• Nenhum resultado encontrado

3. Caracterização das ideias dos principais colaboradores da Revista de Portugal

3.2. A atitude crítica de Moniz Barreto

A arte é vasta e a capacidade pessoal decisiva para a beleza das obras (Barreto,1892, p. 688)

O primeiro número da Revista de Portugal tem início com um artigo de quarenta páginas escrito por Moniz Barreto102 sobre A literatura portuguesa contemporânea103. O que anuncia, antes de mais, o lugar de destaque que a crítica literária deveria ocupar na Revista. De facto, no próprio prospeto-programa da Revista, Eça de Queirós constata que em Portugal a imprensa ainda não valoriza essa vertente literária.

Cabe, então, tentar demonstrar a importância de Moniz Barreto como precursor de ideias e debates que perpassaram toda crítica literária do século XX e procurar identificar qual foi a principal contribuição que o crítico trouxe para a modernização da mentalidade luso-brasileira.

Ora, antes de mais, convém sublinhar que à crítica literária sempre esteve associada a ideia de subjetividade. Com Barreto essa ideia foi alterada. Discípulo de Taine (autor responsável pelo método que Barreto aplica no exame das obras literárias), os temas estudados por Moniz Barreto inauguraram o discurso crítico contemporâneo, dando ao seu autor um caráter moderno e fundador da crítica intelectual da sociedade portuguesa e (nalguns casos indiretamente) brasileira.

Interessante, também, é notar que o Brasil sempre esteve muito presente na vida de Moniz Barreto; apesar de ter falecido prematuramente, com apenas 33 anos de idade, foi um observador atento do panorama cultural e da literatura se praticava no Brasil. Em Lisboa, foi

102

Guilherme Moniz Barreto foi jornalista e crítico literário. Nasceu em Goa, em 1863, descendente de uma aristocrática família portuguesa. Destacou-se por ser um dos poucos ensaístas portugueses que tentou uma via científica na crítica literária e uma abordagem positivista ao estudo da literatura portuguesa. Foi discípulo de Teófilo Braga. Grande parte da sua obra se encontra dispersa por vários jornais brasileiros, principalmente no Jornal do

Comércio.

103

companheiro de colégio e de estudos superiores do brasileiro Oliveira Lima, com quem manteve intensa correspondência até ao final da sua vida. Nessas missivas, Moniz Barreto (que se declara fascinado pela Alemanha) julga que a instabilidade política que se vivia no Brasil em 1894 tinha origem na proliferação de ideias francesas. Em julho de 1895, Moniz Barreto viveu no Recife, mas o meio desagradou-lhe. Seguiu depois para o Rio de Janeiro, mas sentiu-se doente. No entanto, foi contratado pelo Jornal do Comércio do Rio de Janeiro para ser colaborador em Paris, onde faleceu em 1896.

Passemos, então, a examinar o extenso estudo, publicado em 1888, intitulado A

literatura portuguesa contemporânea. Normativo, Barreto inicia o seu artigo procurando uma

definição para o seu objeto de estudo, a literatura, entendida como “um conjunto de obras escritas tendo um assunto geral e redigidas numa linguagem geral, e com maior rigor um conjunto de monumentos enunciando de um modo cabal uma conceção ou uma impressão da vida.” (1889, pp. 5-6). Ora, antes de mais, devemos lembrar que, ainda hoje, qualquer reflexão preambular sobre a literatura lança-se através de um vasto domínio constituído por fronteiras fluidas. Convém, também, não esquecermos que a distinção entre a literatura e as outras disciplinas é muito recente e apenas consolidou-se nos meados do século XIX. Assim entendemos que Barreto, no fundo, se propõe interrogar e explicar o mundo e emprega artifícios mentais que estão em voga na sua época. A literatura é, no caso, um discurso privilegiado de acesso ao imaginário das diferentes épocas. Ou seja, na sua conceção de literatura, Barreto ainda deixa espaço para o subjetivo, mas já entende que existe nessa atividade algo que extrapola as perceções sensíveis da realidade, enquanto escrita de uma “impressão de vida” que inclui tanto a filosofia como a história e até a política.

Dessa noção deriva a sua conceção de crítica literária: “a crítica representa uma conceção ou uma impressão da literatura” (Barreto, 1889, p. 6). Sublinhe-se, ainda, que Moniz Barreto acredita na existência de duas espécies de crítica: uma que tem por base a filosofia (a análise); e uma outra que tem por inspiração o gosto (as emoções). Na opinião de Barreto, ambos os géneros de crítica são válidos se forem utilizados em conjunto e de forma hierárquica: o crítico deve partir da análise filosófica para chegar até às emoções.

Opondo-se ao subjetivismo e ao intuitivismo, recorre aos estudos de Taine, nomeadamente às ideias expressas na Histoire de la littérature anglaise, entre as quais destacamos: “Trois sources différentes contribuent à produire cet état moral élémentaire, la race, le milieu et le moment.” (Taine, 1905, p. XXII). Aqui, para chegar a ideia do que é literatura, Taine conjuga os seguintes conceitos: o apreço pela raça (hereditariedade), o apelo do meio

ambiente, e o momento histórico. Nesse contexto, Moniz Barreto concebe a sua visão de literatura como um produto coletivo, determinado pelo meio e pelo momento e, portanto, necessariamente compreendido em termos nacionais. Nessa perspetiva, o crítico acredita que a literatura portuguesa da sua época sofra a intervenção do pensamento europeu, especialmente da Alemanha e da França: “O romance é feito à moda de França, a história à moda da Alemanha, a filosofia e a poesia à moda da França e da Alemanha” (Barreto, 1889, p. 26). Com um estilo claro, muito didático, cada parágrafo crítico de Barreto retoma e amplia um pouco a ideia de base do parágrafo anterior.

Assim, de forma a caracterizar a literatura nacional, Moniz Barreto sentiu a necessidade de descrever as literaturas das grandes nações ocidentais. Começou pela França, destacando o traço que a distinguia: “a inteligência, não o dom da compreensão profunda à maneira do alemão, mas uma espécie de razão ágil e simplista que extrai do objeto, por uma operação rápida e fácil, uma ideia incompleta e portátil” (id., pp. 10-11). A Inglaterra é apresentada como dotada de uma vocação prática, onde se destaca “A imaginação grandiosa e penetrante, a paixão intensa, a interioridade do sentimento, o vigor dos instintos morais” (id., p. 12). Já o espírito crítico é o traço que caracteriza a literatura alemã, aliado ao dom da compreensão universal e profunda. Na literatura italiana, Moniz Barreto destaca o “sentimento do útil” (id., p. 14), que estaria associado à imaginação.

Após analisar obras de alguns dos seus contemporâneos (entre os quais Antero de Quental, Guerra Junqueiro, Gomes Leal, Teófilo Braga, Eça de Queirós e Oliveira Martins), na conclusão do seu artigo, Moniz Barreto assegura que falta uma maior atividade crítica em Portugal e atesta que se verifica uma “regressão ao génio nacional” (id., p. 39). No entanto, a nova geração também tem um “vasto campo de atividade e de reforma” (id., p. 40).

Torna-se interessante aproximar, neste momento, com a distância que o tempo propicia, a ideia de literatura de Moniz Barreto àquela que era produzida no Brasil. Nas últimas décadas do século XIX a vida cultural brasileira era estimulada pela geração saída da “Escola do Recife” (centro intelectual da faculdade de Direito do Recife), de onde irradiava uma nova mentalidade em que se incorporavam o positivismo, o evolucionismo científico e o republicanismo. É nessa Escola do Recife que Sílvio Romero estuda Direito entre 1868 e 1873. Assim como Moniz Barreto, também Romero procura definir um campo de atuação para a literatura e questiona-se

sobre o que é a crítica. Ora, Sílvio Romero104 publica, em 1888, a sua História da Literatura

Brasileira, primeiro texto em que se encontra um empenho de “historiar” a literatura nacional, a

entendendo como expressão de certa realidade. O que é interessante é que Romero vai buscar ao determinismo de Taine: o conceito de meio. Ou seja, intelectualmente, Moniz Barreto e o primeiro grande historiador da literatura brasileira absorvem as suas principais ideias da mesma fonte: Taine. Ambos são partidários das novas filosofias europeias e investigam a formação da sociedade, fundamentados no determinismo da raça e do ambiente.

Outro brasileiro, José Veríssimo105 (1857-1916), que também pertenceu à geração de Sílvio Romero, sofreu a influência de vários pensadores franceses e, ao que tudo indica, do próprio Moniz Barreto. De facto, na introdução do seu livro História da Literatura brasileira: de

Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908)106, reeditado em 1963 pela Universidade de Brasília, o crítico Heron de Alencar ( 1963, p.17)destaca a admiração que Veríssimo mantinha pelo crítico português de quem adotou o conceito de Literatura.

E o que é Literatura para Veríssimo? “A Literatura é arte literária” (1963, p. 30). A partir dessa definição, o crítico brasileiro fará a separação entre uma visão histórica da literatura, presente no período colonial, e a “evolução” literária nacional. Tal como Moniz Barreto, Veríssimo centra a sua atenção na ideia de nacionalidade:

Não sei se é possível a existência de uma literatura inteiramente independente, sem uma língua inteiramente independente também. A língua é o elemento constituinte das literaturas, por isso já é de si mesma expressão do que há de mais íntimo, de mais individual e de mais característico em um povo. Só tem literatura própria, sua, original, os povos que têm língua própria. (…) Considero, portanto, a literatura brasileira como um ramo da literatura portuguesa. (Veríssimo, 1901, p. 6)

Não cabe aqui desenvolver a questão, mas apenas assinalar a convergência de pensamento de Barreto e Veríssimo no que toca à importância dada à nacionalidade. Concomitantemente, José Veríssimo destaca ainda o “bando de ideias novas” que formam o pensamento dos intelectuais da chamada “geração de 70” e defende um “modernismo” (de influência cosmopolita e onímoda)

104

Antes de Sílvio Romero a crítica era muito subjetivista, de matriz romântica. Textos sobre o “dom”, a “genialidade”, a “inspiração”, ou seja, sobre o que constituiria o processo criativo do autor, formava grande parte do que se entendia então crítica literária.

105

Em 1902 foi publicado o livro Homens e coisas estrangeiras, onde José Veríssimo descreve, com emoção, a primeira vez que partilhou o mesmo espaço físico com Eça de Queirós. O encontro deu-se em Lisboa num sarau literário no Teatro Trindade. Alguns anos mais tarde os dois escritores encontraram-se em Paris. No entanto, o brasileiro jamais tentou uma aproximação maior: “amando-o, não quis jamais conhecê-lo pessoalmente, por essa espécie de pudor indefinível que nos afasta de pessoas admiradas e queridas em silêncio.” (Veríssimo, 1902, 356).

José Veríssimo louvou a influência da obra queirosiana na literatura de língua portuguesa e ressaltou que “o Brasil não foi capaz de produzir nenhum naturalista que se lhe compare.”

106

capaz de desvendar as motivações da cultura nacional (Veríssimo, 1963, p. 29). Ou seja, mais uma vez, encontramos pontos de confluência com o pensador português. Afinal, Barreto destacou, várias vezes, a importância da circulação de novas ideias.

Apesar de breve, foi avultada a colaboração de Moniz Barreto na Revista de Portugal. No segundo volume107 encontramos um estudo sobre Paul Bourget108, onde Barreto fez uma análise

do romance O discípulo (cuja primeira edição é de 1889). Para já, convém assinalar que, ao contrário do que é habitual, o escritor Paul Bourget encontra-se muito traduzido para português109.

No terceiro volume da Revista de Portugal, a colaboração de Moniz Barreto é muito extensa e engloba tanto a crítica literária como crónicas sobre a política europeia. Oportuno será lembrar o estudo realizado na rubrica intitulada “Revista de Crítica Literária”110, onde Barreto analisou os lançamentos literários da altura. Interessante é notar que Moniz Barreto entende que esta secção da Revista tem uma vasta abrangência: “nesta secção especialmente reservada à notícia de obras recomendáveis à atenção pública pelo seu conteúdo filosófico de ideia ou pelo valor estético da forma” (1980, p. 764). Nesse contexto, entre as páginas 235 e 241 encontramos uma reflexão sobre o livro Um ano de crónica, de Manuel da Silva Gaio111.

Em primeiro lugar, Moniz Barreto resumiu o conteúdo do livro. Nessa observação, Moniz destacou o estudo que Gaio fez sobre o livro Os Maias de Eça de Queirós, afirmando que “as suas observações sobre o estilo do grande escritor revelam sobre formas nem sempre nítidas um sentimento delicado das coisas literárias” (id, p.237). Ou seja, na nossa opinião, Moniz Barreto reconheceu o talento crítico de Silva Gaio.

Poucas linhas depois, Barreto afirma que as composições mais teóricas de Manuel Silva Gaio são aquelas que ainda necessitam de maior maturidade para fugir da “anarquia mental

107

Na seleção de textos que Manuel Seabra realizou para a publicação do livro intitulado Moniz Barreto, de 1963, Seabra escolheu um texto, O pensamento moderno, e afirma que essa crónica teria sido publicada originalmente no segundo volume da Revista de Portugal. No entanto, tal crónica não consta de nenhum volume desta Revista.

108

Escritor francês (1852 /1935), Paul Bourget começou a ser reconhecido como crítico com Essais de

Psychologie Contemporaine, mas ficou conhecido com autor de vários romances.

109

Paul Bourget foi muito traduzido para português, encontrando-se nomeadamente as seguintes edições: (1910) O luxo dos outros. Trad. de Carlos Bento Maia. Lisboa: Guimarães &Ca; (1911) A água profunda. 2ª ed. Lisboa: Guimarães Editores; (192-) Um idyllio trágico. Costumes cosmopolitas. Lisboa: Aillaud e Bertrand; (192- ) Um crepúsculo. Porto: J. Pereira da Silva; (1926) O fantasma. Trad. Ana Castro Osório. Porto: Civilização; (1927)

Um divórcio. Porto: A. Figueirinhas; (1927) O dançarino mundano. Trad. Domingos Guimarães. Porto: Casa

Editora; (1928) Mentiras. Lisboa: Tip. Moderna 110

Cf Anexo I, Classificação temática. 111

contemporânea” (id, p.238) que seria provocada pelo ceticismo e pelo pessimismo. Acrescentando, no entanto, que Silva Gaio não sofre dessas afetações.

Ainda no terceiro volume destacamos uma crítica ao livro L’évolution des genres dans

l’histoire de la littérature, de Ferdinand Brunetière, crítico oficial da Revista dos dois mundos.

No quarto volume da Revista de Portugal, Moniz Barreto continua a sua crítica literária, mas, mais uma vez, estende o seu julgamento a outras secções da própria Revista, nomeadamente na elaboração de artigos sobre a atualidade, como: a “Revista de política europeia” e a “Situação geral da Europa e a política exterior de Portugal”. No entanto, consideramos que o estudo mais importante de Barreto é sobre a literatura portuguesa.

Assim, destacamos a crítica literária publicada no quarto volume, de 1892, onde Barreto versa sobre o livro Só de António Nobre112. Muito ousada para a época, a obra Só é emblemática do fim-de-século português, combinando a herança romântica com a estética do Decadentismo e do Simbolismo e, sem dúvida, Barreto captou muito bem a essência dessa obra: “O livro do sr. António Nobre é uma considerável manifestação de talento e um dos mais notáveis que se tem publicado ultimamente. O seu autor tem lembranças de grande poeta” (Barreto, 1892, p. 689).

Ora, pelo apresentado, estamos em condições de reconhecer Barreto como um importante mestre da crítica literária em Portugal e no Brasil. Não temos dúvidas de que o próprio Eça de Queirós também reconheceu o valor do crítico, nomeadamente na carta que escreveu a Luís de Magalhães, em 21 de outubro de 1891, onde afirmou: “Moniz Barreto (…) é, de natureza, um lento e um hesitante. (…) Mas como essaiyste, escritor de Revista, é de primeira ordem, e é forçoso aturá-lo.” (Queirós, 2008b, p. 152).

Retenha-se ainda que todo o cientificismo que Barreto demonstrou nos seus artigos da

Revista de Portugal é acompanhado de um tom pedagógico e todas as suas críticas estão apoiadas

em determinados juízos de valor. Ou seja, estão distantes da crítica literária jornalística atual, onde o jornalista não julga, apenas resume e comenta.

Dessa forma, através da prática interpretativa, com o seu processo de seleção de autores e pensadores, Barreto ditou gostos que foram reproduzidos tanto em Portugal como no Brasil.

112

António Nobre (1867-1900) nasceu no Porto e morreu com apenas 33 anos de idade. Em 1888 matriculou-se em Direito na Universidade de Coimbra. Desistiu e partiu para Paris, onde frequentou a Escola Livre de Ciências Políticas, licenciando-se em Ciências Jurídicas. De regresso a Portugal, tenta seguir a carreira diplomática, mas a tuberculose impede-o. Ocupou o resto dos seus dias em viagens, da Suíça à Madeira, em busca de remédio para o seu mal. Figura entre os grandes poetas de literatura portuguesa, com as obras Só (Paris, 1892),