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Experiências de net-ativismo do consumidor no mercado brasileiro

PARTE II – Empresas e consumidores em rede: protagonistas da controvérsia

Capítulo 5 – A gestão de crise no ambiente de comunicação em rede

5.2 Experiências de net-ativismo do consumidor no mercado brasileiro

O consumidor sempre “falou mal” das empresas e de seus produtos com seu círculo de relacionamento próximo (familiares, amigos, colegas de trabalho); o novo é que essa “conversa” agora acontece nas redes sociais digitais com outra dimensão e impacto. O que era assunto restrito à esfera privada, tornou-se assunto da esfera pública (na verdade, essa separação é questionável). No Brasil, um país com uma alta adesão da população às redes sociais (87,6% dos internautas estão em algum tipo de site de relacionamento), as reclamações ou denúncias contra as empresas proliferam no ambiente digital com motivações diversas: de uma experiência negativa com um produto ou serviço a um protesto contra uma atitude de marca percebida como negativa. É o que se convencionou chamar de “empoderamento” do consumidor (derivado do inglês, empowerment). Os sites de redes sociais, originalmente um espaço relacional com foco no social, foram transformados pelos usuários em locais de compartilhamento de experiências de consumo, com comentários e recomendações sobre produtos e serviços.

A ocupação das redes sociais pelos consumidores conectados para denúncias e boicotes a marcas e produtos decorre, em parte, da ineficiência dos canais de relacionamento direto com o consumidor, gerenciados pelas empresas. O Serviço de Atendimento ao Consumidor – SAC, por exemplo, apesar de regulado pelo decreto nº 6.523/2008, que estabelece normas e padrões mínimos de atendimento, não raro interage aquém das expectativas do consumidor. Outro fator é o potencial de visibilidade das redes sociais digitais, um convite para o consumidor-reclamante (na prática, o percentual de assuntos que se tornam “virais” é baixo).

Aparentemente, esse comportamento ativo nas redes sociais é mais significativo no Brasil, cuja causa é atribuída a um sistema historicamente ineficiente de proteção ao consumidor. O tema dos direitos do consumidor surgiu na década de 1960, nos Estados Unidos: em 15 de março de 1962, em mensagem ao Congresso Nacional, o presidente John F. Kennedy reconheceu seu caráter universal. Foi a partir da década de 1970, no entanto, que no

182 Brasil e no mundo, foram tomadas medidas decisivas nesse sentido, destacando-se a Resolução 39.248/85 da Organização das Nações Unidas – ONU e a Diretiva 374/85 da Comunidade Europeia. No mesmo ano, foi criado no Brasil o Conselho Nacional de Defesa do Consumidor – CNDC, Dec. 91.469/85, seguido da fundação, em 1987, do Idec, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor. Nos anos 1990, surge nos estados e municípios o Programa de Proteção e Defesa do Consumidor – PROCON – com o objetivo de garantir os direitos dos consumidores. Esse arcabouço legal, todavia, não significa uma efetiva proteção ao consumidor no Brasil, em consequência de inúmeros fatores, dentre eles a morosidade da justiça brasileira. As redes sociais despontam como alternativa. Em paralelo, como expressão da organização da sociedade civil, surgem novos e independentes mecanismos de defesa. Um dos mais reconhecidos é o site Reclame Aqui. Fundado por quatro sócios em 2001, é um serviço gratuito para os consumidores postarem suas reclamações e para as empresas responderem a essas reclamações.

Agrupamos as experiências de mercado no Brasil em categorias em função da temática da mobilização, do formato, ou outra característica em comum. No primeiro grupo, estão ações de net-ativismo envolvendo uma “causa”, na qual os consumidores conectados pressionam a empresa cobrando um posicionamento favorável à sua temática. Em maio de 2011, ativistas em defesa dos direitos dos animais organizaram a ação “Cada Gesto Conta” na fan page da multinacional Unilever na rede social Facebook74,. Com o propósito de atingir os seus 56 mil usuários, os ativistas debateram durante aproximadamente 15 minutos os testes de toxicidade de produtos em animais. A primeira reação da empresa foi bloquear os usuários- ativistas, apagando seus comentários. Em respostas, os mesmos criaram uma nova página no Facebook, “Boicote Unilever”75, demonstrando o fracasso de qualquer tentativa de controlar

as redes sociais digitais.

74 O Facebook possui 83 milhões de contas ativas no Brasil, o que corresponde a aproximadamente 80% do

número total de internautas. Mais em: EXMAN, Fernando. Facebook tenta ampliar mercado em campanha.

Jornal Valor Econômico, Brasília, 14 abr. 2014.

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Figura 16: Página de protesto contra a Unilever no Facebook.

Outro exemplo, ocorrido em janeiro de 2012, envolveu a criação de uma fan page na rede social Facebook convocando ao boicote dos produtos da empresa de cosméticos O Boticário76. O objetivo, segundo descrição dos próprios administradores, era “exigir que O

Boticário não aceite patrocinar e participar de eventos de moda em que peles sejam aceitas”.

Os usuários denunciam as marcas que utilizam peles de animais na fabricação de seus produtos, com fotos ilustrativas dos produtos e das raças dos animais correspondentes àquelas

peles. No mesmo mês, O Boticário postou na fan page uma nota esclarecendo que “patrocina

o São Paulo Fashion Week – principal evento de moda da América Latina, porque acredita

que beleza e moda andam juntas. Esclarecemos que nossa participação no evento não pressupõe conhecimento prévio do que será apresentado nos desfiles das marcas e não temos qualquer influência sobre as coleções apresentadas nos desfiles”. Em março de 2014, a página tinha registrado 13.004 “curtidas” e 238 “comentários”. A iniciativa repercutiu também na mídia dos grandes veículos de comunicação, forçando a empresa a se posicionar.

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Figura 17: Página de protesto contra O Boticário no Facebook.

No segundo grupo, estão as ações de protesto diretamente contra produtos. Em abril de 2011, a fabricante de acessórios Arezzo lançou uma coleção denominada “PeleMania” com uso de peles de raposa e coelho, lã de ovelha e couro natural. A reação dos internautas foi imediata e em quatro dias a marca ocupou o segundo lugar nos Trending Topics dentre os assuntos mais comentados no microblog Twitter Brasil. Alinhada à tendência dos protestos virtuais, nesse caso também foi criada uma fan page na rede social Facebook – “Boicote Arezzo” –, além de uma “invasão” da própria página da Arezzo na rede social. A reação inicial da fabricante de acessórios foi semelhante à reação da Unilever: apagou os posts contrários e publicou a seguinte nota: “As redes sociais são um espaço aberto para que todos possam expressar suas opiniões, entretanto, nos reservamos o direito de retirar mensagens com conteúdo ofensivo e agressivo, para os outros frequentadores de nossos perfis. A empresa se posicionará oficialmente sobre o caso em breve.” Contudo, a ação net-ativista foi bem sucedida: a Arezzo retirou de suas lojas os modelos da referida coleção.

A marca de sucos AdeS, do portfólio da multinacional Unilever, protagonizou, em março de 2013, uma das maiores manifestações de net-ativismo do consumidor ao ser denunciada por casos de contaminação do produto, o que culminaria com a proibição de venda pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA). Esse caso será tratado em profundidade na Parte III desta tese, com base na técnica da Cartografia das Controvérsias.

185 Em novembro de 2013, foi apresentada no I Congresso Internacional de Net-Ativismo na USP, organizado pelo Centro de Pesquisa Atopos, uma análise da inserção nas redes sociais da empresa de telefonia Claro77. Primeiro, a escolha tomou como base o fato do setor de telefonia estar dentre os primeiros lugares no ranking de insatisfação dos usuários. No site Reclame Aqui, em 12 meses, a Claro está no 5º lugar no ranking das empresas que receberam mais reclamações. O objeto da pesquisa foi estudar a fan page da Claro na rede social Facebook78, criada em maio de 2010 e que contaria, em outubro de 2013, com 3,5 milhões de usuários; a observação foi realizada durante sete dias (de 07 a 13 de outubro de 2013).

Figura 18: Página da Claro no Facebook.

Inicialmente, os pesquisadores narraram como a empresa se posiciona no ambiente da rede social. Na descrição da fan page a Claro estimula os usuários a curtir, compartilhar e comentar todas as novidades que serão divulgadas no espaço. No entanto, disponibiliza um link de acesso ao “Código de Conduta nas redes sociais da Claro Brasil”, no qual declara que “comentários e mensagens de usuários que apresentem conteúdos indevidos para os canais de Redes Sociais poderão ser removidos sem aviso prévio” e indica os casos em que essa regra se aplica: “comentários e mensagens com conteúdos ofensivos, obscenos, difamatórios,

77 Práticas Netativistas no Uso das Redes Sociais como um Legítimo Serviço de Atendimento ao Consumidor,

por Gustavo David Araújo Freire, mestrando, e Claudio Cardoso de Paiva, orientador e professor doutor, ambos do Programa de Pós-graduação em Comunicação e Cultura Midiática da Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa.

186 ilegais, ameaçadores, abusivos ou depreciativos aos produtos/ serviços/ funcionários da Claro e das demais operadoras de telefonia móvel, organizações públicas, outras instituições ou indivíduos”. Além disso, alerta que o usuário é o responsável por qualquer violação e poderá ser acionado cível e criminalmente.

Figura 19: Código de conduta da Claro no Facebook.

Freire e Paiva concluíram que: (a) a Claro Brasil interage com as redes sociais como um canal de transmissão de suas mensagens, não atentando para a interatividade intrínseca as características do ambiente; (b) a arquitetura oferece pouca opção de navegação, sendo que a única aba que possibilita ao usuário postar comentários é a “Eventos e Fotos” (não sendo permitido quando se refere ao seu core business, como as abas “Claro ideias”, “Claro recarga”, “Smartphone e Tablets”); (c) a participação do usuário na fan page está restrita a comentários sobre as publicações da empresa (não está disponível espaço para o usuário “publicar”); (d) contrariando a aparente intenção da Claro, 47% do volume total dos comentários postados pelos usuários referem-se à solicitação de informação sobre produtos/serviços, e reclamações/elogios/sugestões, inserções típicas de serviço de atendimento ao consumidor; (e) apenas 33% dos posts de usuários obtiveram retorno da Claro, os demais foram convidados a entrar em contato a partir do “1052” /atendimento

187 telefônico da empresa; (f) 78,6% das respostas da empresa foram dadas no intervalo de 4-6 dias após a publicação do usuário; e (g) observou-se o uso da fan page para expressar a insatisfação com os serviços prestados pela operadora, cujas publicações tiveram apenas 12% de retorno.

Os resultados mostrados acima estão alinhados com as constatações de Kaufman e Roza (2013) ao acompanharem, durante seis meses, a movimentação nas redes sociais de um conjunto de 45 marcas, em que se destacam: (i) o uso das redes sociais digitais como meio informativo de divulgação dos interesses da empresa; (ii) a relativamente baixa adesão dos internautas; (iii) a incidência maior de manifestações “curtir” versus “comentários”; (iv) o predomínio de “reclamações”; e (v) o retorno com respostas-padrão, ao estilo SAC.

A prática comum é retirar o consumidor-usuário do ambiente online, da esfera pública, convocando-o para espaços privados de interação, o que contraria a própria essência de rede social digital; o uso frequente de respostas dadas em outra linguagem, mais solta e informal, no caso de elogios por parte do consumidor-usuário. A impressão é a de que existem duas equipes distintas: uma subordinada às regras da equipe do SAC, que responde a reclamações, e outra, subordinada ao marketing, que responde a elogios e comentários positivos ou neutros. Aparentemente, a presença das empresas ou marcas nas redes sociais não segue uma estratégia, e o arcabouço tecnológico não prevê interações colaborativas (KAUFMAN; ROZA, 2013, p. 55).

Os comportamentos das empresas nos casos descritos têm em comum a ausência de estrutura para lidar com uma manifestação contrária nas redes sociais digitais, além do antagonismo entre a cultura do controle corporativo e o “não-controle” das redes. As comunidades institucionais nas redes sociais são abertas e demandam uma gestão transparente. Ao criar uma comunidade institucional, a empresa está convidando seus consumidores ou admiradores a se relacionarem numa esfera pública, a qual não comporta qualquer tipo de censura (que é distinto de código de conduta, regras de convivência, direitos iguais de ambas as partes, etc.).

A presença das marcas, institucionais e de produtos, nas redes sociais digitais, integra atualmente qualquer plano de marketing e comunicação medianamente estruturado. “Por um lado, é lá que estão os públicos-alvo das marcas; por outro lado, é relativamente fácil e de baixo custo criar uma fan page ou uma comunidade nesses sites sociais” (idem, p. 51). A

188 percepção generalizada entre os gestores das marcas é a de que não existe contraindicação a essas iniciativas.

No entanto, a prática mostra outra realidade. Ao longo da pesquisa, ouvimos inúmeros depoimentos de executivos – principalmente de empresas prestadoras de serviço em telecomunicação, saúde, financeiro (bancos) e energia – perplexos diante do afluxo para essas plataformas de reclamações de seus clientes, na maioria das vezes em função de experiências negativas com os canais apropriados (SAC). O uso indevido por parte dos usuários, aliado a políticas rígidas de controle das respostas pelas empresas, engessa o canal de relacionamento e minimiza sua eficácia (idem, p. 52).

Os chamados “social media” das empresas (um novo profissional surgido recentemente) têm autonomia restrita, em geral convidando o usuário para dialogar na esfera privada, mas sem muita eficácia. Por outro lado, parece-nos correto o debate em torno da necessidade de uma reformulação do Código do Consumidor incorporando o ambiente digital, a fim de evitar práticas oportunistas que visam apenas obter vantagem pessoal. Ao decidir aderir às redes sociais digitais, as estratégias e planos de ação das empresas, para serem eficientes, teriam que se adequar à lógica do ambiente da web 2.0, onde a primazia é do relacionamento, e não reproduzir o modelo de comunicação de massa. Como tentamos mostrar ao longo desta tese, essa questão transcende o desejo ou qualquer potencial entendimento; o bloqueio está na prática de controle que perpassa as organizações.

A Parte III será dedicada à descrição e análise dos resultados da pesquisa empírica. Com base na metodologia da TAR e na técnica da Cartografia das Controvérsias, mapeamos e seguimos as movimentações e conflitos nas redes sociais relativos à crise de contaminação do suco da marca AdeS da Unilever. Pretendemos testar os conceitos, visões e pressupostos teóricos apresentados nos capítulos precedentes.

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