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Os pressupostos filosóficos da fotografia

No documento Filosofia e cinema: uma antologia. (páginas 52-56)

As sete camadas da fotografia e seus

5. Os pressupostos filosóficos da fotografia

Podemos distinguir dois tipos de uso da fotografia, que seriam casos limites, que expressam posições diametralmente opostas, em relação à compreensão filosófica do meio fotográfico. Esses casos limites serão aqui abordados como ilustrações de dois extremos do espectro de variações possíveis, no interior do qual os usos da fotografia podem aproximar-se ou se afastar dos casos limites. Começaremos pela análise das teses filosóficas e, posteriormente, traçaremos a relação com os dois usos da fotografia que podem ser interpretadas como pressupondo tais teses.34

Fotografias são causalmente conectadas aos referentes e descrevem visualmente os objetos. Em decorrência da existência da rota causal, a fotografia pode ser compreendida segundo as linhas de uma teoria causal de referência (de modo similar a um nome na teoria causal de referência de Saul Kripke (1980)). Por esse viés, a fotografia desempenharia o papel lógico de um termo referencial direto (um demonstrativo), que apontaria para seu referente através da rota causal que une a fotografia ao referente.35 Na segunda perspectiva, a referência da imagem fotográfica

é concebida como determinada pelo seu conteúdo pictórico, que descreve visualmente o objeto denotado. Neste caso, a fotografia pode ser pensada nas linhas de uma teoria descritivista de referência.

Como expresso por Dominic Lopes (2004: 92-106), nem uma abordagem puramente descritiva nem puramente causal oferece por si só uma boa teoria da fotografia. Não basta que um objeto seja o referente causal da fotografia, geralmente queremos que o conteúdo pictórico também nos dê informações visuais do referente. Uma fotografia com uma mancha preta como conteúdo pictórico não será bem aceita como uma foto de Pedro, mesmo que ele seja o referente causal da mancha preta. Por outro lado, as fotografias não são usadas de modo satisfacional. Não tomamos como referente de uma foto o que quer que satisfaça o seu conteúdo pictórico descritivo. Se este fosse o caso (de

34 Uma análise das diferentes teorias filosóficas da imagem pode ser encontrada nos meus artigos SILVA (2016a e 2016b).

acordo com o exemplo abordado na seção anterior), uma fotografia de Pedro também seria uma fotografia de seu irmão gêmeo idêntico, Paulo.

Os elementos causal e descritivo da fotografia oferecem diferentes níveis de articulação. Esses diferentes níveis, por sua vez, resultaram em diferentes compreensões da relação que temos com o objeto denotado por meio da fotografia. No que tange à relação com as entidades denotadas, há duas linhas interpretativas gerais: (i) teorias que aceitam que através da fotografia percebemos o objeto denotado ele mesmo e (ii) teorias que aceitam que a fotografia nos dá apenas representações dos objetos (mesmo que estas representações estejam causalmente unidas aos seus referentes). Podemos tomar como exemplo da abordagem (i) as teorias de Roger Scruton (2008) e Kendall Walton (2008). A abordagem (ii) pode ser exemplificada por José Luis Bermúdez (2000) e John Zeimbekis (2010).

Segundo Roger Scruton:

A câmera (...) não é usada para representar algo, mas para apontar para isso. (…) A câmera não é essencial àquele processo: um dedo apontando teria igualmente servido. (2008, p. 151).

Desse modo: “olhar para uma fotografia é um substituto para olhar para a coisa em si mesma” (2008: 149). A interpretação de Kendall Walton, embora tenha diferenças significativas em relação à de Scruton, também sustenta que através da fotografia percebemos o objeto fotografado ele mesmo. Segundo Walton:

Não estou dizendo que a pessoa que olha para as fotografias empoeiradas [antigas] tem a impressão de ver seus antepassados (...) Nem é meu ponto que o que vemos - fotografias - são duplicatas ou cópias ou reproduções de objetos, ou substitutos ou suplentes deles. Minha alegação é que vemos, literalmente, nossos parentes falecidos eles mesmos quando olhamos para fotografias deles. (2008: 22).

A razão pela qual as fotografias seriam transparentes (permitindo a percepção do objeto ele mesmo) é que, em decorrência da existência da rota causal unindo a fotografia ao denotado, elas seriam contrafactualmente dependentes da cena fotografada, e não das crenças de seu criador (como seria no caso das imagens feitas à mão) 36. Essa

dependência contrafactual seria a conexão causal necessária para percebermos o próprio objeto: “Eu subscreveria alguma variedade de teoria causal: ver algo é ter experiências visuais que são causadas, de certa maneira, pelo que é visto.” (2008: 34).37

José Luis Bermúdez (2000) e John Zeimbekis (2010) são dois autores que negam esta tese e sustentam a ideia de que a fotografia nos dá apenas representações de objetos.

De acordo com Bermúdez, os casos de identificação demonstrativa usando fotografias (no qual apontamos para uma fotografia e dizemos

36 Dominic Lopes se opõe à ideia de Walton de que as imagens feitas à mão não são transparentes (2004). Lopes argumenta que as crenças sobre um objeto não são necessárias para um artista fazer uma imagem à mão desse objeto. Para fazer um desenho “é requisitado a você apenas fazer marcas reconhecíveis do objeto cuja aparência guia seus movimentos do desenho”(2004: 185). E o artista não precisa ter conceitos de todas as propriedades que ela usa no design da imagem. (Suporte para essa posição de Lopes pode ser encontrado em casos de “agnosia aperceptiva”, discutido por John Campbell, nos quais os pacientes podem copiar figuras complexas sem qualquer ideia do que estão desenhando (2002: 72)). Assim, contra Walton, Lopes defende que as imagens feitas à mão também são contrafactualmente dependentes da cena retratada e independentes da crença. Em suma, as imagens feitas à mão também são transparentes, de acordo com a tese transparente de Walton. Concordo com a crítica de Lopes. Mas acho que o sucesso de seu argumento contra Walton pode ser usado para um propósito diferente. Em vez de concluir que todas as imagens podem ser transparentes, podemos usar seu argumento como uma forma de reductio ad absurdum da teoria de Walton. A transparência, na formulação de Walton, é um conceito excessivamente amplo e pode ser descartado. Uma noção muito interessante de transparência (diferente da de Walton) é a transparência estrutural sugerida por John Kulvicki (2006).

37 No artigo “What does a presentist see when she looks at photographs of dead relatives?”, que se encontra no prelo, abordo os requisitos metafísicos temporais dessas teorias de Scruton e Walton e mostro como um presentista não poderá aceitar essas teorias.

“este é o tal-e-tal”) não seriam de referência demonstrativa genuína (na qual o objeto ele mesmo é demonstrativamente selecionado), mas casos de descrições definidas elípticas. "afirmações como ‘este é o meu tio’ feitas apontando para uma fotografia do meu tio devem ser glosadas como ‘o homem [representado] na fotografia é meu tio’"(2000: 371).38 Assim,

usando fotografias em contextos demonstrativos, não estamos apontando para o objeto ele mesmo, mas para uma representação deste objeto.

John Zeimbekis desenvolve semelhante concepção ao sustentar que: “o conteúdo das percepções de imagens não fornece o tipo de informação numérica e contextual necessária para o pensamento singular” (2010: 11). Ao se deparar com uma fotografia de objetos perceptivelmente indiscerníveis (de Pedro ou de seu irmão gêmeo idêntico, Paulo, por exemplo), não poderíamos saber, limitados ao conteúdo pictórico, qual objeto temos em mente. Sendo essa subdeterminação constitutiva de qualquer fotografia (como expresso na seção anterior), nunca teríamos, diante de uma fotografia (limitados ao conteúdo pictórico) uma apreensão do objeto ele mesmo39. Assim, ao

apontar para uma fotografia e dizer “este é o tal-e-tal”, uma vez que o conteúdo pictórico não pode garantir a identidade numérica do particular, o indexical não poderia ser usado para selecionar seu referente. Zeimbekis sugere que, em casos de identificações demonstrativas usando fotografias, o indexical apontaria para propriedades fenomenais exemplificadas pela fotografia (2010: 17-8). Essas propriedades fenomenais são atribuídas ao referente.

Contudo, a posição de Zeimbekis não deve ser entendida como puramente descritiva. Ele aceita a importância da conexão causal entre a fotografia e seu referente. Mas a história causal de uma fotografia liga a fotografia como objeto ao objeto fotografado. Essa conexão ancora a

38 Aqui estou seguindo a interpretação de Bermúdez proposta por Dominic Lopes (2010: 53).

39 Caso soubéssemos a histórica causal da fotografia, poderíamos ter um pensamento singular, em decorrência desse conhecimento extra-fotográfico. Por exemplo, se sei qual dos irmãos gêmeos foi fotografado, ao perceber a fotografia, seria possível pensar que vejo aquele irmão específico. Mas essa determinação não nos seria dada pelo conteúdo pictórico.

referência do conteúdo representacional da fotografia a um objeto específico. Porém, o conteúdo pictórico permaneceria subdeterminado e só desempenharia um papel atributivo no pensamento causado pela percepção da fotografia (não nos dando, assim, a percepção do objeto ele mesmo).40

Podemos encontrar essas duas posições filosóficas pressupostas em dois usos distintos da fotografia: (i) fotógrafos que usam a fotografia como uma mera forma de apontamento da entidade denotada (e adotam, mesmo que de maneira irrefletida, a teoria filosófica de que, através da fotografia, percebemos o objeto fotografado ele mesmo) e (ii) fotógrafos que a concebem como uma forma de descrição subdeterminada (pressupondo o estatuto filosófico da imagem fotográfica em moldes semelhantes à teoria de Zeimbekis).

Como veremos nas próximas seções, o ato ilocutório fotográfico poderá visar diferentes camadas da imagem fotográfica, assim como, mobiliar mais de uma camada. Os dois casos limites aqui delineados seriam o uso da fotografia como um mero acesso cognitivo ao objeto denotado e o seu uso como uma descrição subdeterminada, que não lograria êxito em dar acesso cognitivo a um objeto particular – de qual modo que, restritos ao conteúdo pictórico, soubéssemos acerca de qual objeto estamos pensando no ato da percepção da imagem.

No documento Filosofia e cinema: uma antologia. (páginas 52-56)