixar arestas por aparar – permeava desde o ambiente da rua até mesmo a diretoria dos clubes e agremiações.

Esta determinação contida nas Portarias atendia à regra de disciplinamento e militarização da sociedade. De acordo com Brigagão (1985, p. 20), “a cultura censurada e vilipendiada passou a ser uma questão militar e policial” onde a sociedade, de vítima transformou-se em consumidora silenciosa do medo imposto pelo sistema ditatorial. A partir daquele momento houve um banimento do sentido ético e civil do código de conduta

brasileiro e o comportamento foi se tornando cada vez mais militarizado (BRIGAGÃO, 1985). Contudo, é preciso atentar que não se pode estabelecer uma generalização para este padrão de ação; e muitos eram considerados, para tanto, subversivos graças a seus anseios em manter preceitos do Estado de Direito que lhes era negado por essa extrema ilegitimidade dos modos de ser.

Entre vários exemplos, um que pode oferecer uma dimensão deste controle é o da matéria que circulou no Diario da Manhã de 15 de janeiro de 1972 com o título Carnaval vem aí e clubes vão ter que tirar licença na SSP. De acordo com a Delegada de Costumes, Dra. Vicentina Amaral, não somente os clubes que desejassem realizar seus bailes deveriam estar em dia com suas obrigações perante a Justiça, mas especialmente as agremiações como maracatus, caboclinhos e ursos, além dos brincantes do frevo, troças e mascarados a fim de obter seus alvarás de permissão para atuar durante os Dias Gordos. Uma fiscalização seria designada nos dias de festa para verificar a autenticidade e permissividade daqueles que estivessem se exibindo durante o tríduo e tiraria de circulação aqueles onde fossem constatadas irregularidades (CARNAVAL..., 1972f).

É importante frisar que a matéria não oferece muitos subsídios para entendermos quais são as reais razões da emissão dos alvarás de funcionamento, mas uma possível compreensão é o controle e a fiscalização da festa para evitar qualquer tipo de associação subversiva contra o sistema, especialmente reunindo membros do Partido Comunista e representantes da Luta Armada que poderiam se utilizar das festividades para elaborar seus planos de guerrilha. Embora não seja esta a única interpretação possível para o caso designado, para um melhor entendimento desta atitude da SSP em relação aos brincantes, as ideias de Foucault (2009) sobre a disciplina normativa nos servem como um importante instrumento.

Segundo o mesmo autor, o poder disciplinar normativo estabelece a falsa noção de que há uma homogeneidade entre os que estão por ele sendo alvos, porém na prática o que se caracteriza é um jogo de relações que direciona os modos de agir desse poder para situar as diferenças individuais. Neste caso, cada indivíduo passa pelo exame do sistema, onde é colocado como objeto da normatização e cumpri-la significa a legitimação e demonstração da força, primeiramente em âmbito psicossocial para, posteriormente, se utilizar da violência como arma complementar, se caso necessário (FOUCAULT, 2009).

Dessa forma, a disciplina se transforma em um instrumento pelas mãos do Estado Ditatorial que premia uns e desprivilegia outros onde a ideia de penalidade não tem a intenção de destruir, segregar, comparar ou hierarquizar a sociedade – sua finalidade é, antes, a normatização da mesma, só sendo passível de disciplina aquilo que escapa à lei. Nesse

sentido, outro exemplo que ilustra essa prerrogativa consta nas páginas veiculadas pelo mesmo Diario da Manhã no dia 05 de fevereiro de 1972 através da matéria Carnaval não terá Maconha. O periódico apresentava a fala do Delegado de Entorpecentes, Sr. Genivaldo da Fonseca, explicando que todas as ações no sentido de coibir as bocas de fumo e o consumo destes psicotrópicos nos ambientes fechados como clubes, gafieiras e dancings não seria contemporizado pelas autoridades, que agiriam no rigor da lei para punir os infratores (FONSECA apud CARNAVAL..., 1972c).

Sendo assim, observamos que em ambos os casos descritos mais acima o que se apresenta é uma imagem que privilegia a indiscrição do poder, que estaria presente em toda parte e sempre alerta, no entanto, funcionando em silêncio na intenção de estabelecer a eficácia de atitudes que permitem uma física deste poder sobre os corpos diante os quais ele atua (FOUCAULT, 2009). Somente desta forma a disciplina atrai as atenções e faz de suas observações uma máquina de controle capacitada por um único olhar que mantém a ordem acima de qualquer suspeita.

Outra maneira de perceber o controle sobre o Carnaval estava representado pelas instituições que buscavam organizá-lo através de subvenções e regras para as apresentações em público. Transferência de preceitos que estava presente, oficialmente pelas mãos do Estado desde a Era Vargas, grupos independentes formados por membros de elite da sociedade e pessoas de respaldo cultural como a Federação Carnavalesca de Pernambuco (FECAPE), a Comissão Organizadora do Carnaval (COC) e a Comissão Promotora do Carnaval (CPC) buscavam essa regulamentação e definição dos caminhos possíveis para a realização das festas de Momo no Recife e em Pernambuco segundo conceitos de ordem e disciplina.

O historiador Silva (2000) nos situa sobre o significado que estas instituições tinham para as festas momescas na cidade: de acordo com o mesmo, a FECAPE foi criada, ainda durante a década de 1930, com a intenção de reunir questões para a organização do Carnaval, prezando pela ordem pública, educação, preservação moral dos costumes e ideologias da festa, mantendo viva a tradição e o colorido do brinquedo. De inspiração do jornalista Mário Mello, o órgão reunia pessoas estranhas ao Carnaval que tinham igualmente o interesse de controlar as doutrinas nascentes com a dinâmica dos tempos, principalmente a disseminação do Comunismo (MELLO apud SILVA, 2000), transformando assim cada agremiação por ela abraçada em um “núcleo educativo voltado para festas cívicas, com concentrações e desfiles patrióticos” (SILVA, 2000, p. 225).

Tal caracterização delineada pela Federação Carnavalesca transferiu-se ao longo do tempo e o chamado Tema Nacional, durante os Anos de Chumbo, ganhou mais notoriedade, inspirando-se em práticas adotadas durante o Estado Novo, como: a mudança nos temas dos desfiles das agremiações e o uso de fantasias temáticas que pudessem exaltar vultos da História do Brasil. Durante os anos de 1970, foi uma prática comum de se ver a abordagem de temas históricos por parte das Escolas de Samba do Recife como O Período Holandês, O Século da Mineração, a figura dos Escravos, a exaltação aos representantes do Poder Executivo como Presidentes, Governadores e Prefeitos, entre outros, o que demonstra uma proximidade de ideias que nos permite concluir que o Carnaval de Chumbo se apropriou de muitas características desenvolvidas anteriormente pelo Estado Novo, quando se tentou evitar o chamado Carnaval de Sangue.

No entanto, durante os Anos de Chumbo, outras instituições somaram-se à Federação Carnavalesca no intuito de normatizar, organizar e disciplinar a festa: a principal delas foi a Comissão Organizadora do Carnaval (COC). Criada ainda durante a primeira gestão do Prefeito Augusto Lucena, foi definida pela Lei n° 9.355 de 14 de dezembro de 1964, presidida pelo Secretário de Educação e Cultura. Contava ainda com membros da Câmara Municipal, da Federação Carnavalesca, da Associação dos Cronistas, da Associação Comercial, da Federação das Indústrias, do Governo do Estado e outros quatro membros à escolha do Prefeito. Por meio de suas ações, a COC seria responsável por determinar uma subvenção financeira às agremiações, assim como aos carros que melhor se destacassem no Corso. Também a organização de um concurso de passistas e marchinhas carnavalescas que reuniriam os três tipos de frevo (bloco, canção e de rua), além de maracatus eram de sua competência. Igualmente se faz importante destacar que a “dotação nunca (deveria) ser inferior a um décimo por cento da estimativa da receita municipal” (SILVA, 2000, p. 292).

A COC então determinou locais específicos para que as manifestações do Carnaval acontecessem na cidade, de modo a direcionar cada ritmo, cada folguedo em um recorte espacial do centro da cidade do Recife. Nesse sentido, foram determinadas áreas como o Quartel General do Frevo, como ficou conhecida a Pracinha do Diário, o Corredor da Folia, nome que designava a Avenida Dantas Barreto e a Área do Frevo, como ficou conhecido o Pátio de São Pedro. Assim, em que pesem as contínuas leis e decretos, a instituição buscou valorizar o Carnaval Espetáculo em detrimento do Carnaval Participação, divergindo do

discurso empregado na imprensa na época27. Tal atitude fica evidenciada a partir da construção dos palanques e arquibancadas nos locais de festas, o que não somente servia ao discurso das autoridades como elementos organizadores dos locais de folia, mas principalmente atendia à segregação e distinção entre os foliões presentes no brinquedo.

Embora as ações da COC tivessem boas intenções, houve muitas falhas em relação à distribuição de verbas e tratamento dado às agremiações, o que tornou o órgão um tanto quanto obsoleto. Passando por uma renovação de preceitos e dos quadros administrativos, a COC passou a se chamar, a partir de 1972, de Comissão Promotora do Carnaval (CPC). Contando com um novo estatuto, a instituição foi regulamentada pela Lei n° 10.537 de 14 de setembro de 1972, estando vinculada à Empresa Metropolitana de Turismo (Emetur). Nas palavras de Silva (2000, p. 294), esta Comissão, “que nada inovou na sua missão de organizar a nossa festa maior, veio cair nos mesmos erros do passado e o Carnaval do Recife, em que pesem os protestos dos verdadeiros carnavalescos, continuou a ser uma imitação subcarioca28, valorizando o „espetáculo‟ em detrimento da participação coletiva”.

As queixas variadas demonstram que, mesmo com a criação de órgãos que deveriam estabelecer um senso de organização minimizado da festa, a mesma demonstrava que se reinventava e se adaptava às condições da realidade em que vivia, não necessitando ser regulamentada ou orientada por representantes que se autodenominavam grandes entendedores do folguedo e de suas necessidades. Somente o brincante, o folião, tinham a verdadeira dimensão e consciência do que o Carnaval de Chumbo poderia e deveria lhes proporcionar, assim como quais seriam os esforços medidos para que a farsa ganhasse contornos marcantes e se caracterizasse como uma marca da identidade pernambucana e recifense. Em outras palavras, seria concordar que toda sociedade possui um sistema de representações que determina a ordem social no qual vive por meio de sentidos. Por sua vez, estes determinam a circulação, reelaboração e instituição de crenças onde se apre(e)nde uma realidade por meio da ação coletiva de seus grupos (FERREIRA; ORRICO, 2002).

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No quarto capítulo, a descrição sobre como aconteceram os Carnavais de 1970 a 1975 traz igualmente um debate sobre as questões que norteavam classificar o Carnaval de Chumbo enquanto um carnaval participação ou uma festa espetáculo, feita para turistas.

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A referência feita ao termo subcarioca foi retratada no ano de 1966, em uma das notas escritas pelo sociólogo Gilberto Freyre na edição de 27 de fevereiro de 1966 do Diario de Pernambuco. Nesta, o mesmo acusava que o Carnaval do Recife estava passando por um processo de caricaturização do Carnaval Carioca e defendia uma preocupação em evitar aquela “despernambucanização” da festa, a começar pelo controle das escolas de samba até a valorização extrema do Frevo, do Passo, do Maracatu, do clube popular e tantas outras expressões de notoriedade que diferenciavam a farsa na capital de Pernambuco. Para uma reprodução dos escritos de Freyre, ver Silva (2000, p. 292-293).

Determinando esses pontos, chegamos a uma conclusão que, em certa medida, diverge da visão elaborada por Foucault: o poder produz a realidade por meio de campos de obediência e rituais que instituem a verdade. “O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nesta produção” (FOUCAULT, 2009, p. 185). Na realidade, a reivindicação de seu espaço por meio da brincadeira escrachada e de fazer o que era proibido demonstram que a máquina estatal não obtinha o controle de fato nem determinava a forma como o brincante e o folião se perceberam no Carnaval. Mais do que se perceber, era preciso que eles fossem percebidos pelos demais atores que faziam parte daquele momento farsesco, de modo a traduzir que o seu cotidiano representava o processo dialético das atividades humanas (FERREIRA; ORRICO, 2002), instituindo assim uma ordem paralela e uma reconstrução da imagem da festa e da sociedade por meio da liberdade sexual, do uso de psicotrópicos ou através do exagero na brincadeira.

Deste modo, o Carnaval de Chumbo estabeleceu seus pontos de inflexão e tornou seu cotidiano articulado em novas fronteiras que ultrapassavam a lei marcial. Ocorre que, em decorrência de tal comportamento, muitas características do brinquedo foram sendo alteradas e essas mudanças acabaram por promover um intenso debate na imprensa e nos meios intelectuais carnavalescos durante o período abordado na cidade do Recife: estaria o Carnaval do Recife morrendo ou ainda havia muita vida no mesmo? Não seriam as mudanças rituais de renascimento da festa e reinterpretação da realidade com base nos valores do passado e da tradição? São pontos a serem melhor considerados.

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