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PARTE II – Empresas e consumidores em rede: protagonistas da controvérsia

Capítulo 3 – As empresas e as redes digitais: desafios e dificuldades

3.2 A origem e o conceito de empresa

A incorporação das máquinas no processo de produção a partir da Revolução Industrial moldou a formação das organizações introduzindo uma crescente tendência à burocratização e a rotinização. A ideia era que as organizações operassem ao padrão das máquinas: de maneira eficiente, precisa, confiável e previsível. Interessante observar que a palavra “organização”, outra forma de denominar as empresas, deriva do grego ο νω η, ou organon, que significa ferramenta ou instrumento. Essas organizações são comumente denominadas de burocracias (MORGAN, 2007).

O sociólogo alemão Max Weber (1864-1920) traçou paralelos entre a mecanização da indústria e a proliferação das estruturas burocráticas nas empresas. Para o autor, a burocratização viabiliza a implantação da repartição do trabalho com base em aspectos puramente objetivos, com impacto positivo na produtividade. Por outro lado, é também um elemento decisivo de dominação, no sentido “de possibilidade de impor ao comportamento de terceiros a vontade própria” (WEBER, 2009, p. 188).

Por ‘dominação’ compreendemos, então, aqui, uma situação de fato, em que uma vontade manifesta (‘mandado’) do ‘dominador’ ou dos ‘dominadores’ quer influenciar as ações de outras pessoas (do ‘dominado’ ou dos ‘dominados’), e de fato as influencia de tal modo que estas ações, num grau socialmente relevante, se realizam como se os dominados tivessem feito do

147 próprio conteúdo do mandado a máxima de suas ações (‘obediência’) (idem, p. 191).

Weber enfatiza o vínculo entre “dominação” e “administração”, na medida em que toda administração bem sucedida recorre à dominação, garantindo a concentração de certos poderes de mando em alguém específico. O sociólogo “tratou a burocracia como um instrumento de poder de primeira grandeza e acreditava que onde a burocratização da administração estivesse completamente instalada, uma forma de relação de poder estabelecia- se” (MORGAN, 2007, p. 282). Nesse sentido, é clara a superioridade da organização burocrática frente a qualquer outra forma.

Precisão, rapidez, univocidade, conhecimento da documentação, continuidade, discrição, uniformidade, subordinação rigorosa, diminuição de atritos e custos materiais e pessoais alcançam o ótimo numa administração rigorosamente burocrática exercida por funcionários individuais treinados, em comparação a todas as formas colegiais ou exercidas como atividade honorária ou acessória. (WEBER, 2009, p.212).

A semelhança entre a concepção de uma empresa e um projeto de máquina fica visível na sua ideia original de uma “rede de partes” – com diversos departamentos funcionais, tais como marketing, finanças, RH, pesquisa e desenvolvimento, etc. – na qual as funções e responsabilidades encontram-se interligadas. Esse modelo baseia-se na divisão do trabalho, defendido por Adam Smith (2008) como determinante no aumento da destreza do trabalhador, ao reduzir sua atividade a uma operação simples e única ao longo de sua vida produtiva. Smith observa, ainda, o potencial de o trabalhador identificar e propor aprimoramentos para facilitar o seu trabalho.

O modelo de empresa dos primórdios da industrialização até meados do século XX concentrava-se na visão de que as empresas são sistemas racionais, não considerando os aspectos humanos e sociais: “A nova tecnologia foi, assim, acompanhada e reforçada pela mecanização do pensamento e ação humana. As organizações que usaram máquinas tornaram-se cada vez mais e mais parecidas com as máquinas” (MORGAN, 2007, p. 26).

Essas concepções amadureceram e alcançaram seu ápice com a publicação, nos Estados Unidos, em 1911, dos Princípios da Administração Científica, propostos por Frederick Taylor:

148 Um influente tratado que descrevia como a produtividade do trabalho podia ser radicalmente aumentada através da decomposição de cada processo de trabalho em movimentos componentes e da organização de tarefas de trabalho fragmentadas segundo padrões rigorosos de tempo e estudo do movimento (HARVEY, 2010, p. 122).

Seu fundamento estava na descrição das tarefas de cada empregado, controlando o tempo e o processo de sua execução, garantindo assim uma maior eficiência operacional, “reduzindo o trabalhador a um componente muito bem regulado em um sistema perfeitamente projetado, controlado pelos poderes de cima” (BENKLER, 2011, p. 8). Esse conjunto de técnicas, que ficou conhecido como “taylorismo” ou “administração científica”, defendia a ideia de que o trabalhador deveria se concentrar unicamente em executar sua tarefa no menor tempo possível, não tendo necessidade de conhecer o processo integral da produção. As tarefas eram padronizadas e repetitivas visando a racionalização do trabalho. Seu principal argumento focava na eficiência do resultado, que incluía além do controle, a seleção e treinamento do operário apropriado para cada função determinada. Em relativo pouco tempo, o taylorismo ganhou o mundo configurando-se como o modelo dominante de produção durante toda a primeira metade do século XX e, em algumas situações, continua predominando mesmo com todos os seus impactos negativos.

O efeito da administração cientifica de Taylor no ambiente de trabalho tem sido enorme, aumentando muito a produtividade, enquanto acelera a substituição de habilidades especializadas por trabalhadores não qualificados. [...] Os aumentos de produtividade tem sido atingidos com frequência através de alto custo humano, reduzindo muitos trabalhadores a autômatos. (MORGAN, 2007, p. 33).

A essência do taylorismo está apoiada na transformação de tarefas complexas em subtarefas simples, aptas a serem mecanicamente reproduzidas sem necessidade de muito conhecimento; o aperfeiçoamento é atingido por meio da repetição. Todavia, a separação entre o planejamento e o desenvolvimento do trabalho em relação a sua execução (ou o aspecto “intelectual” da parte prática) constitui-se num dos aspectos mais negativos do método taylorista (além do fato de que nem sempre foi fácil angariar a adesão dos trabalhadores). Quando Henry Ford, por exemplo, implantou sua primeira linha de montagem para produzir o carro conhecido como “Modelo T”, o turnover da mão de obra não

149 especializada atingiu 380% no primeiro ano, o que o obrigou a dobrar os salários lançando a campanha dos “$5 por dia”.

Taylor deu forma a um aspecto particular da tendência para a mecanização, especialização e burocratização que Max Weber viu como uma potente força social. [...]. A feição realmente distinta do taylorismo, então, não reside no fato de que Taylor tentou mecanizar a organização das pessoas e do trabalho, mas no grau em que ele foi capaz de fazer isso (MORGAN, 2007, p. 35).

Outro momento importante nessa trajetória foi o sistema de produção em massa, citado acima, idealizado pelo empresário americano Henry Ford, fundador da montadora Ford Motor Company. Em 1914, Ford revolucionou a indústria automobilística com a primeira linha de montagem automatizada, com base nos princípios de padronização e simplificação propostos por Taylor. Com fábricas verticalizadas, Ford buscou contemplar, de um lado, a produção em massa e, de outro, o consumo de massa. O objetivo era reduzir o custo de produção, viabilizando um preço ao consumidor final suficientemente baixo para torná-lo accessível em larga escala. As esteiras rolantes evitavam a movimentação dos operários, reduzindo o tempo de produção com a eliminação do “movimento inútil”. Coerente com o taylorismo, cada operário ocupava-se de uma operação simples que não demandava nenhuma qualificação.

Apesar de requerer investimentos em máquinas e instalações fabris, o resultado foi positivo ao promover a produção de cerca de dois milhões de carros por ano na década de 1920, começando pelo pioneiro Ford Modelo T. A indústria automobilística americana tornou-se um fator de desenvolvimento econômico, servindo de estímulo ao crescimento de setores afins como o siderúrgico, o energético, o têxtil, além da construção de novas rodovias, as quais, por sua vez, impactavam outras indústrias.

O que havia de especial em Ford (e que, em última instância distingue o fordismo do taylorismo) era a sua visão, seu reconhecimento explícito de que produção de massa significava consumo de massa, um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma nova política de controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia, em suma, um novo tipo de sociedade democrática, racionalizada, modernista e populista (HARVEY, 2010, p. 122).

150 O modelo de produção em massa fundamentou-se “em ganhos de produtividade obtidos por economias de escala em um processo mecanizado de produção padronizada com base em linhas de montagem, sob as condições de controle de um grande mercado por uma forma organizacional específica” (CASTELLS, 2003, p. 212). Essa forma organizacional convergia para a grande empresa estruturada nos princípios de integração vertical e na divisão social e técnica do trabalho.

Quando a demanda de quantidade e qualidade tornou-se imprevisível; quando os mercados ficaram mundialmente diversificados e, portanto, difíceis de ser controlados; e quando o ritmo da transformação tecnológica tornou obsoletos os equipamentos de produção com objetivo único, o sistema de produção em massa ficou muito rígido e dispendioso para as características da nova economia. O sistema produtivo flexível surgiu como uma possível resposta para superar essa rigidez (idem, p. 212).

Portanto, o declínio desse modelo, a partir dos anos 1970, deve-se à sua falta de flexibilidade, fundamental para acompanhar um mercado mais competitivo, exigindo ofertas de produtos mais diversificadas. “O período de 1965 a 1973 tornou cada vez mais evidente a incapacidade do fordismo e do keynesianismo67 de conter as contradições inerentes ao capitalismo. Na superfície, essas dificuldades podem ser mais bem apreendidas por uma palavra: rigidez” (HARVEY, 2010, p. 135). Na visão de Barabási:

As linhas de montagem da Ford foram integradas e otimizadas a tal extremo que mesmo modificações ínfimas no design dos veículos exigiam a paralização das fábricas por semanas ou meses. A otimização gera o que alguns chamam de monólitos bizantinos, corporações que de tão organizadas se inflexibilizam por inteiro e se tornam incapazes de responder às mudanças no ambiente de negócios (BARABÁSI, 2009, p. 178).

Nessa mesma época, a montadora General Motors, concorrente direta da Ford Motors, em contrapartida, ampliou a oferta, multiplicando modelos e cores, tornando-se a maior montadora do mundo na época.

O desenvolvimento industrial, com a produção em massa a partir do modelo fordista, calcado na redução dos custos de produção, gerou um excesso de oferta de bens e serviços. A ampliação do mercado de consumo se deu por dois caminhos: conquista de mercados

151 externos, via exportação, e crescimento do consumo interno, ambos por meio de sofisticadas estratégias de marketing. O consumidor passou a ser o centro da disputa das empresas, caracterizando uma economia consumer oriented (“orientada pelo consumo”). A inovação transformou-se numa vantagem comparativa; conquistaram maiores margens de mercado as empresas que foram capazes de diversificar sua oferta de produtos em menor tempo, atendendo a um consumidor ávido por novidades. As estruturas rígidas de produção não davam mais conta das exigências desse mercado. “Se a inovação é uma prioridade, então, formas de organização flexíveis, dinâmicas, matriciais, orientadas por projeto ou orgânicas serão superiores à mecanicista burocrática” (MORGAN, 2007, p. 76).

As organizações estruturadas de forma mecanicista tem maior dificuldade de se adaptar a situações de mudança porque são planejadas para atingir objetivos predeterminados; não são planejadas para a inovação [...] A compartimentalização engendrada pelas divisões mecanicistas entre diferentes níveis hierárquicos, funções, papéis e pessoas tende a criar barreiras e obstáculos. (idem, p. 38).

Surgem os sistemas de produção flexíveis, mais aptos a atender as demandas de um mercado globalizado e em rápida transformação. Entretanto, Morgan sustenta que, na opinião de especialistas organizacionais, “embora se tenha avançado um longo caminho desde a exploração nua encontrada na escravidão e nos anos iniciais da Revolução Industrial, o mesmo padrão de exploração continua a existir hoje em dia de forma mais sutil” (MORGAN, 2007, p. 286).