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A formação do professor reflexivo via etnografia/pesquisa de sua prática salienta a importância do conhecimento da comunidade como ponto de partida para a reformulação da prática do professor.

Conhecer a realidade é um "chavão" utilizado por grande parte dos professores, principalmente, aqueles em formação. Porém, conhecer a realidade é muito mais que saber de que bairro procede o aluno, quem são seus pais, seu grau de instrução e profissão. Do ponto de vista etnográfico, conhecer a realidade é, de

Representações Sociais da Leitura certa forma, inserir-se nela, vivenciá-la para senti-la, conhecê-la, compreendê-la. É neste sentido que Heath (1983) propõe um trabalho que utiliza a etnografia como instrumento de formação de professores em exercício.

Considerando-se que há uma grande distância entre expor técnicas e/ou metodologias de pesquisa e vivenciá-las, Heath (op. cit.) propõe um trabalho inicial através do qual os professores aprendem a agir como etnógrafos na prática, ou seja, através de interações em suas casas e locais de trabalho. Assim, focalizando sempre os modos de aprendizagem e usos da linguagem, os professores, de posse do instrumental etnográfico (gravações em áudio, diário, notas de campo, entrevistas), têm a oportunidade de se distanciar de suas convicções e/ou crenças (beliefs) sobre o que fazem e porquê, pois ao discutirem com o grupo, por exemplo, terão como parâmetros não o que acham que fazem, mas o “retrato” do que fazem, propiciado pelos dados gerados a partir dos instrumentos de pesquisa. Distanciar-se de suas próprias convicções e/ou crenças é fator fundamental para o desencadeamento de mudanças. Com a ajuda deste instrumental, os professores podem, também, identificar tanto os seus hábitos trazidos de casa para a classe, quanto os de seus alunos e reconhecer que muitas vezes julgam previamente os hábitos de seus alunos com base nas normas interacionais de grupos dominantes.

A autora relata que o instrumental etnográfico utilizado, nesta experiência, funciona como ferramenta para os professores transporem as diferenças de linguagem e cultura entre eles e seus alunos e descobrirem como reconhecer e usar a linguagem enquanto instrumento de poder. Este tipo de trabalho distancia-se, epistemologicamente, dos cursos de formação tradicional que, em geral, têm todo um discurso progressista, porém uma prática arraigada e distante das verdadeiras necessidades do (aluno)professor. Conforme documento do MEC (2000a), acerca da formação de professores, "nenhum professor se torna competente profissionalmente apenas estudando" (p.33), pois competência profissional:

Luciane Manera Magalhães "... significa a capacidade de mobilizar múltiplos recursos - entre os quais os conhecimentos teóricos e práticos da vida profissional e pessoal -, para responder às diferentes demandas colocadas pelo exercício da profissão. Ou seja, significa a capacidade de responder aos desafios inerentes à prática, de identificar e resolver problemas, de pôr em uso o conhecimento e os recursos disponíveis" (op. cit.).

Transformar o (aluno)professor em etnógrafo-pesquisador de sua própria prática consiste em engajá-lo em um processo investigativo, permitindo-lhe compreender a situação-problema e buscar soluções para ela. Neste processo, o (aluno)professor tem a oportunidade de conhecer sua própria realidade, tomando consciência do uso que faz da linguagem e da transposição que faz de seus hábitos trazidos de casa para o local de trabalho, assim como de seus alunos. A partir do momento em que o (aluno)professor vivencia a prática etnográfica, através da pesquisa, ele tem condições de se distanciar de suas concepções pré-elaboradas, e de compreender que diferenças não são déficits e, conseqüentemente, terá parâmetros para identificar e respeitar as diferenças culturais e lingüísticas entre ele e entre seus alunos.

A avaliação feita por um professor que participou desta experiência confirma esta mudança: "...Nós sabíamos que sua (dos alunos) linguagem era diferente, mas nós sempre relacionávamos estas diferenças com a falta de conhecimento e a necessidade de educação"1 (p.270-271). Esta fala traz subjacente as representações iniciais desse professor acerca da linguagem, marcadas pela teoria dos déficits: “sempre relacionávamos estas diferenças com a falta de conhecimento e a necessidade de educação” e sugere a sua transformação, ao se referir a essas concepções anteriores. Pode-se dizer que a mudança operada nas concepções dos professores envolvidos nesta experiência foram propiciadas pela prática etnográfica, através da pesquisa, enquanto ferramenta, no sentido vygotskyano do termo.

1 “We knew that their spoken language was different, but we always assumed these differences were from

Representações Sociais da Leitura Considerando-se a realidade educacional brasileira, pode-se dizer que transformar o (aluno)professor em etnógrafo é uma tarefa praticamente impossível dada a estrutura de ensino que temos hoje no país. Um exemplo desta dificuldade é relatado por Kleiman (2000a, p.22) quanto a um projeto que inicialmente tinha como objetivo tornar os professores etnógrafos de sua prática, visando desenvolver "...um trabalho coletivo das professoras com a comunidade" (2000a:22). Os obstáculos do sistema educacional brasileiro inviabilizaram este projeto de intervenção. Entre esses aspectos, a autora cita o fato de os profissionais da educação envolvidos com o ensino público, na sua maioria, ou estudarem no turno em que não trabalham ou terem jornada dupla. Considerando-se que a maior parte, senão quase a totalidade, do percentual destes profissionais é do sexo feminino, aumenta ainda mais a dificuldade de se conseguir tempo disponível para a realização de um trabalho de cunho etnográfico, devido aos seus compromissos familiares. Um outro entrave é a questão geográfica que, em boa parte das escolas, impediria que os profissionais tivessem acesso às famílias dos alunos, acrescentando-se um índice considerável de rodízio de professores, pelos mais diversos motivos.

Acredito que esse tipo de trabalho possa ter êxito ao ser desenvolvido em comunidades de pequeno porte, em que alunos e professores façam parte de uma mesma comunidade ou, pelo menos, de comunidades próximas. É o que propõe Cavalcanti (2001), em uma experiência brasileira, que tem sido coordenada por ela, no estado do Acre, junto a treze professores indígenas, de diferentes etnias. Utilizando-se do instrumental etnográfico e utilizando a pesquisa como ferramenta de aprendizagem, os professores indígenas têm aprendido a refletir acerca da educação escolar indígena denominada diferenciada e a (re)pensar a prática pedagógica, a partir das necessidades das comunidades indígenas, incorporando a reflexão em sua prática. Um dos fatores que têm propiciado o êxito dessa experiência, acredito, é o fato de os professores fazerem parte da mesma comunidade de seus alunos, de estarem verdadeiramente inseridos nela, o que não retrata a realidade educacional brasileira como um todo.

Luciane Manera Magalhães