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Envolvimento emocional

No documento Filosofia e cinema: uma antologia. (páginas 179-184)

Filosofia do Cinema

4. Envolvimento emocional

estabelecidas, dentre as quais a mais famosa é Hollywood. Tentar entender o cinema sem enquadrá-lo no contexto mais amplo de sua produção tem sido considerada a principal deficiência dessa teoria.

Esse tipo de crítica do auterism recebeu uma formulação teórica no âmbito do pós-modernismo, com sua afamada (ou infame) declaração da morte do autor. O que este gesto retórico auto-consciente assevera é que obras de arte, inclusive filmes, não devem ser vistas como produto de uma única inteligência controladora, mas sim como produtos de seus tempos e contextos sociais. Assim, o objetivo da crítica não deve ser a reconstrução das intenções do autor, mas sim a elucidação dos inúmeros contextos que explicam tanto a produção da obra quanto suas limitações.

Mas se o contexto institucional em geral certamente é crucial para entender um filme, a teoria do auteur todavia oferece uma perspectiva útil para algumas aplicações no estudo acadêmico do cinema, como por exemplo a exploração do trabalho de diretores individuais. Mas até mesmo nisso tem havido preocupações no sentido de que a teoria enfatiza demais a contribuição do diretor às custas de outras pessoas – atores, diretores de fotografia, roteiristas -, cujas contribuições podem ser igualmente importantes na produção, se não de todos, ao menos de alguns filmes.

4. Envolvimento emocional

A discussão filósofica acerca do envolvimento do espectador com o cinema dá origem a um problema que já foi levantado acerca de outras formas de arte: por que nos importamos com o que ocorre a personagens ficcionais? Afinal de contas, uma vez que são ficcionais, seu destino não deveria nos importar da maneira como nos importa o destino de pessoas reais. Mas, é claro, nos envolvemos com os destinos desses seres imaginários. A questão é: por quê? Dado que boa parte dos filmes que atraem nossa atenção são ficcionais, essa é uma questão importante para os filósofos do cinema.

Uma resposta comum na tradição da teoria do cinema assevera que a razão pela qual nos importamos com o que acontece com personagens

ficcionais é porque nos identificamos com eles. Embora esses personagens sejam altamente idealizados, ou talvez por isso mesmo – por serem mais belos, intrépidos, engenhosos, etc, do que qualquer ser humano poderia ser – espectadores se identificam com eles, tomando a si próprios como correlatos desses seres ideais. Assim, uma vez que vemos os personagens como uma versão de nós mesmos, seus destinos passam a nos importar, pois nos vemos envoltos em suas histórias. Nas mãos de teóricas feministas, essa ideia foi empregada para explicar como os filmes utilizam os prazeres dos espectadores para manter uma sociedade sexista. Foi defendido que espectadores do sexo masculino identificam-se com suas contrapartes idealizadas na tela e usufruem a objetificação das mulheres tanto através das imagens a que eles prazerosamente assistem, quanto nas narrativas em que os personagens do sexo masculino com quem se identificam logram possuir a cobiçada personagem feminina.

Seja como for, filósofos do cinema têm argumentado que a identificação é uma ferramenta demasiadamente rudimentar para explicar nosso envolvimento emocional com os personagens, sobretudo porque há uma ampla variedade de atitudes que atribuímos aos personagens que vemos projetados na tela (ver, por exemplo, SMITH 1995). Quer dizer, mesmo se nos identificamos com alguns personagens, isso deixa inexplicado o porquê de também reagirmos emocionalmente a personagens com quem não nos identificamos. Sendo assim, uma teoria mais geral do envolvimento do espectador com personagens cinematográficos e com os filmes nos quais eles aparecem é claramente necessária.

A linha geral das respostas que os filósofos do cinema têm oferecido à questão acerca de nosso envolvimento emocional com os filmes assevera que nós nos importamos com o que ocorre nos filmes porque estes nos fazem imaginar coisas acontecendo, coisas com as quais nos importamos. Assim, filmes ficcionais têm impacto emocional sobre nós porque o modo como imaginamos certas coisas acontecendo afeta nossas emoções.

Existem duas teses elementares das quais os filósofos têm se valido para explicar os efeitos que a imaginação tem sobre nós. A teoria da simulação emprega uma analogia computacional segundo a qual imaginar algo significa ter as respostas emocionais que habitualmente se tem em face de determinadas situações e pessoas, com a diferença crucial de que as emoções estão vigorando, por assim dizer, off-line. O que isso significa

é que, quando tenho uma resposta emocional, digamos, de raiva, para uma situação imaginada, eu sinto a mesma emoção que eu normalmente sentiria, a não ser pelo fato de que não estou inclinado a agir de acordo com essa emoção, quer dizer, não estou inclinado a responder gritando ou de modo raivoso como estaria caso estivesse tendo uma emoção plena.

O que isso explica, portanto, é uma característica aparentemente paradoxal de nossa experiência como frequentadores de cinema: nós parecemos gostar de assistir a coisas que odiaríamos ver na vida real. O contexto mais óbvio em que isso se torna manifesto são os filmes de terror, posto que podemos desfrutar da visão de eventos e criaturas horripilantes que fervorosamente desejaríamos não encontrar na vida real. A última coisa que eu gostaria de ver na vida real seria um macaco gigante e furioso; no entanto, eu fico fascinado ao ver suas façanhas na tela. Os defensores da teoria da simulação alegam que isso se deve ao fato de que quando experienciamos uma emoção off-line que seria angustiante na vida real, talvez possamos realmente desfrutar dessa emoção na segurança da situação off-line.

Um problema com que se depara o teórico da simulação consiste em explicar o que significa dizer que uma emoção ocorre off-line. Se por um lado a expressão é uma metáfora intrigante, por outro não está claro que os defensores da teoria da simulação possam fornecer uma descrição adequada de como coloca-la em uso.

Uma descrição alternativa de nossas respostas emocionais frente a cenários imaginados foi designada de teoria do pensamento. A ideia aqui é a de que podemos ter respostas emocionais a meros pensamentos. Quando alguém me informa que um colega mais jovem teve seu contrato injustamente revogado, pensar nessa injustiça é suficiente para me fazer sentir raiva. De forma semelhante, quando imagino alguém, seja quem for, em tal situação, o mero pensamento desse alguém sendo tratado desse modo pode ocasionar minha raiva. Ou seja, meros pensamentos podem provocar emoções reais.

O que a teoria do pensamento assevera sobre nossas respostas emocionais frente ao cinema é que nossas emoções são provocadas por pensamentos que nos ocorrem enquanto assistimos a um filme. Quando vemos o vilão ignóbil amarrando a inocente heroína aos trilhos, estamos, ao mesmo tempo, preocupados e indignados pelo simples pensamento de que ele está agindo desse modo e que, por isso, ela está em perigo.

Contudo, durante todo o tempo, estamos conscientes de que se trata de uma mera situação ficcional, de modo que não há a tentação de entregar- se ao desejo de salvá-la. Ou seja, estamos sempre conscientes de que ninguém está em perigo. Em consequência disso, não existe a necessidade, diriam os defensores da teoria do pensamento, de apelar às complexidades da teoria da simulação para explicar porque somos tocados pelos filmes.

Naturalmente, a teoria do pensamento também enfrenta algumas dificuldades. Por que deveria um mero pensamento, em oposição a uma crença, constituir algo que provoca uma resposta emocional? Uma coisa é crer que você foi injustiçado. Outra é o pensamento de que você foi injustiçado. Dado que não podemos ter crenças, no sentido pleno da palavra, sobre os personagens dos filmes, a teoria do pensamento precisa explicar por que somos tocados por seus destinos (Para uma discussão mais detalhada desse assunto, ver PLANTINGA e SMITH (1999).

5. Narração

Filmes de ficção contam histórias. Ao contrário dos meios empregados na literatura, como os romances, filmes fazem isso com imagens e sons – incluindo aí palavras e músicas. Alguns filmes claramente têm narradores. Geralmente esses narradores são também personagens, isto é, encontram-se dentro do mundo ficcional do filme. Eles nos contam a história do filme e supostamente nos mostram as imagens a que assistimos. Algumas vezes, porém, uma narração em off se nos apresenta com uma visão aparentemente objetiva da situação dos personagens, como se tivesse sua origem em algo externo ao filme. Além disso, há filmes ficcionais, filmes que contam histórias, nos quais não há nenhum agente que está explicitamente contando a história. Todos esses fatos trouxeram à tona uma porção de dificuldades acerca da narração fílmica, dificuldades essas que têm sido discutidas por filósofos do cinema. (Ver CHATMAN (1990) e GAUT (2004)).

Uma questão crucial e que entre os filósofos tem sido objeto de grande controvérsia é a questão da narração não confiável. Existem filmes em que o público percebe que o personagem-narrador tem uma visão limitada ou mesmo distorcida sobre o universo do filme. Um exemplo é Carta de uma desconhecida (1948), de Max Ophüls, um filme que já foi

discutido por inúmeros filósofos. A maior parte do filme consiste em uma narração em off de Lisa Berndle, a mulher desconhecida a que o título faz referência e que recita a carta que envia a seu amante, Max Brand, pouco antes de sua própria morte. O público vem a perceber que Lisa tem uma visão distorcida dos eventos que ela narra, sobretudo em sua avaliação equivocada do caráter de Brand. Daí naturalmente surge a questão sobre como o público vem a saber que a visão de Lisa é distorcida, uma vez que aquilo que vemos e ouvimos é narrado (ou mostrado) por ela. George Wilson (1986) argumentou que narradores não confiáveis como essa requerem a postulação de um narrador fílmico implícito, ao passo que Gregory Currie (1995) argumentou que um diretor implícito já seria suficiente. Tal questão tornou-se bastante relevante com a crescente popularidade de estilos de produção fílmica que envolvem narrativas não confiáveis. Os suspeitos (1995), de Bryan Singer, desencadeou uma explosão de filmes cujos narradores eram, de algum modo ou de outro, não confiáveis.

Outro assunto concernente à narrativa que tem sido um foco de debate é a questão sobre se todos os filmes têm narradores, incluindo aqueles sem um narrador explícito. Inicialmente, alegou-se que a ideia de uma narrativa sem narrador não fazia sentido, que a narração requeria um agente a narrar, e que este seria o narrador do filme. Em casos em que não havia um narrador explícito, um narrador implícito deveria ser pressuposto a fim de que o modo como o público adentra o mundo ficcional do filme faça sentido. Oponentes responderam que o narrador, no sentido de um agente que introduz o público ao mundo ficcional do filme, poderia muito bem ser o próprio cineasta, de modo que não haveria necessidade de pressupor uma entidade tão questionável como um narrador fílmico implícito.

Há, porém, um problema ainda mais profundo no tocante à narração fílmica que se relaciona com aquela que foi chamada de "tese do imaginar ter visto" (WILSON 1977). Segundo essa tese, espectadores de filmes ficcionais em geral imaginam a si mesmos olhando para o mundo apresentado na história e vendo segmentos da ação narrativa a partir de uma série de perspectivas visuais definidas. Em sua versão tradicional, considera-se que os espectadores imaginam a tela do filme como uma espécie de janela que os permite assistir ao desdobramento da história do "outro lado". Entretanto, essa versão encontra dificuldades em interpretar

o que está sendo imaginado quando, por exemplo, a câmera se move ou quando há um corte para uma tomada que incorpora uma perspectiva diferente à cena, etc. Por causa disso, uma visão alternativa foi sugerida, uma visão que assevera que os espectadores imaginam a si mesmos vendo imagens de filmes que foram fotograficamente derivadas, de algum modo indeterminado, de dentro do próprio mundo ficcional. Essa posição, contudo, enfrenta problemas, uma vez que normalmente a ficção de um filme pressupõe que nenhuma câmera estava presente no espaço ficcional da narrativa. Assim, o debate resultante oscila entre rejeitar como incoerente a tese do “imaginar ter visto” e a possibilidade de formular uma versão aceitável dessa tese. Filósofos permanecem divididos sobre essa questão fundamental.

Assim, a questão da narração de um filme continua a ser objeto de intensa discussão e investigação filosófica. Várias tentativas de explicar sua natureza seguem sendo calorosamente debatidas. Na medida em que novos e mais complexos estilos de narração de fílmica se tornam populares, é bastante provável que esse assunto continue a receber atenção de filósofos e estetas.

No documento Filosofia e cinema: uma antologia. (páginas 179-184)