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Indícios de modernização nos textos queirosianos da Revista de Portugal

2. Eça de Queirós e a Revista de Portugal

2.3. Eça e a Revista de Portugal

2.3.3. Indícios de modernização nos textos queirosianos da Revista de Portugal

O modernismo não é só rebelião contra si próprio, é simultaneamente revolta contra todas as normas e valores da sociedade burguesa. (Lipovetsky, 1983, p.78)

Após analisar a prestação jornalística de Eça de Queirós na Revista de Portugal, será interessante procedermos, ainda, no quadro desta reflexão avaliativa, a uma breve análise sobre qual seria a contribuição queirosiana, nos textos de imprensa, para a discussão sobre a necessidade de modernização.

Lembremos, em primeiro lugar, que existe uma reflexão, realizada por Ana Nascimento Piedade, sobre a abertura da obra queirosiana à modernidade. Neste estudo, é importante referir, a autora baliza a sua análise na simbólica personagem que foi Carlos Fradique Mendes. Como apurou Ana Nascimento Piedade, Fradique rebelou-se contra as normas da sociedade burguesa:

Para compreender as motivações intelectuais e culturais que enquadram o Fradiquismo, convirá ponderar o facto de que ele se encontra no limiar de uma determinada modernidade: aquela que a chamada cultura modernista representou, ao comandar uma activa e radical destruição dos entediantes preceitos da vida burguesa (…) De notar que esta mesma burguesia, tendo revolucionado a sociedade em termos económicos, pela ampla liberalização ao nível da produção e das trocas, tinha, em contrapartida, conservado a ordem natural (e moral) que propiciara esse desenvolvimento, numa esfera disciplinar rígida e autoritária. (2003, p. 285)

Mas, será que tais conceções também estão presentes nos textos de imprensa da Revista? Julgamos que sim. Afinal, é impossível desprezar o que Queirós escreveu em 1878:”É necessário acutilar o mundo oficial, o mundo sentimental, o mundo literário, o mundo agrícola, o mundo supersticioso – e com todo o respeito pelas instituições que são de origem eterna, destruir as falsas interpretações e falsas realizações que lhes dá uma sociedade podre” (2008a, pp. 183-184). Acreditamos que essa mesma ambição persiste na altura da existência da Revista de Portugal. Em síntese, podemos afirmar que em todos as suas crónicas, Eça de Queirós assume uma postura de vanguarda e procura superar diferenças internas.

Afinal, no nosso entender, na crónica “El-Rei D. Luís”, (volume 1, 1889, pp. 625-629, comentada na página 73 deste trabalho) o escritor procura a racionalidade no poder político. Observemos um aspeto importante: na monarquia os rituais e símbolos ocupam um lugar de destaque e há uma afirmação constante das diferenças hierárquicas. Eça de Queirós no entanto, ao invés de enaltecer o ritual fúnebre ou a própria etiqueta, dá enfase a uma nova imagem mental do poder. Ou seja, a tradição é reinventada no sentido de dar continuidade e fazer sentido para o momento observado. Nesse movimento, Queirós transforma a nação numa “comunidade afetiva” no sentido de tentar encontrar coerência e sentimentos comuns que reorganizem a memória e que impliquem pensar num território unido. É assim que D. Luís, comparado a São Francisco de Assis se transforma em “Luís o bom” (1995, p. 52). Eça de Queirós destaca ainda como características de D. Luís: o “espírito liberal”, ser “acessível às inovações”, e estar “inclinado às

reformas” (ibidem). Todas essas características evidenciam a urgência que Eça sentia de modernização no poder político.

Além disso, acreditamos que quando Eça de Queirós exalta o espírito liberal de D. Luís, está a mencionar a ideia de progresso e razão associada ao liberalismo, que defende uma sociedade caracterizada pela livre iniciativa integrada num contexto definido. Tal contexto geralmente inclui um sistema de governo democrático, o primado da lei, a liberdade de expressão e a livre concorrência económica. O liberalismo rejeita diversos axiomas fundamentais, tais como o direito divino dos reis, a hereditariedade e o sistema de religião oficial. Os princípios fundamentais do liberalismo incluem a transparência, os direitos individuais e civis, especialmente o direito à vida, à liberdade, à propriedade, um governo baseado no livre consentimento dos governados e estabelecido com base em eleições livres; igualdade da lei e de direitos para todos os cidadãos. Reconhecer tais características de pensamento num monarca ajuda, sem dúvida, a refletir sobre as relações complexas que se estabelecem entre a política mais tradicional e o desafio de novos valores mentais.

Uma outra auscultação interessante encontra-se na crónica que foi analisada na página 75 desse trabalho, e que corresponde a secção “Notas do mês” (no volume I, 1889, pp. 777-783). Nessa crónica, relembramos, Eça sublinha que todos no Brasil eram republicanos, inclusive o imperador. Trata-se de uma representação tradicional excessivamente nova: D. Pedro II não fortalecia o poder que simbolizava. Trata-se, como é claro, de um paradoxo, até certo ponto humorístico96. Afinal, um imperador, por definição, não pode ser republicano. Assim estamos perante uma espécie de um conflito entre o “antigo” e o “novo”. Tal ideia é reforçada quando Queirós destaca o facto de D. Pedro II, por ser um homem muito culto, não acreditava no direito divino.

Tais paradoxos, ao mesmo tempo em que demonstram supostos benefícios (como a ideia de um regime republicano que poderia simbolizar o progresso para a sociedade), concomitantemente sustentam a emergência de conflitos no seu seio. Ou seja, podemos pensar que no próprio imperador estão contidas as coordenadas de uma via fundamentalmente inovadora, mas ao mesmo tempo inviável, por encerrar uma contradição radical.

Quando Eça de Queirós escreve sobre “O Ultimatum” na crónica intitulada “Notas do mês”, volume 2, 1890, (texto analisado nas páginas 77 a 80 desta pesquisa) despreza o sentimento

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Gilles Lipovestsky lembra que “no século XVIII, o riso livre torna-se um comportamento desprezado e vil e, até ao século XIX, será considerado baixo e de mau tom, tão perigoso como o tolo, encorajando a superficialidade e mesmo a obsenidade” (1983, p. 130). Ou seja, durante muito tempo o cómico se opôs às normas sérias, ao sagrado e ao Estado.

antibritânico que se apoderava da sociedade portuguesa. Desta forma, ao promover o debate e procurar vencer a forte resistência da política interna portuguesa, Queirós está a contribuir para o processo de modernização da sociedade que procurava avançar rumo ao novo e ao diferente.

É inquestionável que esse mesmo espírito também está presente na crónica queirosiana, “Novos fatores da política portuguesa”, publicada em 1890, no segundo volume da Revista de

Portugal. Este texto é, reafirmamos, até certo ponto atípico em Eça (a ponto de se ter duvidado da

sua autoria, como descrevemos na página 80 deste trabalho. Aqui, Eça elabora uma meditação sobre o que aconteceu em Portugal a seguir ao Ultimatum: num primeiro momento, existiu a esperança de mudança, mas passado algum tempo tornou-se evidente que não persistia em Portugal nenhuma atividade de reorganização nacional.

Apesar de as ideias centrais do texto queirosiano já terem sido desenvolvidas na secção 2.3.2 deste trabalho, do nosso ponto de vista cabe ainda acrescentar algumas observações. Até que ponto a crónica “Novos fatores da política portuguesa” reflete os sintomas da decadência, de pessimismo? Será vencidista? O descompasso com a Europa moderna originou uma certa mentalidade decadentista, analisada por vários autores. Por exemplo, Joel Serrão assinalou que esse pensamento, que duvidava do porvir, exigia um empenho constante de atualização:

A polémica multissecular entre castiços e estrangeirados, entre messianismos de estipe vária (como, por exemplo, o sebastianismo) e esforços de actualização cultural e técnica, não é mais, em última instância, que um aspecto dessa percepção entre o tempo português e o europeu transpirenaico” (1983, p. 13).

Acreditamos que a crónica queirosiana confirma este espírito decadentista. Aliás, a correspondência de Eça de Queirós também comprova que o pessimismo era a nota dominante:

Concorre para isso talvez a atmosfera de pessimismo em que os nossos amigos vivem. A ideia geral é que o país está na véspera da ruína. Oliveira Martins não cessa de profetizar catástrofes com voz sombria. Todas as noites é o mesmo sermão. Sai a gente de casa dele aterrado. Não é só pelos males do país, mas pelos males individuais, que se devem seguir como consequência dos males públicos. Segundo esse O. M. à bancarrota pública vai seguir-se a miséria de todos. (Queirós, 2008b, p. 57).

É precisamente este negativismo de timbre decadentista que está presente nas reuniões dos Vencidos da Vida – grupo de amigos que se reuniam, entre 1887 e 1893, quer no Café Tavares, quer no Hotel Bragança, quer em casa de alguns dos seus componentes.

Foi nesse clima de inquietação pessimista que Eça escreveu textos de imprensa que serão eternos, ainda que extraídos do transitório de uma publicação finissecular. Embora talvez derivado do pessimismo finissecular, agravado no caso português pelo contexto que já

descrevemos, este texto de Eça, como o próprio projeto da Revista, na sua globalidade, parecem- nos testemunhar uma esperança fundamental e profundamente moderna: precisamente a da confiança depositada na comunicação, na discussão, no debate público, informado, múltiplo e vibrante. Um contexto de mudança, onde a sociedade “substitui a coerção pela comunicação” (Lipovetsky, 1983, p. 17).