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PARTE II – Empresas e consumidores em rede: protagonistas da controvérsia

Capítulo 3 – As empresas e as redes digitais: desafios e dificuldades

3.3 O processo de flexibilização

O processo de flexibilização, a partir do agravamento da concorrência num mercado sustentado pelo consumo de massa, percorreu diversos caminhos nas últimas décadas. O desafio de se adaptar às exigências de mercado é uma constante na pauta das empresas, pressionadas atualmente por uma intensidade e velocidade jamais experimentadas. Para Piori e Sabel (1984), o modelo fordista de organização passou a ser desafiado por novos fatores, dentre os quais a intensificação da concorrência internacional. Para sobreviver, tornou-se necessária a adoção de um sistema de produção mais especializado, com produtos de melhor

152 qualidade. Essa especialização postulou uma equação inversa do fordismo, que promoveu a separação entre concepção e execução: a substituição de trabalhadores não qualificados por mão de obra qualificada e o uso de máquinas universais, ou a colaboração entre designers qualificados e produtores qualificados para fazer uma variedade de produtos com máquinas de uso universal. Em geral, essas mudanças são denominadas de “especialização flexível”, baseada numa estratégia de inovação permanente ancorada no multiuso de equipamentos e mão de obra, retomando e disseminando, de certa forma, valores da produção artesanal que foram marginalizados com o início da produção em massa.

A acumulação flexível foi acompanhada na ponta do consumo, portanto, por uma atenção muito maior às modas fugazes e pela mobilização de todos os artifícios de indução de necessidades e de transformação cultural que isso implica. A estética relativamente estável do modernismo fordista cedeu lugar a todo o fermento, instabilidade e qualidades fugidias de uma estética pós- moderna que celebra a diferença, a efemeridade, o espetáculo, a moda e a mercadificação de formas culturais (HARVEY, 2010, p. 148).

Castells considera que o objetivo principal das transformações nas organizações “era lidar com a incerteza causada pelo ritmo veloz das mudanças no ambiente econômico, institucional e tecnológico da empresa, aumentando a flexibilidade em produção, gerenciamento e marketing” (CASTELLS, 2009, p. 211).

O sistema de produção japonês, popularizado pela montadora Toyota após a Segunda Guerra Mundial, marca a inflexão dessa nova fase. Pelo seu perfil mais flexível, impulsionou o desenvolvimento econômico do Japão e influenciou as transformações da indústria mundial ao se mostrar mais adequado aos desafios de um mercado competitivo. Parece-nos correto supor que a Toyota introduziu um sistema de produção qualitativamente diferente.

A baixa produtividade e a escassez de recursos no Japão restringiram a adoção do método “fordista” de produção em massa, estimulando a busca por alternativas. Denominado de “Produção Enxuta”, ou Lean Manufacturing, este método tem por objetivo aumentar a eficiência a partir da eliminação de desperdícios. O modelo Toyota flexibiliza a produção ao reduzir a hiperespecialização da linha de montagem do “fordismo”, com trabalhadores multifuncionais, e introduzir o sistema de fornecimento Kan-ban (ou just-in-time), promovendo a diversificação dos produtos. Transcendendo a questão puramente econômica, assumiu uma face humana até então inédita. Duas características se destacam: internamente, o

153 trabalho em equipe, e externamente, a estruturação de uma rede colaborativa com fornecedores sedimentada em confiança e cooperação de longo prazo.

O ano de 1984 deu origem a um projeto de grande repercussão: a montadora NUMMI, uma joint-venture entre as montadoras General Motors e Toyota. Pressionada pela concorrência das montadoras japonesas Honda e Nissan, a Toyota vislumbrou nesse projeto uma “porta de entrada” no mercado americano. Para a GM, à época uma fábrica falida e em vias de fechar, isso representava uma oportunidade de conhecer por dentro o novo modelo de produção. Se no primeiro ano do projeto, 1984, foram produzidos 17 mil carros, no ano seguinte a produção saltou para 65 mil. Em 1986, o desempenho superou as demais fábricas da GM: foram produzidos 190 mil carros naquele ano. Seus pontos fortes: organização baseada em equipes, busca de consenso antes de decisões finais e transparência nos processos. Segundo Morgan (2007), o sucesso do modelo japonês pode ser atribuído:

(a) as organizações são vistas como coletividades as quais os empregados pertencem em lugar de serem apenas um local de trabalho que compreende indivíduos separados; (b) os empregados quase sempre estabelecem compromissos por toda a vida com as suas organizações, que eles veem como uma extensão de sua família; (c) o tipo de submissão e de respeito a autoridade não são necessariamente sentidos como rebaixamento (MORGAN, 2007, pp. 120-121)

No novo milênio, esse modelo no Japão está sob forte ameaça em função de novos desafios, dentre eles as mudanças culturais, principalmente da juventude japonesa exposta à cultura ocidental por meio das redes sociais na internet.

A crise econômica da década de 1970 (“crise do petróleo”68), principalmente nos países desenvolvidos, acelerou o surgimento do sistema produtivo flexível em contrapartida à rigidez do sistema de produção em massa. “As novas tecnologias permitem a transformação das linhas de montagem típicas da grande empresa em unidades de produção de fácil programação que podem atender as variações do mercado e das transformações tecnológicas” (CASTELLS, 2009, p. 212). Outro fenômeno que começa a ter alguma importância, com a

68 A crise do petróleo na década de 1970 foi resultado de um déficit de oferta (“descoberta” de que o petróleo era

um recurso não renovável), diversos processos de nacionalização e conflitos envolvendo produtores da OPEP. Provocou recessão nos Estados Unidos e na Europa, afetando a economia mundial.

154 crise da grande empresa, é o desempenho das pequenas e médias empresas, pela maior flexibilidade das mesmas, como agentes de inovação.

Algumas das mudanças implicaram o uso crescente da subcontratação de pequenas e médias empresas, cuja vitalidade e flexibilidade possibilitavam ganhos de produtividade e eficiência às grandes empresas, bem como à economia como um todo. Então, ao mesmo tempo, é verdade que as empresas de pequeno e médio porte parecem ser formas de organização bem adaptadas ao sistema produtivo flexível da economia informacional e também é certo que seu renovado dinamismo surge sob o controle das grandes empresas, as quais permanecem no centro da estrutura do poder econômico na nova economia global (idem, p. 214).

Nesse percurso de se ajustar, as empresas estão remodelando suas várias frentes de atuação. A relação, antes formal e burocrática com os fornecedores, gradativamente deu lugar a uma cadeia produtiva marcada pela parceria e cooperação. As alianças estratégicas são um modelo de produção que interliga empresas de grande porte, gerando redução de custos e maior eficiência.

A estrutura das indústrias de alta tecnologia em todo o mundo é uma teia cada vez mais complexa de alianças, acordos e joint-ventures em que a maioria das grandes empresas está interligada. Essas conexões não impedem o aumento da concorrência. Ao contrário, as alianças estratégicas são instrumentos decisivos nessa concorrência, com os parceiros de hoje tornando-se os adversários de amanhã (CASTELLS, 2009, pp. 219-220).

O processo de inovação, antes limitado ao âmbito interno das empresas e concentrados nas áreas de Desenvolvimento e Pesquisa (P&D), hoje ocorre, ao menos em parte, via a chamada Inovação Aberta (open innovation). A relação com os consumidores tem se tornado mais interativa e, mesmo que ainda de forma limitada, os mesmos têm sido convidados a contribuir em formatos igualmente inovadores no desenvolvimento de produtos e serviços. A transição para a acumulação flexível deu-se a partir de mudanças nas organizações:

Na direção da desintegração vertical – subcontratação, transferências de sede, etc. [...] Sistemas aperfeiçoados de comunicação e de fluxo de informações, associados com racionalizações nas técnicas de distribuição,

155 possibilitaram a circulação de mercadorias no mercado a uma velocidade maior (HARVEY, 2010, p. 257).

O fator volatilidade inviabiliza qualquer planejamento de longo prazo, passando a predominar o foco no curto prazo, com ganhos imediatos. “Dominar ou intervir ativamente na produção da volatilidade envolvem, por outro lado, a manipulação do gosto da opinião pública” (idem, p. 259). Nesse sentido, Harvey ressalta a construção de imagens como algo vital no processo de concorrência entre as empresas. “O sucesso é tão claramente lucrativo que o investimento na construção de imagem [...] se torna tão importante quanto o investimento em novas fábricas e maquinários” (HARVEY, 2010, p. 260).

Dessa forma, o que surge da observação das transformações nas maiores empresas ao longo das duas últimas décadas do século XX não é um novo e “melhor modo” de produção, mas a crise de um modelo antigo e poderoso, porém excessivamente rígido associado à grande empresa vertical e ao controle oligopolista dos mercados. Dessa crise, surgiram vários modelos e sistemas organizacionais [...] todos eles baseiam-se em redes (CASTELLS, 2009, p. 225).

A Ford Motor Company foi o símbolo da era industrial da produção padronizada e do consumo de massa. A Cisco Systems representa o modelo global de empresa em rede.