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Ramalho Ortigão e o quadro social da revolução brasileira

3. Caracterização das ideias dos principais colaboradores da Revista de Portugal

3.6. Ramalho Ortigão e o quadro social da revolução brasileira

Ramalho, principalmente, fez questão de modernizar nos portugueses as noções de conforto, de higiene, de profilaxia, de saúde, desenvolvendo nessa esfera um esforço que tem qualquer coisa da obra atual dos norte-americanos em zonas tropicais da América e na África. (Freire, 1978, p. 16)

A epígrafe de Gilberto Freire assinala o caráter modernizador da obra de Ramalho Ortigão122, desenvolvido principalmente n’As Farpas. Na Revista de Portugal o espírito é o mesmo, embora Ramalho só tenha publicado um único texto: um pequeno ensaio intitulado “O

quadro social da revolução brasileira”. Escrito em dezembro de 1889, foi reproduzido na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro seguidamente nos dias 27 e 28 de fevereiro e nos dias 1 e 2 de

março de 1890.

Diga-se desde já que a análise de Ramalho é um trabalho ponderado, que revela o modo como Ramalho sistematiza a sua vivência, durante três meses, do outro lado do Atlântico. Vejamos, em primeiro lugar, as circunstâncias em que foi elaborado. O artigo pretende explicar as razões da instauração república no Brasil e, para lá chegar, Ramalho faz uso das observações pessoais que recolheu, dois anos antes, na sua viagem ao Brasil.

Segundo informações recolhidas no jornal Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro (periódico onde Ramalho colaborava regularmente), a sua visita ao Brasil foi muito aguardada e inicialmente festejada. De facto, ao chegar ao Rio de Janeiro, no vapor Senegal, no dia 7 de

122

José Duarte Ramalho Ortigão nasceu no Porto a 24 de novembro de 1836. Viveu a sua infância numa quinta portuense com a avó materna. Em Coimbra, frequentou brevemente o curso de Direito, começando a trabalhar como professor de francês no colégio da Lapa, no Porto, em que seu pai era diretor, e onde foi professor de Eça de Queirós, entre outros. Envolveu-se na Questão Coimbrã com o folheto "Literatura de hoje", vindo a enfrentar Antero de Quental num duelo, de que resultou ferido. Atuou como escritor, jornalista, bibliotecário da Biblioteca da Ajuda e como oficial da secretaria da Academia Real das Ciências. Enquanto jornalista, colaborou nos seguintes jornais: Revolução de Setembro, Diário de Notícias, Diário Popular, Jornal do Comércio, Diário da Manhã. Foi convidado a escrever cartas semanais para a Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro. Escreveu nos primeiros anos do jornal satírico e de caricaturas António Maria, fundado por Bordalo Pinheiro; também publicou algumas biografias humorísticas no Álbum das Glorias, etc., sob o pseudónimo de João Ri baixo.

Em 24 de Outubro de 1859 casou com D. Emília Isaura Vilaça de Araújo Vieira, de quem veio a ter três filhos: Vasco, Berta e Maria Feliciana. Morreu a 27 de setembro de 1915 em Lisboa.

Em 1878 Joaquim de Araújo encomendou a Eça de Queirós uma biografia sobre Ramalho Ortigão. Eça escreveu um verdadeiro ensaio à obra e ao amigo: “É uma das personalidades eminentes do Portugal contemporâneo. Escrevendo na sua língua – é um mestre incomparável; satirizando o seu tempo – é um artista completo; vivendo a sua vida é um homem de bem. (Queirós, 2008a, p. 179).

Obras: Literatura de Hoje (1866); Em Paris (1868); Histórias cor-de-rosa (1870); O mistério da estrada de

Sintra (com Eça de Queirós, 1870); As Farpas (1871-1884); Banhos de Caldas e águas minerais (1875); As praias de Portugal (1876); Notas de viagem (1878); A Holanda (1885); John Bull (1887); O Culto da arte em Portugal

agosto de 1887, Ramalho “começou por conquistar simpatias e acabou por impor-se à admiração de todos. É de crer mesmo que este escritor seja mais estimado aqui que em sua pátria”. (1887, p. 1). Segundo o mesmo periódico, Ramalho foi recebido pelo seu irmão, o comendador Joaquim da Costa Ramalho Ortigão, um abastado comerciante do Rio de Janeiro e foi na sua casa, no Cosme Velho, que Ramalho ficou hospedado com a mulher Emília e a sua filha. Sublinhamos ainda que o irmão de Ramalho presidia ao Gabinete de Leitura e que, na altura da visita de Ramalho ao Rio, foi inaugurada a sede do Gabinete, tendo Ramalho proferido um discurso na cerimónia de inauguração.

Neste contexto, cresce a expectativa existente: todos aguardavam que Ramalho publicasse um livro sobre o Brasil, à semelhança do que acontecera com algumas das suas viagens anteriores (Paris, Inglaterra, Holanda, por exemplo). Ora, o livro sobre o Brasil nunca foi escrito e, à seguir a viagem de 1887, o texto mais marcante sobre o Brasil foi o publicado na Revista de Portugal, que podemos classificar como um típico relato de viagem. Ana Luísa Vilela constatou que Ramalho, ao falar da imagem do estrangeiro francês e inglês, procura acionar uma estratégia realista, referencial e tende a disfarçar as ideias desagradáveis por meio de expressões mais suaves:

As imagens do outro, construções narrativas entre os universos da experiência e do imaginário, operando a determinação do outro sobre o fundo de uma referência ao mesmo, participam sobretudo do processo ramalheano da criação de efeito de real: um real eufemizado e eloquente, de uma simplicidade aparatosa e sugestiva, enumerativa, descritiva, pitoresca, humoristicamente contrastada. Um real alegremente simplificado, que transforma as desgraças em anedotas. (Vilela, 2011, p. 28)

Mas será que essas características da narrativa também estão presentes no caso do texto publicado por Ramalho na Revista de Portugal? Julgamos que sim. Vejamos, então, muito resumidamente, alguns pontos essenciais sobre o que Ramalho pensava sobre o Brasil. Comecemos pela observação daquilo que Ramalho considera a “lesão” mais grave da sociedade brasileira:

É a viciação fundamental que o regime da escravatura, sobrevivente a uma velha ordem de coisas, caducamente prolongado através de instituições modernas, divergentes e contraditórias com ele, determinou na educação doméstica e na educação civil, pervertendo nas suas origens a formação normal do caráter do homem e do cidadão (Ramalho, 1890, p. 80).

Pedagogicamente, Ramalho continua a atribuir muita importância à transformação dos costumes e hábitos e defende que no Brasil deverá suceder “um longo trabalho de educação (…) de renovação dos sentimentos e nas ideias” (ibid.).

O Brasil é visto como um prolongamento de Portugal e o brasileiro uma extensão do português: a tal ponto que, com apenas três anos de Brasil, um antigo criado lisboeta apresenta todos os preconceitos e erros do homem livre no Brasil que não obedece a hierarquias. Um país onde ninguém respeita os letreiros, onde os empregados de mesa se recusam a usar uniforme, onde um homem branco não engraxaria os sapatos a um negro, onde os condutores dos elétricos não toleram obrigações, pois “obrigação é de escravo!” (id., p. 83).

Valores como o servilismo e o parasitismo social são destacados e Ramalho chega mesmo a enumerar os pontos fracos da civilização brasileira: “abastardamento do trabalho, constituição da ociosidade organizada, decomposição da disciplina e desonra do respeito” (id., p. 90).

Como educador, Ramalho não pode fugir do tema do ensino. Nesse aspeto, o ex-professor aproveita para criticar Portugal e assinalar que o afastamento dos jesuítas, dos dois lados do Atlântico, trouxe terríveis consequências:

No Brasil como em Portugal, o liberalismo empírico da administração moderna aboliu nas escolas a disciplina eclesiástica dos jesuítas, nossos primeiros e mais competentes mestres, sem cuidar em a substituir por outra coisa. É incalculável o atraso que tal desleixo tem resultado para o aperfeiçoamento físico e moral de umas poucas gerações (…) Os educadores modernos nunca souberam fazer, entre portugueses e brasileiros, senão seres banais ou descomedidos, refratários, contraditórios e rebeldes. (id., pp. 91- 92)

Recorde-se, ainda que Ramalho assinala que “a educação física é desconhecida no Brasil” (id., p. 94). Não temos dúvidas de que para Ramalho Ortigão o desporto e o exercício físico eram imprescindíveis. Sublinhe-se, ainda, que segundo aponta o escritor, os cariocas não andam a pé. Ou seja, nos homens “os ombros são estreitos, os pulsos finos, as mãos esguias, fragilmente articuladas e moles” (id., p. 95).

O escritor demonstra conhecer bem a imprensa brasileira e os seus vícios e, tal como aconteceu n’As Farpas, não aceita a simplicidade plebeia da monarquia brasileira, destacando as despretensiosas dependências internas do Palácio de São Cristóvão. Ramalho Ortigão procura, também, relacionar a queda da monarquia com a abolição da escravatura.

Uma breve, mas especial atenção merece o universo gastronómico brasileiro, povoado por feijoadas, moquecas, angus e vatapás, onde Ramalho tece uma caricatura123 e faz sentar à mesa

123

A arte de fazer caricatura compreende várias fórmulas que, segundo Sousa, se entrelaçam com as técnicas de sátira. Assim, na ampliação “utiliza-se uma cópia fiel do natural, acentuando o que sai do normal”. (Sousa, 1988, p. 31). Na literatura, “seria tornar mais enfático aquilo que já é característico, como por exemplo, um vício…” (id, p.31).Na simplificação, “utiliza-se a cópia fiel dos traços característicos, desprezando as deformações inúteis” (ibidem). Não perdendo de vista a realidade, deixa-se de trabalhar com todos os elementos que não são essenciais e característicos, esquecendo os elementos secundários do objeto caricaturado. No nosso caso, Ramalho

mais de cinquenta comensais exóticos que rodeiam o “sinhô” e a “sinhá”: há rendeiros, agregados, viscondes, brigadeiros e coronéis, comendadores, capangas espadaúdos, arrieiros anedóticos, caipiras maliciosos, capadócios sentimentais e, claro, jovens bacharéis.

Cabe, ainda, uma breve atenção à forma como tal artigo repercutiu no Brasil. Segundo Eça de Queirós, “O artigo do Ramalho suscitou uma medonha polémica através de toda a imprensa, e em que o Ramalho é desancado sem misericórdia. Asno e poseur são os nomes mais doces com que o esmagam.” (Queirós, 2008b, p. 46). De facto, na Gazeta de Notícias, nos dias 6 e 8 de março de 1890, encontramos dois artigos assinados por Pardal Mallet (jornalista e romancista brasileiro) que destacam a superficialidade e a retórica antipática do texto de Ramalho.

É interessante ressaltar que Ramalho aspira, com toda a sua crítica caricatural, encontrar um Brasil moderno, independente e civilizado. Nesta perspetiva, a imagem do Brasil se confunde com a imagem de Portugal, e Ramalho corporiza um discurso que pode, em vários aspetos, ser comum aos dois lados do Atlântico. Por outro lado, através da caricatura, surge o discurso narrativo que destaca os vícios e ar exótico do Brasil.