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5 ATIVIDADE DE ENSINO, LÍNGUA INGLESA, EDUCAÇÃO, TRABA-

5.2 Atividade docente, material didático e cidadania

O material didático é parte importante de um curso de línguas. Pode ser de diferentes gêneros, com textos mais ou menos autênticos. Pode ser adquirido em um pacote, como um livro didático ou preparado pelo professor. Como parte do Programa Nacional do Livro Didático (doravante PNLD), os professores das escolas públicas selecionam o livro que utilizam em suas aulas. Não é diferente para língua inglesa e essa questão aparece nos dados levantados nesta pesquisa, que apontam para questões de diferentes ordens vivenciadas por professores.

92 Como visto na nota de rodapé de nr. 12, refiro-me ao artigo 205 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (BRASIL, 1988).

Queremos discutir alguns problemas na relação entre atividade docente e material didático, da perspectiva da cidadania, que aparecem em vários momentos, como quando PS4 afirma que:

Então, a gente escolheu esse [livro didático] e veio, graças a Deus. Porque normalmente não vem. Geralmente... Você... Tem 3... Vota... Vem o que a gente menos votou, né? Toda vez é isso. E esse ano veio. E esse livro... [...] Eu acho que ele vai ajudar a gente a trabalhar tudo, porque ele começa... ele trabalha com... Tem muita coisa assim, muito da realidade deles, porque já começa trabalhando com... perguntando... é... talento que eles têm. Então vai falar em talentos. Tem aquele menino que gosta... que toca violão, que dança, que faz street dance... e o livro trabalha muito isso.

Há vantagens e desvantagens na adoção de um livro didático. Há quem seja favorável e quem seja contra sua adoção. Essas duas perspectivas chocam-se no cotidiano das escolas e esse choque cria tensão. Dessa tensão surgem sentidos que circulam no discurso dos PS. Vejo essa tensão materializada na relação entre as formulações que destaquei nos trechos que acabo de citar. Discuto a seguir três trechos para mostrar a tensão que vejo. Primeiramente, chamo a atenção para o momento em que PS4 afirma que Então, a gente escolheu esse [livro didático] e veio, graças a Deus. Porque normalmente não vem. Geralmente... Você... Tem 3... Vota... Vem o que a gente menos votou, né? Toda vez é isso. E esse ano veio.

Nas formulações sublinhadas, PS4 dá voz a um discurso que afirma que livro didático é algo bom, desejável. Ele é resultado de uma ação do/a docente, já que o escolhe, como afirmado em a gente escolheu esse [livro didático]. PS4 se põe nessa posição ao enunciar a gente. PS4 expressa a ideia de que livro didático é algo positivo ao enfatizar a felicidade ao recebê-lo, como se vê em e veio. Reforça ainda essa posição ao enunciar graças a Deus. Mais uma vez, essa posição de um sujeito que defende o livro didático aparece em E esse ano veio.

Passo a outro trecho, também enunciado por PS4. Neste trecho, PS4 fala de uma atividade que preparou para seus alunos. PS4 justifica sua atitude com o argumento de que o livro didático a ser usado com a turma ainda não havia chegado. Apresento o trecho todo que abordarei agora para, então, focalizá-lo em dois momentos. Para cada momento, retomarei a parte do trecho relevante. Julguei importante apresentar o trecho completo para que os enunciados que analisei possam fazer sentido do modo como entendi. O trecho todo é este:

No meu caso, nos primeiros anos, eu comecei trabalhando, apesar de grande dificuldade, mas eles fazendo autobiografia. Depois, eles trabalharam um entrevistando o outro. Dei questionário, tudo... trabalhei com eles. E eles estão construindo um textinho, fazendo o perfil do colega em inglês. [incompreensível] E daí, porque não tava usando o livro. O livro não chegou

pra todo mundo. Então... Ainda não tinha sido entregue... Então, eu levei... [...] Não tinha o livro ainda. Tinha na escola, mas não dava pra todos. Então, eu levei material, já sabendo que não ía dar pra todo mundo. Então, já comecei agora... depois de uma reunião... muita confusão... Alguns professores decidiram pegar. Não tem pra todo mundo. Vamos pegar 40 livros e botá no nosso armário. E os meninos vem buscar... quando a gente precisar, né?

Chamo a atenção agora para esta formulação, que é parte do trecho acima, apresentando a análise a seguir:

No meu caso, nos primeiros anos, eu comecei trabalhando, apesar de grande dificuldade, mas eles fazendo autobiografia. Depois, eles trabalharam um entrevistando o outro. Dei questionário, tudo... trabalhei com eles. E eles estão construindo um textinho, fazendo o perfil do colega em inglês. [...] eu levei material [...]

Se, no trecho anteriormente analisado, PS4 se identifica com um grupo maior de professores, como dado por a gente, neste trecho PS4 se separa desse grupo, como dado pelo pronome possessivo meu em No meu caso e reforçado pelo uso da primeira pessoa do singular em eu comecei trabalhando, Dei questionário, trabalhei com eles e eu levei material. Após se posicionar como indivíduo, PS4 discorre sobre a atividade que preparou, em que seus alunos são sujeitos de ações discursivas, como posto em eles fazendo autobiografia, eles trabalharam um entrevistando o outro e eles estão construindo um textinho, fazendo o perfil do colega em inglês. Nesse trecho, PS4 se posiciona como autor/ade uma atividade didática e põe seus alunos como sujeitos de suas ações. Passo agora à próxima formulação, que faz parte do trecho maior enunciado por PS4, apresentado acima:

E daí, porque não tava usando o livro. O livro não chegou pra todo mundo.

Então... Ainda não tinha sido entregue... Então, eu levei... [...] Não tinha o livro ainda. Tinha na escola, mas não dava pra todos. Então, eu levei material, já sabendo que não ia dar pra todo mundo.

PS4, por meio de daí, porque não tava usando o livro inicia a exposição do motivo que o/a levou apreparar a atividade de confecção de biografia, descrita anteriormente. O motivo é o fato de que O livro não chegou pra todo mundo. Entendo que PS4 julgue de grande importância a utilização do livro didático, já que o fato de o livro didático, selecionado pelos/as docentes da escola não ter chegado, é reforçado repetidas vezes em Ainda não tinha sido entregue, Não tinha o livro ainda. Tinha na escola, mas não dava pra todos e não ia dar pra todo mundo. Entendo que isso seja de grande importância porque esse mesmo enunciado se materializa diversas vezes, formulado de modos diferentes.

A tensão que quero discutir se materializa quando PS4 assume uma posição de sujeito autor de material relevante para seus alunos por ser representante de sua realidade – eles fazendo autobiografia – e, ao mesmo tempo, de um sujeito que anseia pela chegada de um livro didático que é recebido como uma panaceia, como se vê na formulação E esse livro... [...] Eu acho que ele vai ajudar a gente a trabalhar tudo. A conjunção aditiva E ganha destaque em dois momentos: posta no início do período confere um acréscimo de sentido para o que PS4 diz: não se trata apenas da chegada do livro. Não se trata apenas de um livro didático qualquer. Trata-se da chegada de um livro especial, resultante de uma escolha – a gente escolheu esse [livro didático]. Posta no meio do período – e veio – reforça a impressão de um misto de alegria e surpresa. A chegada desse remédio para a cura de todos os males é atribuída a uma intervenção divina – graças a Deus.

Por fim, volto ao subtítulo desta parte – Atividade docente, cidadania e material didático. Para discuti-lo, apresentei um trecho que dividi em duas formulações. Compreendo esse trecho como momento privilegiado para ver como os temas atividade docente e material didático estão constituídos pelo tema da cidadania de um modo especial que revela a perspectiva de PS4 e, por extensão, a perspectiva dos outros PS, já que todos concordaram com PS4 no momento da fala por meio de um movimento de cabeça aquiescente. A perspectiva de PS4 é a de alguém que, a partir de minha análise, acredita que as atividades do livro didático são superiores em valor àquelas que PS4 possa criar de modo autoral. Para mim, a atividade cidadã está no entrecruzamento de duas ações: a primeira refere-se à atividade autoral de PS4 ao preparar o material para seus alunos; a segunda refere-se à proposta da própria atividade, que oferece espaço para que esses mesmos alunos falem de si e de seus colegas. Nessa atividade, os alunos narram-se a partir de uma interação real, portanto, significativa para eles.

Concluo que PS4 representa esse momento de sua autoria como algo a que chamo de cidadania de segunda classe pelo modo como se refere ao produto: eles estão construindo um textinho, fazendo o perfil do colega em inglês. PS4 usa do diminutivo em textinho para se referir ao resultado de um trabalho autoral. De minha parte, eu teria utilizado caixa alta e teria dito TEXTO, pois vejo um período que dá voz a um enunciado que quer materializar uma aspiração da educação: posicionar o aluno como sujeito de sua história. Temos todos os requisitos discursivos na formulação de PS4. [E]les os põem como sujeitos de dois predicados, a saber: estão construindo um textinho e estão fazendo o perfil do colega em inglês. Interpreto a opção pelo diminutivo em textinho como a materialização da naturalização do apagamento

da cidadania do aluno da escola pública, que, então, efetivamente se torna uma cidadania de segunda classe. Esse apagamento se dá também com relação à cidadania do/a próprio/a PS, por conta da diminuição do resultado de um trabalho de sua criação, tendo em vista a realidade que o/a cerca, além de significativo para seus alunos. E, assim, na relação entre atividade docente e material, vemos um grande problema da perspectiva da cidadania.