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3. Caracterização das ideias dos principais colaboradores da Revista de Portugal

3.8. Os contornos da modernização

Se atentarmos ao que diz Giddens sobre a modernidade, que se trata de “uma ordem pós- tradicional, mas não uma ordem em que as certezas da tradição e do hábito tenham sido substituídas pela certeza do conhecimento racional” (2002, p. 10), então reconheceremos que a dúvida e a incerteza estão presentes à ideia do moderno, e também assim a transformação e a mudança. Nesse sentido, Giddens afirma que “a modernidade é a cultura do risco” (id. p. 11), onde o que é previsto para o futuro desejável é suscitado no presente como uma experiência atual. É justamente este espírito que encontramos em diversas crónicas da Revista de Portugal.

Podemos assim afirmar que os principais colaboradores da Revista de Portugal, ao produzirem leituras particulares dos dilemas do seu tempo, contribuíram com algumas ideias- chave e orientações gerais que promoveram o debate e abriram portas para a vivência de novas possibilidades de pensamento no âmbito da cultura luso-brasileira. Podemos destacar: Moniz Barreto, ao fazer a receção de novos parâmetros para a crítica literária, com base na orientação positivista, alinhou-se à moderna corrente do naturalismo e do realismo em França, representada sobretudo por Taine, o qual exerceu grande influência também no Brasil, como foi o caso de Sílvio Romero (1914, p. 37); também vemos uma significação luso-brasileira do texto “O tratado com a Inglaterra e a situação de Portugal” (1890, pp. 1-15), da autoria de Oliveira Martins, pois, ao questionar a viabilidade da política colonial portuguesa, o historiador está a promover o debate e a instigar uma mudança na antiga mentalidade que gerou o espírito brasileiro; quanto a Ramalho Ortigão, posicionando-se na esfera do mundo vivido em língua portuguesa, criticou como que em espelho os hábitos e costumes que encontrou no Brasil; mais ainda, destacamos que a Revista de Portugal aceitou a colaboração de três mulheres — Isabel Leite, Maria Amália Vaz de Carvalho e Alice Moderno — como autores de textos. Tal facto, só por si, é um indicador de um processo de mudança e inovação; e quanto ao brasileiro Eduardo Prado, sem receio de fazer

uso público de seu próprio entendimento — pois, contrariamente a boa parte da intelectualidade

brasileira, ele não acreditava no êxito da República —, nos dá um exemplo do compromisso ético que um autor deve ter com as verdades da razão, promovendo assim uma reflexão controversa, mas saudável do ponto de vista moderno, sobre o futuro do Brasil; finalmente, mas nem por isso menos importante, a participação de Antero de Quental teve uma importante significação ético-

moral na cultura luso-brasileira, nomeadamente com as suas novas Tendências gerais da filosofia — principalmente se considerarmos esta obra no contexto de sua atitude contestadora desde “Bom senso e bom gosto” (1865) —, comparativamente ao que se passava no Brasil àquela altura:

Até 1868 o catolicismo reinante não tinha sofrido nestas plagas o mais leve abalo; a filosofia espiritualista, católica e eclética, a mais insignificante oposição; a autoridade das instituições monárquicas, o menor ataque sério por qualquer classe do povo; a instituição servil e os direitos tradicionais do feudalismo prático dos grandes proprietários, a mais indireta opugnação; o romantismo, com seus doces, enganosos e encantadores cismares, a mais apagada desavença reatora (...) De repente, por um movimento subterrâneo, que vinha de longe, a instabilidade de todas as coisas que se mostrou e o sofisma do império apareceu em toda a sua nudez. A guerra do Paraguai estava ainda a mostrar a todas as vistas os imensos defeitos de nossa organização militar e o acanhado de nossos progressos sociais, desvendando repugnantemente a chaga da escravidão (...) Um bando de ideias novas esvoaçou sobre nós de todos os pontos do horizonte (...) Positivismo, evolucionismo, darwinismo, crítica religiosa, naturalismo, cientificismo na poesia e no romance, folclore, novos processos de crítica e de história literária (...) Tobias foi o mais esforçado combatente, com o senso de visão rápida de que era dotado. (Barreto, 1926, vol. X, p. XXVI-XXVII).

É interessante observar que a receção de ideias modernas no Brasil, com vistas ao interesse público como fim, e não apenas para abrilhantar o próprio discurso ou responder à glória pessoal, só começou a aparecer muito lentamente a partir da segunda metade do século XIX.

Mas não podemos deixar de assinalar que, ao longo da permanência da corte portuguesa no Rio de Janeiro (1808-1820), não só houve a contratação da famosa Missão Artística Francesa, que resultou na fundação da Escola de Belas Artes, como também ocorreu o primeiro curso de filosofia moderna no país (1813-1816), ministrado e publicado pelo filósofo português Silvestre Pinheiro Ferreira sob o título de Prelecções filosóficas. Nada disso, porém, era efeito de política pública, como também não foi o caso da fundação, no Rio de Janeiro, d’O Patriota (1813-1814), primeiro periódico no Brasil a publicar artigos densos e analíticos sobre ciências e artes, cultura e letras. (Kury, 2007, p. 9)

No sentido estrito, a modernização é o processo histórico de institucionalização, em todos os sectores da vida pública, do modo novo de orientar-se no pensamento que sucedeu ao da Escolástica, sobretudo quanto à mudança de método introduzida pelos matemáticos e pelos físicos no conhecimento da natureza. Mas essa mudança de orientação no pensamento que caracteriza o modo do ser moderno não é um processo restrito à lógica do conhecimento, senão

também ético e estético. Entendemos assim até porque a primeira instituição a ser modernizada, tanto em Portugal como no Brasil, foi a literatura.

Mas se a luta pela modernização da cultura de língua portuguesa tornou-se uma tendência histórica a partir do século XVIII, quando se descobriu a língua francesa como meio mais fácil de acesso às ideias da Ilustração, foi na segunda metade do século XIX que, mais do que seguir uma tendência, impôs-se o compromisso ético com o Sapere aude (Ouse saber!) iluminista, promovendo a moderna conceção da liberdade como sendo o direito de fazer uso público das próprias ideias, de fazê-las circular e promover a sua institucionalização. É neste sentido que vemos a contribuição ideológica da Revista de Portugal à modernização, em ambos os lados do Atlântico, simultaneamente.

CAPÍTULO IV

O FINAL DO SÉCULO EM REVISTAS

Nós somos apenas uns simples cronistas do tempo que vamos atravessando. Somos os contribuintes especiais do mês para a história geral do século. (Ortigão, 1992b, p. 63)