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O ato ilocutório fotográfico

No documento Filosofia e cinema: uma antologia. (páginas 56-61)

As sete camadas da fotografia e seus

6. O ato ilocutório fotográfico

Nesta seção, buscarei expor alguns elementos da teoria de David Novitz (1977), que propõe alterações à filosofia de John Austin dos atos de fala, ampliando os atos ilocutórios às imagens. Não é minha intenção concordar com todos os elementos da teoria de Novitz, mas utilizá-la como um ponto de partida para pensar o caso específico que chamarei de atos ilocutórios fotográficos.

40 Em termos mais filosóficos, poderíamos dizer que a primeira perspectiva (exemplificada aqui por Scruton e Walton) prioriza o viés externalista semântico e a posição de Zeimbekis um viés internalista, que aceita as restrições do Princípio de Russell, expresso por Gareth Evans (1982), de que no pensamento singular devemos saber acerca de qual objeto estamos pensando.

John Austin (1962) traça a distinção entre atos locutórios, ilocutórios e perlocutórios. O ato locutório é o ato de pronunciar uma determinada sentença. O ato ilocutório, por sua vez, é o ato realizado ao se pronunciar a sentença, em certas condições e com certas intenções. O lema dos atos ilocutórios pode ser resumido como “dizer algo é fazer algo”. Exemplos de atos ilocutórios são: informar, ordenar, avisar, comprometer-se etc. Por fim, o ato perlocutório é o efeito que o ato ilocutório produz na audiência. Por exemplo, ao se dizer a sentença “conte comigo” (um ato locutório), em um determinado contexto, o falante pode fazer uma promessa ao interlocutor (o ato ilocutório), que pode ter a força de convencer tal interlocutor (o ato perlocutório). Austin chama a doutrina das diferentes funções que os usos da linguagem podem ter de doutrina das “forças ilocucionárias” (1962: 99).

Na interpretação de Strawson (1964) (utilizada por Novitz, como acréscimo à teoria de Austin), podemos encontrar a distinção entre dois tipos de atos ilocutórios – embora Strawson reconheça a possibilidade de casos intermediários. Há atos de fala que são parte de procedimentos constituídos por convenção e atos de fala não essencialmente convencionais (1964: 458-9). Os jogos (em sua maioria) e os tribunais são, por exemplo, procedimentos constituídos por convenção. Nesses casos, há regras que garantem que a intenção expressa ao se pronunciar algumas determinadas sentenças gere efeitos determinados. Ou seja, há regras que garantem que um determinado ato ilocutório tenha um determinado efeito perlocutório. No caso dos tribunais, por exemplo, um advogado, ao pronunciar, no momento adequado, a frase “meu cliente se declara inocente”, realiza um ato ilocutório que tem como efeito perlocutório dar sequência ao julgamento – diferentemente do caso no qual a frase pronunciada fosse “meu cliente se declara culpado”. A não obtenção do resultado esperado através da intenção expressa no ato ilocutório seria, nesse caso, decorrente de uma quebra nas regras e convenções daquele contexto.

Porém, em contextos não essencialmente convencionais, a intenção expressa no ato de fala pode ser frustrada sem que regras e convenções sejam quebradas. Por exemplo, ao se dizer, em contextos ordinários de interlocução, “por favor”, não há garantias de que o efeito almejado seja obtido – de que o interlocutor acolha a súplica que lhe foi feita. Ou seja, “não há condições que possam convencionalmente garantir

a eficácia de sua intenção evidente [overt]” (Strawson 1964: 459). Nesse caso, o ato ilocutório de suplicar a alguém tendo em vista convencê-lo a fazer alguma coisa não teria sido realizado. Para Strawson, “no caso de um ato ilocutório de natureza não essencialmente convencional, o ato de comunicação é realizado se a apreensão [uptake] for garantida” (Strawson 1964: 458 – grifo adicionado).

Na perspectiva de Strawson, para que haja a apreensão do ato de fala, não basta que algo seja dito com a intenção de produzir uma certa reposta cognitiva na audiência, mas a intenção de produzir tal resposta visada pelo falante deve ser apreendida pela audiência como parte explícita da intenção do falante. Ou seja, quando uma súplica é feita, por exemplo, e o falante pronuncia a expressão “por favor”, não há apenas a intenção de gerar certa resposta no interlocutor, mas também que o interlocutor reconheça que o falante realiza um ato de fala de suplicar algo tendo em vista uma certa resposta. Como afirma Strawson:

Pois a força ilocutória de um enunciado é essencialmente algo que se intenciona ser entendido. E a compreensão da força de um enunciado em todos os casos envolve o reconhecimento do que pode ser chamado grosso modo de uma intenção direcionada-à-audiência [audience-directed intention] e o reconhecimento disto como totalmente evidente, como algo pretendido a ser reconhecido. (1964: 459).

Novitz argumenta que Austin, embora priorize os atos ilocutórios nos quais os atos locutórios sejam sentenças, estaria aberto a conceder “a possibilidade de atos ilocutórios não-verbais, talvez pictóricos” (1977: 77). A partir dessa possibilidade, Novitz desenvolve a ideia de que imagens poderiam ser utilizadas com a intenção de produzir uma certa resposta cognitiva em uma audiência. Nesses casos, a imagem cumpriria o papel do ato locutório, o uso da imagem, no contexto, com uma determinada intenção, seria o ato ilocutório realizado, e o efeito do uso da imagem, o ato perlocutório. Ou seja, imagens poderiam ser utilizadas para informar, ordenar, avisar etc. Segundo o autor:

Quando uma imagem é usada em um ato ilocutório que é sobre, ou que é relativo a, o que é retratado (ou um aspecto do que é retratado), o ato ilocutório pode ser considerado como um ato ilocutório pictórico e, portanto, como uma instância de representação pictórica. (1977: 69).

Novitz analisa casos nos quais uma imagem é usada como parte de um ato ilocutório para indicar um sujeito e atribuir algo a ele – como qualidades, propriedades, relações, ações, estados etc. (1977: 89-90). Porém, nem todo ato ilocutório envolve indicar um sujeito e atribuir a ele algo. Podemos saudar alguém dizendo “olá” ou segurando a sua imagem – como exemplifica Novitz (1977: 95). Embora Novitz reconheça isso, sua análise fica restrita aos atos ilocutórios pictóricos proposicionais.

Um problema do paralelo proposto, entre os atos ilocutórios e os atos ilocutórios pictóricos, é que imagens não têm uma gramática análoga à gramática superficial das proposições na linguagem ordinária. Em proposições, podemos determinar o que é designado e o conteúdo atribuído por meio da forma sujeito e predicado e características sintáticas formais. Porém, não há substantivos e pronomes pictóricos, nem verbos pictóricos, nem flexões verbais que permitam função análoga aos tempos verbais em imagens. Assim, em uma imagem, os elementos sintaticamente relevantes do design não determinam de forma clara qual é a entidade referida e o conteúdo predicativo a ela atribuído. Muitas diferentes proposições podem ser extraídas de uma mesma imagem – dependendo das entidades, propriedades reconhecidas e dos modos como forem articuladas. Porém, segundo Novitz, disso não se segue que imagens não possam expressar proposições em determinados contextos de uso. Segundo ele: “[o] contexto (...) fornece certas pistas de como a imagem está sendo empregada: qual ato ilocutório o seu uso perfaz e que proposição ela visa expressar” (1977: 92).

A importância concedida por Novitz aos atos de fala tem em vista dissipar o equívoco de da suposição de que sentenças e imagens expressariam proposições independentemente dos seus usos contextualizados. As características formais de uma sentença não são

suficientes para expressar uma proposição. “[Q]ualquer sentença que expresse uma proposição deve ser usada em um ato ilocutório para poder expressar isso” (1977: 91). Assim como é o ato de usar uma sentença que a torna proposição, para Novitz, é o ato de usar uma imagem, em um contexto, que a permite expressar uma proposição. Deste modo:

O mesmo quadro usado na ausência das características contextuais relevantes não pode ser dito expressar a mesma proposição, podemos assumir que o contexto no qual um ato ilocutório pictórico é realizado é, até certo ponto, um determinante do, ou é responsável pelo, conteúdo proposicional do ato. (1977: 92).

O erro de se supor que imagens poderiam expressar proposições independentemente de atos ilocutórios é retraçado por Novitz ao fato de que imagens são artefatos feitos muitas vezes tendo em vista sugerir um uso comunicativo específico. Um determinado tipo de imagens é geralmente usado para expressar um determinado tipo de proposição. Por exemplo, imagens típicas de livro de botânica são geralmente usadas para indicar certas plantas e atribuir a elas certas propriedades. Um espectador que estivesse familiarizado com esse uso de imagens, diante de uma imagem típica de um livro de botânica (mesmo que não presente em um livro), saberia “ler” a proposição expressa nessa imagem. Mas disso não se segue que a imagem já traria consigo essa proposição independentemente de todo e qualquer uso. Há por parte do espectador a pressuposição de que a imagem tenha sido produzida tendo em vista ser parte do ato ilocutório no qual é usada para expressar tal proposição.

Um aspecto que justifica o paralelo proposto por Novitz entre os atos ilocutórios e os atos ilocutórios pictóricos é que os usos de imagens muitas vezes visam efeitos perlocutórios. Ao se usar uma determinada imagem, em um contexto, expressando certa proposição (na qual um sujeito é indicado e propriedades atribuídas), com muita frequência, há a intenção de produzir uma certa resposta cognitiva na audiência. Além disso, pode haver também a intenção explícita de que a produção dessa resposta seja compreendida pelo espectador como algo visado

(cumprindo assim o requisito imposto por Strawson, de uma “intenção direcionada-à-audiência” (1964: 459)).

Novitz traça a distinção entre o efeito perlocutório, a estética da imagem e sua dimensão expressiva. Os três casos dizem respeito ao que as imagens podem elicitar. Porém, o ato perlocutório estaria restrito, para Novitz, ao efeito causado pelo uso da imagem como parte do ato ilocutório, no qual uma proposição é asserida através do uso e há uma intenção expressa de causar no espectador uma certa resposta cognitiva através do uso da proposição. Por outro lado, mesmo que uma imagem não seja parte de um ato ilocutório, ela pode, por exemplo, ainda assim, causar agrado no espectador em decorrência do arranjo de cores, causar deleite em decorrência da geometria da composição, ser delicada, elegante etc. (1977: 139). O efeito perlocutório estaria restrito aos casos nos quais há a realização de um ato ilocutório pictórico proposicional. A dimensão estética e expressiva seria independente desse uso. Assim, segundo Novitz:

[As] propriedades expressivas são atribuídas a imagens independentemente de como são usadas: são atribuídas em virtude tanto das qualidades visuais das imagens quanto do contexto histórico e estilístico no qual foram produzidas - mas nunca em virtude de seu uso em um ato ilocutório. (1977: 150).

No documento Filosofia e cinema: uma antologia. (páginas 56-61)