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O net-ativismo dos consumidores em redes

PARTE II – Empresas e consumidores em rede: protagonistas da controvérsia

Capítulo 5 – A gestão de crise no ambiente de comunicação em rede

5.1 O net-ativismo dos consumidores em redes

O estudo do protagonismo dos consumidores em rede começa pelo conceito de Cibercultura, que extrapola a ideia de cultura associada à informatização, ou mesmo a comunicação mediada por computadores: abrange a comunicação em rede e diversos fenômenos sociais na Internet. Lemos a define como:

O conjunto tecnocultural emergente no final do século XX impulsionado pela sociabilidade pós-moderna em sinergia com a microinformática e o surgimento das redes telemáticas mundiais; uma forma sociocultural que modifica hábitos sociais, práticas de consumo cultural, ritmos de produção e distribuição da informação, criando novas relações no trabalho e no lazer, novas formas de sociabilidade e de comunicação social. Esse conjunto de tecnologias e processos sociais ditam hoje o ritmo das transformações sociais, culturais e políticas nesse início de século XXI (LÉVY; LEMOS, 2010, pp. 21-22).

A comunicação no ciberespaço (ou virtual) modifica a sociabilidade de diversas maneiras, dentre elas, extinguindo a cisão entre espaços públicos e privados (mesmo que a mensagem seja originalmente privada, como um correio eletrônico, não existe um controle que estabelece se ela se tornará ou não uma mensagem pública). Lemos define três tendências da cibercultura: (a) a interconexão, (b) a criação de comunidades e (c) a inteligência coletiva (LÉVY; LEMOS, 2010).

176 A interconexão é um fenômeno muito geral: tece relações entre territórios, entre computadores, entre meios de comunicação, entre documentos, entre dados, entre categorias, entre pessoas, entre grupos e instituições. [...] Finalmente, a propensão à inteligência coletiva representa o apetite para o aumento das capacidades cognitivas das pessoas e dos grupos, quer seja a memória, a percepção, as possibilidades de raciocínio, a aprendizagem ou a criação. O crescimento do ciberespaço é, ao mesmo tempo, a causa e o efeito do desenvolvimento dessas três tendências (idem, pp. 14-15).

Como princípios da cibercultura, Lemos propõe, em primeiro lugar, a “liberação” da palavra com o consequente impacto sobre a formação da opinião e o próprio conceito de esfera pública. O indivíduo conquista sua autonomia comunicacional em contrapartida à perda de poder da mídia tradicional. Em segundo, o princípio da conexão, com a liberação da circulação em redes abertas e globais, e em terceiro, o princípio da reconfiguração das práticas sociais. “A nova potência da emissão, da conexão e da reconfiguração, os três princípios maiores da cibercultura, estão fazendo com que possamos pensar de maneira mais colaborativa, plural e aberta” (idem, ibidem, p. 27).

Nesse inédito ambiente de comunicação, com a expansão da conexão e a liberação da emissão, estão dadas as condições para a atuação dos movimentos de net-ativismo, independente do conteúdo em questão. “Essa aceleração do processo de emancipação humana dá sentido a todas as outras acelerações. [...]. A capacidade de comunicar e de circular está em estreita relação com a disseminação da liberdade” (LÉVY; LEMOS, 2010, p. 47).

É nesse ambiente de comunicação no ciberespaço – inédita sociabilidade com a expansão da conexão entre os atores e a promoção dos indivíduos à condição de potenciais emissores de informação – que proliferam as redes sociais digitais72. Como define Santaella, “as RSIs73 são plataformas-rebentos da web 2.0, que inauguraram a era das redes colaborativas, tais como wikipédias, blogs, podcasts, o YouTube, o Second Life, o uso de tags (etiquetas) para compartilhamento e intercâmbio de arquivos” (SANTAELLA, 2010, p. 7). Os adventos do Facebook em 2004 e do Twitter em 2006 geraram as RSIs 2.0.

As RSIs 2.0 foram pioneiras ao reunir em uma mesma interface todas as possibilidades de comunicação disponíveis até então: comentários, fóruns,

72 Mesmo que em 1995 tenha sido criada, por Randy Conrads, a Classmates.com, considerada a primeira rede

social digital, com a finalidade de propiciar aos usuários a possibilidade de reencontrarem antigos colegas de escola, faculdade, trabalho ou serviço militar.

177 chats, mensagens de membro para membro, quadro coletivo de recados, repositório coletivo de documentos, mensagens coletivas, indexações personalizadas, etc. (idem, p. 58).

Pelo seu impacto na sociedade, as redes sociais digitais têm sido objeto de estudo do campo da comunicação, sociologia, marketing, administração, dentre outros, que produziram uma vasta bibliografia. Em paralelo, temos também o fato de cerca de 80% dos brasileiros conectados possuírem uma conta ativa na rede social Facebook (sem contar outras redes sociais, como Twitter, Instagram, Orkut, Flickr, etc.). Ambos os argumentos tornam desnecessária uma imersão na temática, sendo importante apenas demarcar alguns elementos- chave para esta tese.

Lucia Santaella (2010) enfatiza como características dessas redes:

(a) a conectividade always on, que promove a reprodução viral e instantânea das informações e/ou mensagens produzidas na internet;

(b) a experiência individual de acesso por um dado ponto da rede, apesar da complexidade da trama;

(c) o acesso a determinado nódulo passa necessariamente por conexões, enfatizando a relevância não só dos nós como também das conexões numa arquitetura de rede de redes.

Na pesquisa empírica, tais atributos serão evidenciados: a metodologia privilegia os atores da controvérsia e suas conexões, além de construir as cartografias a partir de um volume significativo de dados, gerados pela velocidade e a extensão da propagação.

A evolução mais recente das interfaces nas redes sociais digitais gerou as RSIs 3.0, cujo diferencial encontra-se “na sua integração com múltiplas redes, plataformas e funcionalidades através do uso de aplicativos e de mídias móveis. [...] a estrutura da interface muda ao se tornar embutida em dispositivos móveis, geotags, rastreamento espacial em tempo real e lifestreaming” (idem, p. 59).

A estrutura da interface muda não apenas a partir do entrelaçamento móvel dos aplicativos e redes, mas principalmente pelo entrelaçamento entre coleta de dados pessoais em tempo real e análise estatística via inteligência artificial

always on.[...] Cada clique, cada login, cada palavra-chave teclada é

178 Esses rastros deixados pelos atores das redes sociotécnicas permitem observar e descrever as práticas sociais, base da técnica da Cartografia das Controvérsias. Santaella (2010) evidencia elementos-chave para nossa posterior reflexão empírica:

a) As redes sociais digitais colocam em ação uma heterogeneidade de entidades, que extrapolam as interações de indivíduo a indivíduo (trocas entre humanos). “Para isso, é preciso ir além do repertório homogêneo dos humanos, de um lado, e dos mecanismos, de outro, de modo a delinear os híbridos” (idem, p. 49). Importa observar os “misturados mecanismos” em ação que vão acontecendo em rede;

b) As plataformas das redes sociais digitais são programas, nesse sentido, desenvolvidos de maneira top down (“de cima para baixo”) cuja consequência é uma baixa habilidade para incorporar demandas externas e uma evolução lenta. Santaella ressalva que “quando as aplicações tecnológicas chegam às mentes e mãos dos usuários, estes produzem desvios mais ou menos drásticos no planejamento originalmente esperado. O uso, portanto, flexibiliza o programa” (idem, p. 50);

c) Distinguindo-se das redes científicas ou empresarias (com metas, tarefas, problemas, estratégias), a finalidade das redes sociais digitais é “prioritariamente a de promover e exacerbar a comunicação, a troca de informação, o compartilhamento de vozes e discursos” (idem, p. 50). O propósito é comunicar-se, estar simplesmente junto.

As redes sociais digitais, originadas no ambiente da cibercultura, “liberam a palavra” aos usuários; estabelecem conexões, em princípio, de todos com todos; e reconfiguram as práticas sociais promovendo os movimentos denominados “Net-Ativismo”.

O net-ativismo do consumidor difere do net-ativismo social pelo objeto envolvido, ou seja, o conteúdo que provoca ou motiva o ativismo. No primeiro, o foco são os protestos contra as ações negativas de uma empresa, referente a um produto ou simplesmente a uma atitude que desagrada o público; o segundo engloba as questões sociais sensíveis a uma comunidade, sejam políticas, econômicas ou mesmo de valores. Do ponto de vista de sua lógica, interatividade e conexão, existe uma convergência entre ambas as manifestações. Comecemos pela conceituação de net-ativismo.

A expansão da internet deu origem a movimentos de ação direta, provocando novas formas de conflitualidades sociais.

179 Nesse contexto, surgiu o termo ciberativismo, de origem estadunidense, enquanto modalidade de organização e ação política direta de base marcada pela difusão de informações na rede com objetivo de boicotar o consumo de determinados produtos e também de realizar ocupações, manifestações e protestos ligados aos direitos humanos, civis e ambientais (DI FELICE, 2013a, p. 53).

Uma das primeiras manifestações de ciberativismo foi do Exército Zapatista de Libertação Nacional, em 1994, no México, inicialmente por meio de listas de discussão, e- mails e o site FTP (Protocolo de Transferência de Arquivos) e, a partir de 1996, com sua própria homepage. Outro exemplo mundial é a atuação do Greenpeace, que desde 1998 desenvolve ações articuladas nas mídias digitais. O advento das redes sociais possibilitou a diversificação do ciberativismo em territoriedade e conteúdo.

Diante da transformação da capacidade interativa da rede, de uma Web 1.0 para aquela Web 2.0, houve uma reconfiguração do significado do ciberativismo que, nos últimos anos, delineia-se como uma forma intensiva de interação em rede entre indivíduos, territórios e tecnologias digitais, designativa de conectividade característica da ação social em e nas redes (idem, p. 54).

O que caracteriza o ativismo em rede é a interação entre diversos atores – indivíduo, organizações, tecnologias, banco de dados, etc. – “desta maneira, os seus objetivos, suas definições, suas disseminações e suas implementações são, em muitos casos, resultados não de um processo unidirecional, mas construídos em rede de forma colaborativa” (DI FELICE, 2013a, p. 55).

As redes associativas do net-ativismo, ou os coletivos, como definido por Latour, são constituídos por actantes humanos e não humanos, dentre eles os dispositivos tecnológicos. As ruas são ocupadas não só pelos humanos, mas também pelos tablets, pelos celulares, pelas filmadoras, etc. Essa agregação de dispositivos de conexão, fluxos de informações, bancos de dados, territorialidades, implicam uma nova condição habitativa e não somente uma nova forma de conflitualidade.

Tal interação singular é o resultado da difusão em larga escala, de um lado, dos dispositivos móveis de conexão (tablets, smartphones, notebook, etc.) e de formas de conexão wi-fi (banda larga, salélite, RFID, etc.) e, de outro, da

180 proliferação das social networks, as quais deram origem a uma particular forma conectiva ecológica, não só social, capaz de conectar, em tempo real, pessoas, dispositivos, informações, territórios e dados de todo tipo (DI FELICE, 2013b).

Alguns movimentos tornaram-se ícones do net-ativismo internacional, como (a) a “Primavera Árabe”, levante popular que teve início nos países do norte da África e no Oriente Médio, reivindicando um estado democrático e melhores condições de vida. A Tunísia, primeiro foco dos protestos, derrubou o governo de Ben Ali em janeiro de 2011, seguido da deposição de Mubarak no Egito em fevereiro de 2011 e, posteriormente, da queda de Muammar Kadhafi, da Líbia, em outubro de 2011; (b) o Movimento 15M, ou “movimento dos indignados”, também em 2011, na Espanha, que se origina numa passeata em reação às políticas implementadas pelo governo em resposta à crise econômica – em Madrid, ao final da passeata, um grupo de participantes acampou na Praça Puerta del Sol, com a intenção de gerar visibilidade, o que detonou diversas outras manifestações; e (c) o Occupy Wall Street, movimento contra a desigualdade econômica e social e a influência, sobretudo dos bancos, no governo dos Estados Unidos. O movimento iniciou-se no Zuccotti Park, distrito financeiro de Manhattan (New York) em setembro de 2011 e proliferou por outras cidades americanas. Já no Brasil, destacamos a mobilização popular por meio das redes pela aprovação da “Lei da Ficha Limpa”. A Lei Complementar nº 135 de 2010 é uma emenda à Lei das Condições de Inelegibilidade ou Lei Complementar nº 64 de 1990, originada de um projeto de lei de iniciativa do juiz Márlon Reis que recolheu cerca de 1,3 milhões de assinaturas. Sua origem remonta a 2009, na campanha “Combatendo a corrupção eleitoral” da Comissão Brasileira de Justiça e Paz da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil).

Em comum a todos esses movimentos populares, temos: (i) a formação de redes sociotécnicas envolvendo actantes humanos e não humanos, nas quais os dispositivos tecnológicos desempenharam papel central, com interatividade e mobilidade conectiva; (b) o reconhecimento do fim da externalidade, não existe “dentro ou fora” das redes – o ativismo acontece simultaneamente nas redes e nos espaços físicos; (c) a tomada coletiva da palavra, com a comunicação fluindo de todos para todos; e (d) a formação de atores híbridos, não mais apenas humanos ou apenas tecnológicos (um indivíduo com um celular é um indivíduo de natureza diferente do indivíduo sem celular).

181 Esses elementos estão presentes também no ativismo do consumidor. O objeto pertence a um campo mais delimitado, de menor alcance e, em geral, pontual e restrito ao âmbito digital, mas com uma estrutura formal e conceitual semelhante.