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Neste último item, deste capítulo, discuto as relações entre a noção de representações sociais e a atividade linguageira. Proponho, assim, a noção de referenciação como suporte lingüístico-discursivo para a análise das transformações das representações sociais, das duas (alunas)professoras, acerca do texto, da leitura e de seu ensino. Esta análise será apresentada no capítulo V.

Os psicólogos e os sociólogos, em geral, referem-se ao discurso em suas pesquisas acerca das representações sociais, reconhecendo muitas vezes a necessidade de considerá-lo em suas análises, mas negligenciam o papel constitutivo do discurso nas representações sociais, negligenciam o discurso enquanto “lugar de expressão” das práticas sociais e, conseqüentemente, das representações (cf. Grossmann & Boch, 2003). No dizer dos autores, “o que é uma representação social não verbalizada, e sobretudo como acessá-la se não pela linguagem?”1 (id, p.11).

A união destes dois paradigmas é complexa, mas tomando-se, como referência, o quadro metodológico desta pesquisa – a perspectiva qualitativa- interpretativista - é possível vislumbrar as representações sociais via atividade lingüístico-discursiva, ao se ter como referencial, para a análise, as práticas sociais efetivas dos sujeitos envolvidos.

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Luciane Manera Magalhães Em outras palavras, é preciso considerar que para acessar as representações sociais faz-se necessário passar pela linguagem, a qual pode ser utilizada como recurso de evidenciação das representações. Ressalte-se, porém, que este acesso às representações, via linguagem, pode-se dar pelo menos de duas formas, uma, como tem feito a tradição, através da análise daquilo que se fala sobre o objeto de representação, fora do contexto onde a representação social daquele objeto orienta a ação do sujeito ou grupo. Uma outra forma de acessar as representações sociais, de um determinado objeto de conhecimento, seria aquela em que os dados fossem gerados na própria prática social em que se constituem as representações, não através do discurso, por exemplo, sobre o ensino da leitura na escola fundamental (em que o pesquisador pergunta: “O que é leitura?”), mas através da análise do discurso do professor ao ensinar a leitura na escola fundamental, a partir da hipótese de que os enunciados proferidos nessa situação estariam evidenciando o papel das representações nas ações do professor.

A diferença sugerida entre essas duas formas não é só metodológica, mas também epistemológica. Do ponto de vista metodológico mudam-se os instrumentos de pesquisa (de questionários e entrevistas, como únicos instrumentos) para uma variedade de instrumentos que possibilitem o acesso às representações, sobretudo, em seu “lugar de expressão”. Do ponto de vista epistemológico o que é diferente é a concepção que se tem do conhecimento. Noutros termos, a primeira forma de acessar as representações, citada acima, tem como subjacente a construção do conhecimento como um processo independente da linguagem em funcionamento, enquanto a segunda está alicerçada na idéia de que a linguagem é constitutiva do conhecimento, portanto das representações sociais e das práticas sociais a elas relacionadas.

Cabe considerar, ainda, que apesar da diversidade das esferas da atividade humana, todas elas estão sempre relacionadas à atividade discursiva, que se caracteriza pela presença de três elementos indissolúveis, a saber, o seu conteúdo temático, o seu estilo verbal e a sua construção composicional (cf. Bakhtin, 1979:279).

Representações Sociais da Leitura Em outras palavras, pode-se dizer que a atividade linguageira revela um sujeito, situado em um momento social, cultural e histórico, que fala (a alguém) de um determinado lugar, status social. Um sujeito que interpreta a realidade pela/na linguagem, através da qual se mostra ao fazer suas escolhas acerca do que fala (conteúdo temático), como fala (escolhas lingüísticas), quando fala (momento social, político, econômico, cultural) e, sobretudo, de onde fala (status social) e para quem fala (seus interlocutores). Isto porque toda forma de enunciação pressupõe um interlocutor, mesmo a forma imobilizada da escrita, é uma resposta a qualquer coisa e, portanto, a alguém e sua enunciação (cf. Bakhtin, 1995:98).

Em outras palavras, por mais monológico que seja um enunciado, ele sempre “responde”, de uma forma ou de outra, a enunciados do outro proferidos anteriormente (Bakhtin, 1979:317,319); “... o enunciado está ligado não só aos elos que o precedem mas também aos que lhe sucedem na cadeia da comunicação verbal” (id.ib. 320). Esta inter-relação constante entre enunciados, as retomadas manifestas através de idas e vindas caracterizam um dos conceitos fundamentais da teoria bakhtiniana, o de dialogismo.

No contexto da presente pesquisa, o discurso das (alunas)professoras, nos relatos produzidos nas oficinas reflexivas (formação continuada) e nas aulas produzidas em seu local de trabalho (escola de ensino fundamental) caracterizaria suas ‘respostas’ tanto aos enunciados proferidos pelo ‘outro’ anteriormente, quanto a seus interlocutores presentes no momento da enunciação, a saber, a professora universitária e seu discurso formador, seus colegas do curso de especialização, a pesquisadora, ou seus alunos na escola fundamental. Pode-se dizer que essas ‘réplicas’, no contexto de aprendizado formal de educação continuada, caracterizam o processo de transposição didática operado pelas (alunas)professoras que acontece como uma resposta ao ensino que está desestabilizando e criando conflitos nas suas representações.

Luciane Manera Magalhães É com base neste enfoque teórico, através de uma perspectiva textual- discursiva, que proponho a metodologia de análise, lingüístico-discursiva, das (trans)formações das representações sociais das duas (alunas)professoras, RAQUEL e DÉBORA. Corroborando com Mondada & Dubois (1995), considero que “... as categorias e os objetos do discurso pelos quais os sujeitos compreendem o mundo não são nem preexistentes, nem dados, mas se elaboram no curso de suas atividades, transformando-se a partir dos contextos” 1 (p. 273). Isto não significa que tudo seja construído, pelo sujeito ou grupo, a cada momento a partir de um zero cognitivo (cf. Marcuschi, 2003:5), mas que “quando alguém fala sobre o último lançamento de um livro, por exemplo2, o interlocutor sabe que está falando de um livro e não de uma revista ou de uma agenda, mas só saberá a qual livro se refere, se já o conhece ou não, no desenrolar da conversação”. Em outras palavras, o referente do discurso é construído na interação, mas isto não significa que a noção de livro, no exemplo acima, seja construída nesta conversação.

Na presente pesquisa, analiso, então, a construção dos objetos de conhecimento, que são relevantes aos objetivos deste trabalho, como a leitura e o texto, a partir da identificação das escolhas lingüísticas, salientadas através das seleções lexicais, nomeações e repetições que evidenciam os processos de referenciação desses objetos no discurso das (alunas)professoras.

A referenciação pode ser compreendida como o processo, na enunciação, por meio do qual os sujeitos constituem os objetos do discurso, nomeando, definindo, explicando, para se remeterem ao mundo. Nas palavras de Rastier3 (apud Mondada & Dubois, 1995:276), a referenciação não diz respeito a “uma relação de representação

1 « … les catégories et les objets de discours par lesquels les sujets saisissent le monde ne sont ni préexistants, ni

donnés, mais s’élaborent au fil de leurs activités, en se transformant selon les contextes ».

2 A semelhança desse exemplo com o proposto por Marcuschi (2003) não é uma coincidência, inspirei-me no

exemplo dele para criar esse.

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Representações Sociais da Leitura de coisas ou dos estados das coisas, mas uma relação entre o texto e a parte não- lingüística da prática em que ele é produzido e interpretado1 (1994:19)”.

Diante deste quadro epistemológico, não cabe mais se perguntar como uma informação ou conhecimento são transmitidos ou qual a maneira mais adequada de se representar os estados do mundo, mas de se perguntar como as atividades cognitivas e lingüísticas do sujeito ou grupo organizam e dão sentido ao mundo que os cerca (cf. Mondada & Dubois, op. cit.).

Pretendo, assim, analisar as possíveis transformações operadas nas representações das duas (alunas)professoras, DÉBORA e RAQUEL, considerando que o discurso não é segmentado, a priori, por nomes e nem o mundo em entidades objetivas (cf. Mondada & Dubois, op. cit.), mas ambos constituem-se nas situações de enunciação. E é por isso que proponho uma análise das representações de texto e de leitura pautada, sobretudo, nas situações de enunciação de sala de aula, “lugar de expressão” e concretização dos vários e complexos processos da transposição didática e da aprendizagem das (alunas)professoras.

1 « un rapport de représentation à des choses ou des états de choses, mais un rapport entre le texte et la part non

Luciane Manera Magalhães

Capítulo IV

Educação Continuada de Professores: