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PARTE II – Empresas e consumidores em rede: protagonistas da controvérsia

Capítulo 3 – As empresas e as redes digitais: desafios e dificuldades

3.1 A lógica empresarial

“As contribuições de alguns dos maiores empreendedores da história – o produtor de cerâmica Josiah Wedgwood no século XVIII, o fabricante de automóvel Henry Ford no século XX [...] Eles não apenas estimularam novas demandas. Não inventaram, em geral, novas tecnologias. Ao contrário: descobriram a possibilidade de um novo tipo de convergência entre os desejos dos consumidores, os recursos tecnológicos e as inovações organizacionais. Esses três elementos se combinam para formar uma nova lógica empresarial”έ

ZUBOFF, MAXMIN, 2003, p. 10.

Ao longo de décadas recentes, um amplo e profundo processo de flexibilização modificou a estrutura, a operação e a cultura das empresas; preservou, contudo, a mentalidade e a prática do controle. Em paralelo, o advento das tecnologias digitais, com a internet e a web, introduziu formas de circulação da informação e de conexão entre as instituições e os indivíduos, e entre as próprias instituições e os próprios indivíduos, cuja característica central é o “não-controle66”. O antagonismo entre essas duas lógicas impõe, mais do que uma

adaptação das empresas ao novo contexto de negócio, uma revisão dos próprios fundamentos de empresa.

144 A origem do que concebemos como “empresa” remonta aos idos da Revolução Industrial, no século XVIII. Este conceito se desenvolveu em adaptação às várias fases do processo de industrialização da economia; de estruturas rígidas iniciais, evoluiu para formatos mais flexíveis adequados aos então novos ambientes socioeconômicos. São fenômenos complexos e paradoxais. Pensando a empresa como um sistema aberto, a partir de um enfoque sistêmico complexo, suas interações diretas com o ambiente externo determinam o seu funcionamento e a sua cultura.

Como indicado no capítulo 1, as características definidoras da complexidade estão presentes na empresa, com destaque para duas delas: (a) a causalidade circular retroativa, em que sua produção decorre de demandas externas e capacidades internas, cujo resultado, se for positivo, tem o potencial de retroagir e estimular novas produções; e (b) a causalidade recursiva, em que os efeitos e os produtos são necessários para o próprio processo gerador, logo o produto é produtor do que o produz. A empresa “produz todos os elementos necessários para sua própria sobrevivência e para sua própria organização. Ao organizar a produção de objetos e de serviços, ela se auto-organiza [...] e, se as coisas vão bem, se autodesenvolve ao desenvolver sua produção” (MORIN, 2011, p. 86).

A empresa não é um sistema fechado, um ator isolado; pelo contrário, insere-se num contexto no qual os diversos níveis de experiência humana, processos econômicos, tecnológicos e culturais interagem para compor uma estrutura social particular de cada período histórico. Vários autores analisaram os fundamentos, a estrutura e a evolução das empresas ao longo do tempo. Outros desenvolveram críticas ao processo de industrialização, de evolução do social, da economia e da cultura da modernidade e da pós-modernidade. Estudiosos da comunicação se ocuparam dos impactos das empresas na sociedade. Dentre os que exploraram esses temas com profundidade e ofereceram resultados sólidos, citamos Manuel Castells (2009) e seu livro Sociedade em Rede, com um estudo sobre os impactos das tecnologias de informação na sociedade; David Harvey (2010), ao analisar, sob vários aspectos, a transição da modernidade para a pós-modernidade; além de Henry Chesbrough (2006), que se detém na migração dos processos de inovação fechada para inovação aberta, interpretando casos concretos.

Esta tese não se propõe a detalhar essas contribuições, uma vez que as mesmas estão disponíveis e reconhecemos o seu mérito e a sua pertinência. Nossa intenção é nos deter em algumas das sinergias entre os sistemas de informação e de comunicação das empresas, e as

145 tecnologias de informação e de comunicação disponíveis na sociedade. Particularmente nos interessa observar como tem sido tratada a questão do “controle” nessa trajetória.

Mesmo com as radicais transformações ocorridas ao longo de dois séculos e considerando todo o processo de maleabilidade das décadas recentes, a lógica do controle permeia historicamente as organizações. A estrutura de controle está em sua base de operação e gestão. Por outro lado, o advento das tecnologias digitais trouxe outra lógica à sociedade, a lógica do “não-controle”; a lógica da arquitetura reticular é o “não-controle”. Nesse novo ecossistema, há uma alteração no comportamento dos antigos atores e o surgimento de novos atores, com um social e uma identidade que precisam ser contemplados. Tentar compreender como esses dois elementos aparentemente antagônicos – controle e “não-controle” – interagem é o propósito destes próximos capítulos.

A transição em curso é a da “empresa analógica” para a “empresa de rede”. A palavra analogia, que deriva do grego αναλο ία, diz respeito a um processo cognitivo de transferência de informação ou significado de um sujeito determinado, a fonte, para outro sujeito determinado, o alvo. Num processo analógico não existe alteração por interferência externa. As informações são estocadas em um suporte físico e registradas em correspondência com o real, como no caso das câmeras fotográficas analógicas onde o registro da cena fotografada se dá num filme (suporte físico). Contrariamente, o digital não apresenta uma correspondência análoga com o conteúdo da informação estocada. Comparando as duas – analógica e digital –, na primeira a informação é armazenada e transmitida para muitas pessoas a partir de um caminho numa só direção; na digital, a informação é transmitida de muitos para muitos, gerando, por exemplo, os denominados “efeitos virais”.

Na empresa analógica, a percepção de controle é maior e, na realidade, mais efetiva. Na empresa em rede, as tentativas de manter o controle sobre os fluxos de informação e comunicação perdem o sentido: a arquitetura rede de redes não é controlável. Cada ator de uma rede está conectado com outros atores de outras redes, mantendo um fluxo contínuo de transmissão de mensagens entre as várias redes. Há uma tensão constante entre as duas culturas: a analógica, que resiste, e a digital, que se expande. A tensão entre essas duas culturas – dialogando e conflitando – em parte é responsável, na época atual, pelos conflitos sociais envolvendo as empresas.

Como veremos, os mecanismos de controle corporativos extrapolam o que o senso comum reconhece como “sistemas de controle”. A rotina de trabalho, com sua agenda e

146 horários predefinidos e normalmente rígidos, por si só já se constitui num exercício de controle ao determinar os horários de funções básicas do homem, como dormir e comer.

No próximo subcapítulo, enfocaremos a origem e a formação do conceito de empresa surgido na Revolução Industrial. Em seguida, trataremos do período, a partir das décadas finais do século XX, de flexibilização das empresas na tentativa de se adaptarem ao ambiente de comunicação. Por último, abordaremos o conceito e o funcionamento do que estamos chamando de “empresa em rede”. Importante ressaltar que o foco desta tese é o Ocidente. Abordamos o modelo japonês, mas apenas para comentar seu impacto na indústria ocidental. Do ponto de vista histórico, vamos nos concentrar no período entre o advento da revolução elétrica e eletrônica, com o aparecimento do rádio e da televisão – a chamada Segunda Revolução Industrial –, e o surgimento da internet e a web com as novas tecnologias digitais.